quarta-feira, 12 de junho de 2019

O último maçarico-esquimó 10


Muitas vezes junta-se às tarambolas-douradas um grande fuselo americano, e ocasionalmente acompanham-nas outras narcejas, na longa rota do Atlântico. Esta rota é de facto um encurtamento, mas só o maçarico-esquimó e a tarambola-dourada a percorrem regularmente todos os outonos. Entre as aves do Árctico, só eles possuem a força e a velocidade de voo indispensáveis para fugir ou enfrentar as tempestades do alto mar, que não são raras. Além disso, graças a esta rota, elas podem usufruir dos arandos escuros que amadurecem no Outono, e crescem abundantemente nas encostas e nos planaltos do Lavrador. As aves que migram sobre o continente privam-se destas reservas de alimento. Ao contrário, na Primavera, as tarambolas e os maçaricos têm que seguir a rota habitual sobre as planícies do Oeste, pois nessa altura os arandos estão endurecidos e mortos, debaixo da neve. No Lavrador ainda domina o inverno, quando o Árctico se cobre já dos verdores da Primavera.
            Pela manhã, a tundra lá em baixo não era já tão cinzenta e monótona. Manchas escuras e sinuosas atravessavam o terreno. Desde o cair da noite, as aves tinham deixado para trás seiscentos quilómetros, e agora aproximavam-se da fronteira dos bosques subárcticos de abetos. Os prolongamentos escuros que penetravam na tundra eram vales de rios florestados. Estes vales protegiam os pequenos abetos das tempestades de neve, e permitiam-lhes sobreviver. Aos primeiros alvores da manhã, as aves desceram na zona pantanosa de um lago. Repousaram por uns momentos e começaram a comer logo que a manhã clareou.
            Com as suas pernas altas e o bico encurvado, o maçarico sobressaía claramente no meio das tarambolas, que tinham penas mais escuras e bicos mais curtos. Sendo concorrentes e inimigas na reserva, as duas espécies migravam em conjunto há inúmeras gerações, e aqui misturavam-se como iguais. Chegavam outras narcejas - pernas-amarelas, borrelhos, pilritos-das-praias  -  que andavam por ali e se retiravam. O maçarico observava-os cuidadosamente, pois algures na tundra imensa deveria haver companheiros seus.
            Comiam durante todo o dia, e só ocasionalmente faziam uma pausa para descanso. Quando chegava a escuridão, voavam de novo. Durante a subida era frouxa a coesão dentro do bando. Mas, logo que ganhavam altura, faziam rapidamente a sua formação em cunha, graças à qual a raiz da asa de cada ave era sustentada pelo turbilhão da asa precedente. O maçarico assumiu o comando e as tarambolas cerraram formação atrás dele, com elegância e leveza, como se tivessem treinado longamente a manobra. Elas não tinham escolhido conscientemente um chefe. Este tinha que se esforçar particularmente para vencer a resistência do ar, e para obter impulso ascencional e velocidade. Uma vez que o maçarico era o voador mais forte, o resto do bando colocou-se atrás dele. E as tarambolas organizaram a sua formação tão espontânea e automaticamente como respiravam.
            Depois de voarem algum tempo, as linhas escuras abaixo deles entrelaçaram-se num verdadeiro tapete. Encontravam-se agora sobre os bosques de abetos, e a tundra tinha ficado para trás. Outras narcejas voavam directamente para sul, na direcção dos planaltos, mas o maçarico conduziu o bando para Sueste, em busca dos arandos do Lavrador. Ocasionalmente entregou a chefia a uma tarambola, e tomou posição no meio da formação. Mas, após um curto repouso, retomou o lugar inicial.


O CORREDOR DA MORTE

                        SESSÕES  DA  ACADEMIA  DAS  CIÊNCIAS  NATURAIS
                        DE FILADÉLFIA  -  1861

            13 de Agosto. Presidência do Dr. Leidy, com a presença de nove membros. Foram apresentados os seguintes artigos para divulgação: Robert Kennicott, “Sobre três novas formas de cobra cascavel”; Elliott Coues, “Notas sobre a ornitologia do Lavrador”...
            Um extraordinário número de maçaricos-esquimós chegou à costa do Lavrador, vindo dos locais de nidificação situados a Norte. Estas aves voam muito rapidamente, em bandos enormes, contando muitas vezes vários milhares de exemplares... Eu próprio pude observar uma espantosa ilustração da persistência com que se agarram a determinados locais de alimentação, mesmo quando severamente molestados. A maré alta ia alagando uma zona pantanosa com cerca de um acre de extensão, onde abundavam os caracóis que eles tanto apreciam. Embora ali estivessem cinco ou seis caçadores, que de todos os lados disparavam incessantemente contra as pobres aves, elas continuavam a circular sobre nós, confundidas e excitadas, apesar de muitas delas irem sendo atingidas e caírem ao solo. Pareciam muito preocupadas com a possibilidade de os caracóis, seu petisco habitual, lhes poderem escapar...

            Por determinação da comissão editorial e bibliotecária, são divulgadas as seguintes sessões da Sociedade de História Natural de Boston, de 1906/1907...
            Comunicação n° 7 - Dr. Méd. Charles W. Townsend e Glover M. Allen, “As aves do Lavrador”... Numenius borealis (Forster), maçarico-esquimó. Um hóspede de Outono no Lavrador, antigamente muito abundante, hoje muito raro.

                                   Vem Agosto e tu estás à beira-mar
                                   Mil belos maçaricos chegam todos os dias.

            Packard escreve deste modo: “A 10 de Agosto de 1860 apareceram os maçaricos em bandos. Vimos um que tinha bem um quilómetro e meio de comprimento e quase outro tanto de largura. O barulho que faziam parecia às vezes o vento que zune no cordame dum navio de mil toneladas...”.
            Porém, aquando da nossa visita à costa do Lavrador, no verão de 1906, já não vimos um único maçarico-esquimó. Falámos com muitos habitantes daqui e todos concordaram em que ele ficou de repente reduzido, sendo outrora muito disseminado. Agora, no Outono, avistam-se apenas dois ou três, ou mesmo nenhum. O capitão Parsons, do barco postal Virginia Lake, disse-nos que ainda havia muitos, aqui há 30 anos. Nesse tempo, antes do pequeno-almoço, abatia ele uma centena, chegando mesmo a atingir vinte com um único tiro. Os pescadores dizimavam-nos aos milhares... Tinham as espingardas preparadas nos pontões e atiravam aos bandos que chegavam aqui, matando 20 ou 25 aves por cada tiro. Resumindo, podemos dizer que os habitantes do Lavrador sempre perseguiram o maçarico-esquimó, mas só entre 1888 e 1890 verificaram que os efectivos se tinham reduzido. A partir de 1892, só um pequeno número destas aves, antigamente tão abundantes, visitou a costa do Lavrador... Parece que esta espécie está em vias de extinção.
(Cont.)