terça-feira, 30 de junho de 2015
segunda-feira, 29 de junho de 2015
Harmonias
Vão sentados no lugar do meu bilhete, eu concilio e tomo lugar ao lado. Ele fala axim, ela não fala, antes grasna. Tem na garganta uma cana rachada, sopra naquilo e fura-me os tímpanos como um berbequim. Esforço-me por seguir as peripécias dum romancinho que um amigo escreveu e eu vou lendo. Eles não deixam, a ladrar em alta voz sobre o Direito que exige um grande encornanço, e do CEJ que fabrica juízes em dois anos, da Gestão e da Arquitectura, e dos tipos da Lusíada que têm as melhores notas, e das praxes dos caloiros com padrinhos e com tudo.
Falam da praxe como se fosse actividade académica, justificação de vida, um dever do cidadão, como se fosse a cor duma anilina com que pintam os focinhos para se distinguirem do resto da carneirada que apareceu na romaria.
Saio numa paragem a fumar um cigarro, enquanto entram outros viajantes. Um deles reclama o meu assento e temos que mudar tudo.É assim que me livro deles e prossigo o romancinho, e me regozijo com as harmonias secretas que este estranho mundo esconde.
Falam da praxe como se fosse actividade académica, justificação de vida, um dever do cidadão, como se fosse a cor duma anilina com que pintam os focinhos para se distinguirem do resto da carneirada que apareceu na romaria.
Saio numa paragem a fumar um cigarro, enquanto entram outros viajantes. Um deles reclama o meu assento e temos que mudar tudo.É assim que me livro deles e prossigo o romancinho, e me regozijo com as harmonias secretas que este estranho mundo esconde.
domingo, 28 de junho de 2015
sábado, 27 de junho de 2015
Costa cala-se
«(...) Quem cala consente. (...) Costa, imitando Seguro embora estando nos seus antípodas éticos, cala-se a respeito do legado socialista inclusive de um Governo a que pertenceu. Cala-se a respeito da interpretação das causas da crise que conduziu ao resgate. Cala-se a respeito do estado da Justiça. Cala-se a respeito da traição que Pedro&Paulo fizeram quando chumbaram o PEC IV e depois quando mentiram de forma radical e absoluta na campanha eleitoral. Resultado: Costa consente que o PS seja tratado como o bombo da festa, da festa da direita mais decadente que já apareceu a governar Portugal em democracia.
Boa sorte.»
[Aqui]
Boa sorte.»
[Aqui]
sexta-feira, 26 de junho de 2015
quinta-feira, 25 de junho de 2015
EMFAR
Sempre tive, adstrito à condição militar, direito a uso e porte de arma. E tenho ali uma arma pessoal perfeitamente legal, registada na PSP, com livrete e o mais que lhe compete.
Perante o desplante destes marginais que mandam, deixo dito que ainda vejo bem o ponto de mira e sei muito bem meter uma bala na câmara, no caso de alguma vez me submeterem o uso e porte de arma a qualquer autoridade da PSP.
É que não reconheço qualquer idoneidade a um estado miserável, que abandona sem apoio dezenas de milhares de cidadãos com stress pós-traumático colonial, mas vem agora com um desplante destes. Entretanto o cretino do MDN põe o rabo a jeito.
Perante o desplante destes marginais que mandam, deixo dito que ainda vejo bem o ponto de mira e sei muito bem meter uma bala na câmara, no caso de alguma vez me submeterem o uso e porte de arma a qualquer autoridade da PSP.
É que não reconheço qualquer idoneidade a um estado miserável, que abandona sem apoio dezenas de milhares de cidadãos com stress pós-traumático colonial, mas vem agora com um desplante destes. Entretanto o cretino do MDN põe o rabo a jeito.
quarta-feira, 24 de junho de 2015
Assim é que está bem!
Era uma foice, um martelo e uma sigla. Andei a pintá-los na foz do Côa, nestes espelhos de lousa, muito antes de se falar em cavalinhos.
