As costas da Nova Escócia e da Nova Inglaterra estavam já
a várias horas de distância, atrás do nevão impenetrável. À sua frente, quem
sabe se apenas a alguns minutos, estava a atmosfera mais quente e mais
tranquila, para lá da tempestade. Porém, mesmo depois de ultrapassarem a frente
fria, tinham que continuar a voar na direcção do mar sem fim, para evitar as
nuvens geladas que agora os empurravam impiedosamente, cada vez mais perto da
crista das ondas. O maçarico sabia disso, não por reflexão mas por
comportamento instintivo. Por uma vaga inspiração que lhe dizia também estar
algures uma fêmea à sua espera, quando os musgos e os líquenes da tundra
ficassem verdes de novo, e o tempo do acasalamento voltasse.
O
maçarico possuía músculos peitorais e tendões bem mais fortes do que as
pequenas tarambolas. Mas agora doíam. Mesmo a ele, custava-lhe um
extraordinário dispêndio de energia vencer a dificuldade trazida pela neve
incrustada nas asas. Uma vez que perdiam altitude, atingiram de novo as camadas
de ar inferiores, instáveis e agitadas. A formação rompeu-se, mas as aves
continuaram juntas, fazendo-se ouvir por altos gritos. Cada ave estava sozinha
num mundo de vento e neve, e só este gorjeio fremente as ligava umas às outras.
Durante
longo tempo voaram no ar frio, sem poderem observar a rota. O maçarico procurou
manter a altitude, até os músculos do peito e as fibras todas do corpo lhe
vibrarem de dor e de cansaço. Ao gorjeio das tarambolas juntou-se em breve um
assobio agudo, cada vez mais forte. Era o ruído da neve estalando na água.
Então o
maçarico conseguiu ver através da cortina branca. Vagas de crista prateada
apareciam à sua frente, cresciam espumando e desapareciam lá atrás. O nevão
abrandou e as tarambolas podiam ver-se de novo. Voavam ao acaso, atrás do
maçarico, e as mais fracas iam ficando para trás. Estavam mais próximas da
água, pois tinham que sacrificar ainda mais altitude para poderem acompanhar as
mais fortes. A neve colava-se-lhes às pontas das asas. E, mal se derretia com o
calor do corpo, logo outra se acumulava.
O
maçarico voou alguns segundos na horizontal, e logo o andamento baixou. Teve
que descer, para ganhar velocidade e outra vez altitude. Podia agora ver
claramente o mar, onde as cristas brancas das ondas se erguiam da água escura.
Às vezes uma vaga erguia-se tão alto, que só por um ou dois metros não atingia
as aves em luta.
Uma onda
gigante elevou-se diante deles. O maçarico venceu com esforço a inércia das
asas e sobrevoou-a a custo. Mergulhou em seguida no leito da onda,
esforçando-se por continuar em frente. A próxima crista era mais baixa, e ele
ultrapassou-a com segurança. Mas atrás dele a grande vaga atacava, raivosa, as
tarambolas. Três aves mais fracas lutaram em vão por ganhar altitude, e ficaram
sem forças, penduradas no ar. Nenhum grito se ouviu. A vaga cresceu e engoliu
as aves. Passou, e elas tinham desaparecido. A natureza, tão selectiva em todas
as coisas, é ainda mais exigente quando se trata da morte. Os mais fracos não
pedem compaixão, nem lhes é concedida misericórdia.
O bando
esforçou-se por continuar, voou rente à água, lutou encarniçadamente para
ultrapassar as cristas das ondas. Gozou, para respirar, as pequenas pausas de
segundos, no ar sossegado dos seus leitos. Então, de um longo talvegue cresceu
uma muralha fervilhante, mais alta que todas as vagas anteriores. A espuma
fustigou as asas do maçarico. Durante segundos teve que lutar com os violentos
turbilhões da corrente para se manter no ar. Mas a espuma varreu uma parte da
neve que se lhe colara às asas. Por um minuto estas puderam mover-se no ar com
toda a força. Depois a neve sobrecarregou-as de novo. Apenas a certeza de que a
frente fria seria em breve ultrapassada fez o maçarico aguentar.
Muito
lentamente o ar foi-se tornando mais quente, tão lentamente que mal se podia
sentir a mudança. Então a neve transformou-se repentinamente em chuva. Estava
ali a parede branca de neve diante deles, e após uma nova crista estalaram-lhes
gotas de chuva nas penas. Alguns segundos depois já tinha derretido a neve das
asas. O maçarico conduziu o resto do bando subindo em frente. A dor e o cansaço
depressa desapareceram, as aves podiam voar outra vez normalmente e os músculos
repousaram. A neve desapareceu na escuridão. Uns minutos depois romperam a
frente fria e atingiram uma zona húmida e tranquila.
O CORREDOR DA MORTE
...
E por vezes, nas tempestades do Nordeste, bandos de maçaricos espantosamente
numerosos eram empurrados pelo vento para as costas da Nova Inglaterra, onde
pousavam completamente extenuados. A sua caça era então um exercício fácil,
podendo simplesmente abater-se à cacetada. A Nantucket chegavam em bandos tão grandes
que as reservas de munições da ilha não eram suficientes. E a carnificina
parava, até chegarem munições da terra firme.
Os
atiradores chamavam-lhes “aves-massa”, pois no Outono os maçaricos eram tão
gordos que o peito lhes rebentava quando caíam no chão, e a camada de gordura
era macia como massa de pão. Não admira que fossem tão perseguidos, pois deviam
ser um bom petisco à mesa.
Eram
mansos e confiantes, e voavam em bandos tão densos que podiam facilmente ser
abatidos em grande número... Dois caçadores que forneciam o mercado em
Massachussetts ganharam 300 dólares com os seus tiros a um único bando...
Crianças vendiam as aves a 6 cêntimos por cabeça... Em 1882, em Nantucket, dois
caçadores abateram numa manhã 87 maçaricos... Em 1894, no mercado de Boston, já
só apareceu um único à venda.
(Cont.)