Passou tempo, veio a chuva, lavou tudo. E assim é que está bem.
terça-feira, 23 de junho de 2015
segunda-feira, 22 de junho de 2015
domingo, 21 de junho de 2015
Grécia é isto!
Uma sociedade gangrenada por governos conservadores, um país garrotado por agiotas internacionais, um povo sangrado por elites de míopes que pagarão cara a cegueira.
sábado, 20 de junho de 2015
Canícula
O Porto não sabe viver com uma caloraça destas, não há nortada que o salve. As mulheres mostram-se às cores, despem-se como se fossem víquingues. Os indígenas colam-se às paredes, pela sombra, amolecem nas bancas da sueca debaixo das magnólias. Os manjericos do S. João ofegam pelas pracetas. Só os italianos, os flamengos, os bretões galrejam pela rua. Chegaram na Easyjet, bebem cerveja gelada e vão partir.
Robalo
Lembro-me dele no mar da Finisterra, há anos. O pescador estava ali em Barrañan, de cana espetada no areal. Quando ela se pôs a vibrar, o galego pegou-lhe a mãos ambas e começou a dar à manivela.
Não tardou que um robalo soberbo aparecesse a contorcer-se na espuma. As barbatanas dele eram um espavento, levantadas, armadas, revoltadas. Pareciam mesmo as velas do Cortez, quando apareciam ao largo com a prata do Eldorado.
Um robalo assim é um petisco. Nada como uns robalitos que aí andam, frouxos, moles, dos charcos da aquacultura.
Não tardou que um robalo soberbo aparecesse a contorcer-se na espuma. As barbatanas dele eram um espavento, levantadas, armadas, revoltadas. Pareciam mesmo as velas do Cortez, quando apareciam ao largo com a prata do Eldorado.
Um robalo assim é um petisco. Nada como uns robalitos que aí andam, frouxos, moles, dos charcos da aquacultura.
Rio-Vivo
«Em S. Pedro do Rio Seco, próximo de Almeida, naquele sábado de Agosto, depois duma chuva leve, pudemos celebrar Eduardo Lourenço, com o sol a espreitar entre as nuvens, no meio do seu povo, dos seus familiares e amigos. E alguém dizia-me que todos gostaram muito de ouvir o pensador na linguagem acessível das pessoas comuns. Em palavras chãs, Eduardo lembrou os pais, os irmãos, os amigos, os companheiros, nos dez anos em que viveu próximo do coração da Beira-Serra. Esse foi o tempo de S. Pedro, como está transcrito no memorial que Leonel Moura criou para homenagear o ensaísta de O Labirinto da Saudade: "Eu tenho um espaço particular que é o da minha aldeia. Da minha aldeia e desses dez anos que aí vivi e foram diferentes de tudo o resto que me aconteceu. Estava no mundo e o mundo estava em mim. Depois nunca mais soube, realmente, onde estou e nunca o saberei." Aí estão as suas raízes, e sentimos bem que se tratava dum regresso gostoso e emocionado.
À beira da casa onde nasceu, adivinha as palavras do seu irmão Adriano, discreto e laborioso organizador (com Luís Queirós, M. Alcino Fernandes, A.J.Dias de Almeida e Alexandra Isidro) daquele momento de gratidão.Quantas memórias desta casa e das pessoas que a povoaram. É um mundo que aí se encontra. (...)
"A literatura portuguesa tem duas notas dominantes, a amorosa e a elegíaca. Portugal parece a pátria dos amores tristes e dos grandes naufrágios." E. L. não esquece, como Unamuno, a melancolia e o sentimentalismo dos portugueses, mas procura ir além, interrogando os mitos como sinais emancipadores, sob o aguilhão da crítica. E, no fundo, a sede de infinito que ambos encontram em Antero torna-se sentimento trágico num e utopia crítica e emancipadora no outro. "A cada um a sua utopia [diz E.L.]. Utopia por utopia, como europeu desiludido mas não suicida, prefiro ainda a duma Europa apostada em existir segundo o voto dos que há meio século a sonhavam, não como a continuidade óbvia de um passado 'europeu' sem identidade, mas como uma aposta numa Europa, empírica e voluntariosamente construída pelas 'várias europas' que são cada uma das suas nações. (...)»
[in G. d'Oliveira Martins, Na Senda de Fernão Mendes, ed. Gradiva]
À beira da casa onde nasceu, adivinha as palavras do seu irmão Adriano, discreto e laborioso organizador (com Luís Queirós, M. Alcino Fernandes, A.J.Dias de Almeida e Alexandra Isidro) daquele momento de gratidão.Quantas memórias desta casa e das pessoas que a povoaram. É um mundo que aí se encontra. (...)
"A literatura portuguesa tem duas notas dominantes, a amorosa e a elegíaca. Portugal parece a pátria dos amores tristes e dos grandes naufrágios." E. L. não esquece, como Unamuno, a melancolia e o sentimentalismo dos portugueses, mas procura ir além, interrogando os mitos como sinais emancipadores, sob o aguilhão da crítica. E, no fundo, a sede de infinito que ambos encontram em Antero torna-se sentimento trágico num e utopia crítica e emancipadora no outro. "A cada um a sua utopia [diz E.L.]. Utopia por utopia, como europeu desiludido mas não suicida, prefiro ainda a duma Europa apostada em existir segundo o voto dos que há meio século a sonhavam, não como a continuidade óbvia de um passado 'europeu' sem identidade, mas como uma aposta numa Europa, empírica e voluntariosamente construída pelas 'várias europas' que são cada uma das suas nações. (...)»
[in G. d'Oliveira Martins, Na Senda de Fernão Mendes, ed. Gradiva]
sexta-feira, 19 de junho de 2015
Haiku dois
«Num atalho da montanha/sorrindo/uma violeta.»
«Mesmo um velho cavalo/é belo de manhã/sobre a neve.»
Bashô [in G. d'Oliveira Martins, Na Senda de Fernão Mendes]
«Mesmo um velho cavalo/é belo de manhã/sobre a neve.»
Bashô [in G. d'Oliveira Martins, Na Senda de Fernão Mendes]
Pazes
Vinte anos demorei até chegar aqui. A rua está bonita, já tinha saudades dela. E fiz as pazes com o universo e comigo.
É lenta a sabedoria, mas ainda chegou a tempo.
É lenta a sabedoria, mas ainda chegou a tempo.
O piropo. Congeminações ao correr duma enxada
Nas sociedades primitivas e bárbaras a mulher era uma presa. Sexual, laboral e parideira. Era um objecto de posse. Só a socialização moderna pôs em causa esse estatuto, que ainda está em vigor.
Vejam-se todas as guerras, as antigas e as modernas, e o papel que reservavam à mulher. Vejam-se as jovens escolarizadas, 30% das quais encaram a violência relacional como manifestação de amor. Veja-se a vida na aldeia, em que os velhos atavismos mais perduram.
As mulheres integraram o estatuto e já não passam sem ele, num terreno movediço disputado por conceitos em conflito, como a igualdade de género, a violência doméstica, o sentimento de posse e o piropo.
É muito rara a mulher que se mantém indiferente ao assédio e à intrusão do piropo, com pimenta e sal no ponto. Mas isso pisa os terrenos ambíguos da coqueteria e do amor-próprio.
Vejam-se todas as guerras, as antigas e as modernas, e o papel que reservavam à mulher. Vejam-se as jovens escolarizadas, 30% das quais encaram a violência relacional como manifestação de amor. Veja-se a vida na aldeia, em que os velhos atavismos mais perduram.
As mulheres integraram o estatuto e já não passam sem ele, num terreno movediço disputado por conceitos em conflito, como a igualdade de género, a violência doméstica, o sentimento de posse e o piropo.
É muito rara a mulher que se mantém indiferente ao assédio e à intrusão do piropo, com pimenta e sal no ponto. Mas isso pisa os terrenos ambíguos da coqueteria e do amor-próprio.
quinta-feira, 18 de junho de 2015
Não há fome que não dê em fartura
Desta vez o Porto recebeu-me em uniforme de gala. E já não era sem tempo. Mal feito fora, no pico do solstício!
Pelas pracetas voltaram os agapantos, de gávea engalanada. A bicha do Majestic é reduzida, mas a papelaria já fechou.
Pelas pracetas voltaram os agapantos, de gávea engalanada. A bicha do Majestic é reduzida, mas a papelaria já fechou.
segunda-feira, 15 de junho de 2015
Patos-bravos
Os patos-bravos moram cá em baixo, à volta da represa, mas vão fazer criação nas cumeadas da serra. Vá-se lá saber porquê, se não for para inculcarem aos filhos uma visão abrangente do mundo, de alta cota. E só descem no fim do propedêutico.
Este, que é fêmea, apareceu um dia a coxear, a meio do caminho, num logradouro do povo. Amparado por um cristão entrou no gado doméstico. Esqueceu as cotas altas, sobreviveu a comer pepinos tenros, foi ali um cabo dos trabalhos. Porém sobreviveu. E hoje em dia lá vai, a manquejar, de geração atrás, entre as férias na Figueira e uns banhos na Granja. É ela a matriarca do logradouro inteiro.
A saga familiar tem registadas malfeitorias várias: da raposeta matreira, de algum cachorro em precisão aguda, o gavião nunca foi ao pelourinho. Porém ultimamente aconteceram surpresas, há vários desaparecidos, investigações em curso. Fala-se de ratazanas emboscadas nas dálias, que não desdenham um patito distraído. Ou de cobras, que acordaram do inverno na parede e andam esfomeadas.
A pata coxa lá vai, à frente da filharada, indiferente ao sobressalto. Enquanto sobrar alguém a galrejar atrás não perde a compostura.
Faz-me lembrar uns lorpas que eu cá sei. Só se dão conta quando não restar nenhum, e é então que arrancam os cabelos!
Este, que é fêmea, apareceu um dia a coxear, a meio do caminho, num logradouro do povo. Amparado por um cristão entrou no gado doméstico. Esqueceu as cotas altas, sobreviveu a comer pepinos tenros, foi ali um cabo dos trabalhos. Porém sobreviveu. E hoje em dia lá vai, a manquejar, de geração atrás, entre as férias na Figueira e uns banhos na Granja. É ela a matriarca do logradouro inteiro.
A saga familiar tem registadas malfeitorias várias: da raposeta matreira, de algum cachorro em precisão aguda, o gavião nunca foi ao pelourinho. Porém ultimamente aconteceram surpresas, há vários desaparecidos, investigações em curso. Fala-se de ratazanas emboscadas nas dálias, que não desdenham um patito distraído. Ou de cobras, que acordaram do inverno na parede e andam esfomeadas.
A pata coxa lá vai, à frente da filharada, indiferente ao sobressalto. Enquanto sobrar alguém a galrejar atrás não perde a compostura.
Faz-me lembrar uns lorpas que eu cá sei. Só se dão conta quando não restar nenhum, e é então que arrancam os cabelos!
domingo, 14 de junho de 2015
Ó Costa!
Ou te pões fino,
e assumes o PS e o seu passado em que tomaste parte (o bom, o mau e o péssimo),
e a lúcida e histórica e real resistência e negação de Sócrates à vinda da troika em 2011,
e respondes taco-a-taco à perfídia da direita mais canalha e decadente que já nos caiu em sorte,
(amparada num justicialismo corrompido, persecutório e parcial,
e numa imprensa mercenária e venal de bandalhos)...
ou então persistes nessa gincana de passar entre os pingos da chuva das aparências que só existe na tua cabeça,
permites assim que seja esquartejado em praça pública o preso 44,
e acabas f*** e mal pago!
E nós todos contigo, é claro!
e assumes o PS e o seu passado em que tomaste parte (o bom, o mau e o péssimo),
e a lúcida e histórica e real resistência e negação de Sócrates à vinda da troika em 2011,
e respondes taco-a-taco à perfídia da direita mais canalha e decadente que já nos caiu em sorte,
(amparada num justicialismo corrompido, persecutório e parcial,
e numa imprensa mercenária e venal de bandalhos)...
ou então persistes nessa gincana de passar entre os pingos da chuva das aparências que só existe na tua cabeça,
permites assim que seja esquartejado em praça pública o preso 44,
e acabas f*** e mal pago!
E nós todos contigo, é claro!
Avatares
É Guilherme d'Oliveira Martins que o refere, em Na Senda de Fernão Mendes, ed.Gradiva, a que havemos de voltar.
Diz ele que, nos anos oitenta do séc. XIX, o embaixador Jaime Magalhães de Lima visitou o seu mestre Tolstói, relatando depois esse encontro memorável.
«Um dia, um conde desse dourado império dos czars vestiu-se de mujique, e mais do que simplesmente, pobremente, foi esconder-se na sua aldeia e começou a ceifar o trigo, semear o grão e construir a cabana.»
Realmente agora me dou conta! Já tenho tropeçado aí num avatar, mas culpei disso a velhice!
Diz ele que, nos anos oitenta do séc. XIX, o embaixador Jaime Magalhães de Lima visitou o seu mestre Tolstói, relatando depois esse encontro memorável.
«Um dia, um conde desse dourado império dos czars vestiu-se de mujique, e mais do que simplesmente, pobremente, foi esconder-se na sua aldeia e começou a ceifar o trigo, semear o grão e construir a cabana.»
Realmente agora me dou conta! Já tenho tropeçado aí num avatar, mas culpei disso a velhice!
sábado, 13 de junho de 2015
Há minudências que marcam, como um ferrete na testa!
Júlio Pereira, estilista da mulher do presidente, grande-oficial da Ordem do Infante D. Henrique?! Mas o que é isto?!!!
A propósito duma conferência
Enquanto se tratou de construir um mundo, os filósofos antigos eram úteis. Iluminavam caminhos.
Os pensadores modernos padecem de irrelevância. Especulam sobre o que está, mas adormecem a meio. Não nos acendem o que poderia estar, e melhor seria que estivesse.
Pois que não são criativos, acabam repetidores. Nenhuma acção é com eles, basta-lhes o pensamento. E ficam surpreendidos, quando nós desertamos para o estádio.
Os pensadores modernos padecem de irrelevância. Especulam sobre o que está, mas adormecem a meio. Não nos acendem o que poderia estar, e melhor seria que estivesse.
Pois que não são criativos, acabam repetidores. Nenhuma acção é com eles, basta-lhes o pensamento. E ficam surpreendidos, quando nós desertamos para o estádio.
Parábola dos marintéus amarelos
A trovoada chega, selectiva. Vem por cordas. Onde cai arrasta as terras, lambe o saibro dos caminhos. Se traz pedra, faz colheitas.
Nesta vinha do Senhor não vai haver vindimas, a mais serão os obreiros que se ocupam delas.
O dono destes mirtilos vai ali na camioneta, cabisbaixo e pensativo. Mimou-os durante o ano, não lhes faltou com adubos, deu-lhes regas gota-a-gota. Nas vésperas da colheita encontra a colheita feita, com bandadas de estorninhos a reconfortar os papos.
Dizemos que isto é injusto, uma dor de alma. Porém a natureza não tem alma. Não reconhece injustiças, nem especula sobre metafísicas. Limita-se a estar ali, diz o que tem a dizer, e oferece-se em usufruto.
Nesta figueira não haverá figos. E os marintéus amarelos relincham sem um protesto. É esta a lei.
Marrã
Na madrugada fria de há cem anos nasceu-lhe um filho varão. E ao outro dia o pai não descansou. Foi-se logo ao Zé Barbeiro, que matava o seu porquito, trouxe um quilo de marrã. A celebrar.
Ontem soube o que isso era, fui prová-la ao restaurante. E não achei celebração à altura. Mas ai de mim, que julgo em causa própria.
Ontem soube o que isso era, fui prová-la ao restaurante. E não achei celebração à altura. Mas ai de mim, que julgo em causa própria.
Minuetes
Cheguei a imaginar que vinham de visita, a desejar-me bons-dias, a turistar no mundo, sei lá eu! Uma dezena de poupas.
Qual o quê! A natureza não pensa, e rituais só cumpre os do instinto. Flanavam ali ao canto a tomar o seu sol, a escapar às frialdades matinais. E mal abri a cortina debandaram.
Folgazonas e desajeitadas, de crista muito enristada, aproveitaram o palco, desenharam pelo ar cabriolas de acaso, improvisaram uns minuetes muito contemporâneos e lá foram. À cautela. E eu nunca as tinha visto todas juntas.
sexta-feira, 12 de junho de 2015
Ó Jardim!
Só te faltam dinheiro e assinaturas para a candidatura a Belém? Pois conta comigo, porra!
És o figurante que faltava no terceiro acto da nossa tragicomédia. E no enredo encenado pela múmia do Possolo, qualquer Parvo vicentino tem vantagens evidentes.
És o figurante que faltava no terceiro acto da nossa tragicomédia. E no enredo encenado pela múmia do Possolo, qualquer Parvo vicentino tem vantagens evidentes.
Apeadeiros
Há um par de dias, o comboio chegou tão atrasado que eu já temia o pior. Pior seria ter ela desembarcado no mesmo apeadeiro de há um século.
Na ocasião vínhamos ambos à aldeia, a bem dizer em romagem de saudades. Eu chegava de Lisboa, lá trepei a uma couraça de Coimbra e encontrei-a. Tinha ela para trazer uma mala de faianças, arranjada por uma amiga, dos despojos duma fábrica que já desapareceu. E foi assim que apanhámos o regional da Beira.
Foi-se o Luso, foi Mortágua, passou Santa Comba Dão. E durante a madrugada parámos numa estação, a próxima era o destino. Foi então que apareceu o tal apeadeiro.
O comboio estacionou no meio da escuridão, havia uma plataforma com duas luzes ao fundo, uma passagem de nível, e uma construção perdida ali no descampado. E ela, muito agitada, que estamos em Celorico, temos que sair agora. Saltámos fora. E de repente ficámos nos braços da noite escura, com uma mala pesadíssima na mão.
Meti o cinto na argola, pendurei-o a tiracolo, e lá fomos, linha fora, a saltitar nas travessas. Mas andar era um tormento. A distância entre as travessas era menor que a passada, e as bermas eram cascalhos onde brincavam regatos.
Rompia o dia caí num banco da gare. Até que, por puro dó, uma alminha caridosa aceitou deixar-me em casa.
Nunca nenhuma iguaria me compensou do tormento, a recender na baixela. Ou sou eu que sou frugal, ou me tento pelos atalhos!
Na ocasião vínhamos ambos à aldeia, a bem dizer em romagem de saudades. Eu chegava de Lisboa, lá trepei a uma couraça de Coimbra e encontrei-a. Tinha ela para trazer uma mala de faianças, arranjada por uma amiga, dos despojos duma fábrica que já desapareceu. E foi assim que apanhámos o regional da Beira.
Foi-se o Luso, foi Mortágua, passou Santa Comba Dão. E durante a madrugada parámos numa estação, a próxima era o destino. Foi então que apareceu o tal apeadeiro.
O comboio estacionou no meio da escuridão, havia uma plataforma com duas luzes ao fundo, uma passagem de nível, e uma construção perdida ali no descampado. E ela, muito agitada, que estamos em Celorico, temos que sair agora. Saltámos fora. E de repente ficámos nos braços da noite escura, com uma mala pesadíssima na mão.
Meti o cinto na argola, pendurei-o a tiracolo, e lá fomos, linha fora, a saltitar nas travessas. Mas andar era um tormento. A distância entre as travessas era menor que a passada, e as bermas eram cascalhos onde brincavam regatos.
Rompia o dia caí num banco da gare. Até que, por puro dó, uma alminha caridosa aceitou deixar-me em casa.
Nunca nenhuma iguaria me compensou do tormento, a recender na baixela. Ou sou eu que sou frugal, ou me tento pelos atalhos!
quinta-feira, 11 de junho de 2015
A minh'alma fica parva!
Delataram-mo há dias. Os jovens escritores que por aí se deslocam, a encontros com leitores, não o fazem sem cobrar o seu cachet.
Eu não quis acreditar. Mas já me cá tinha parecido serem os mais deles oficiais do entretenimento, muito mais que oficiantes de cultos literários.
Eu não quis acreditar. Mas já me cá tinha parecido serem os mais deles oficiais do entretenimento, muito mais que oficiantes de cultos literários.
Futricagem
Os aviadores da TAP vão aprender finalmente o que é que o Reagan fez das elites do pessoal de voo americano, nos velhos anos oitenta. Num abrir e fechar de olhos!
Merecem-no de sobejo. E esse abutre, que é secretário de estado, já tem um lugar cativo no novo conselho de administração.
Merecem-no de sobejo. E esse abutre, que é secretário de estado, já tem um lugar cativo no novo conselho de administração.
Cultivadores do espoliozinho
Uns tipos que já morreram antes do Galileu, e só vivem aferrados ao umbigo, com o sol a rodar à volta...
Ainda acreditam que os grilos comem alfaces e não é verdade! Qualquer livro lhes diz isso, basta lê-lo.
Ainda acreditam que os grilos comem alfaces e não é verdade! Qualquer livro lhes diz isso, basta lê-lo.
Vozes de burro sem cabresto
Se não lhe chegas às goelas, afinfa-lhe nas canelas! É o que faz um tal J. M. Tavares, hoje no PÚBLICO:
«Caros Nicolau (Santos) e Daniel (Oliveira), [que manifestaram respeito pela dignidade de Sócrates, a sua coerência e a sua coragem]: desligadas da sua dimensão moral, a coerência e a coragem não só não são qualidades, como podem ser terríveis defeitos, próprios dos fanáticos.»
«Caros Nicolau (Santos) e Daniel (Oliveira), [que manifestaram respeito pela dignidade de Sócrates, a sua coerência e a sua coragem]: desligadas da sua dimensão moral, a coerência e a coragem não só não são qualidades, como podem ser terríveis defeitos, próprios dos fanáticos.»
quarta-feira, 10 de junho de 2015
A Pátria e os donos dela
Hoje mais claro do que nunca, há séculos que é assim na nossa Pátria: os donos dela dizimam os melhores, para garantir o seu sossego.
O mais antigo é o ínclito infante D. Pedro, o príncipe das sete partidas que foi duque de Coimbra. Saiu de Portugal na Idade Média, viajou pela Europa e regressou um espírito moderno. A fidalguia que cercava um rei-criança atraiu-o a Alfarrobeira e liquidou-o.
Vem depois o Damião de Góis. Letrado humanista e reformado, serve o rei em múltiplos lugares da Europa, conhece Lutero e Melanchton, hospeda-se em Erasmo. A inquisição condena-o por heresia, vitima-o em Alenquer.
Do Marquês de Pombal não vale a pena falar. Foi um sanguinário déspota formado na Europa, que esquartejou os Távoras no Beco do Chão Salgado. Uma única pergunta subsiste: no seu tempo, que poderia fazer pela Pátria um ministro iluminado, sem antes partir os dentes à aristocracia indígena? Depois da morte do rei, os parasitas duma rainha louca destruíram-no aos poucos, anularam-lhe o legado.
Outros exemplos não faltam, para vergonha e desgraça da Pátria. A forma das coisas muda, a essência permanece. O preso 44 aí está para o demonstrar.
O mais antigo é o ínclito infante D. Pedro, o príncipe das sete partidas que foi duque de Coimbra. Saiu de Portugal na Idade Média, viajou pela Europa e regressou um espírito moderno. A fidalguia que cercava um rei-criança atraiu-o a Alfarrobeira e liquidou-o.
Vem depois o Damião de Góis. Letrado humanista e reformado, serve o rei em múltiplos lugares da Europa, conhece Lutero e Melanchton, hospeda-se em Erasmo. A inquisição condena-o por heresia, vitima-o em Alenquer.
Do Marquês de Pombal não vale a pena falar. Foi um sanguinário déspota formado na Europa, que esquartejou os Távoras no Beco do Chão Salgado. Uma única pergunta subsiste: no seu tempo, que poderia fazer pela Pátria um ministro iluminado, sem antes partir os dentes à aristocracia indígena? Depois da morte do rei, os parasitas duma rainha louca destruíram-no aos poucos, anularam-lhe o legado.
Outros exemplos não faltam, para vergonha e desgraça da Pátria. A forma das coisas muda, a essência permanece. O preso 44 aí está para o demonstrar.
Depois de mandar vinte anos em Portugal
Cavaco canta, em Lamego, a última canção à sua comovida pátria.
Cavar a horta!
Falam-nos dum passado de marinheiros audazes, em que nos fomos ao mar, a descobrir novos mundos que demos ao mundo velho.
Do mar trouxemos por junto uma epopeia de mitos, feita de deusas carnudas, e uns tantos heróis pintados, e adamastores de papel.
Arrenego um tal passado! Que ou não somos, agora, o que já fomos, ou nunca fomos o que nos dizem que somos.
Levaram-nos, é o mais certo, a fingir o que não fomos. Se assim foi, nunca seremos o que nos dizem que somos. Nas nuvens é que ficámos.
E eu passo a manhã da raça a jardinar na horta.
Do mar trouxemos por junto uma epopeia de mitos, feita de deusas carnudas, e uns tantos heróis pintados, e adamastores de papel.
Arrenego um tal passado! Que ou não somos, agora, o que já fomos, ou nunca fomos o que nos dizem que somos.
Levaram-nos, é o mais certo, a fingir o que não fomos. Se assim foi, nunca seremos o que nos dizem que somos. Nas nuvens é que ficámos.
E eu passo a manhã da raça a jardinar na horta.
Usufruto
As cores, e as formas delas, podemos nós capturá-las.
Já não aromas e cheiros que andam no céu das manhãs,nem a memória guardada por calçadas e veredas que gerações nos deixaram.
Benesse que uns deuses pródigos nos cedem em usufruto.
Ó Tacheira!
Foste cair no esgoto!
'Tão e agora mergulhas-te em lixívia?!
É que uma limpeza a seco não te vai desencardir!
'Tão e agora mergulhas-te em lixívia?!
É que uma limpeza a seco não te vai desencardir!
terça-feira, 9 de junho de 2015
Tresler a história
Uns farsolas anunciam em festa a celebração dos seiscentos anos da conquista de Ceuta, e o encontro de culturas do Atlântico e do Mediterrâneo. Fazem disso a primeira lança-em-África, mas treslêem a história e mitificam a vida.
Quem tudo viu deixou dito que Ceuta foi simplesmente tomada, ao bom serviço duma rapaziada de corte. A cidade estava de portas abertas, tratou-se apenas de entrar e cortar as cabeças. A comunhão de culturas foi o sarrabulho da sangueira mourisca.
Os mixordeiros relapsos são assim. E acabam sempre a torcer a orelha, quando já não deita sangue.
Quem tudo viu deixou dito que Ceuta foi simplesmente tomada, ao bom serviço duma rapaziada de corte. A cidade estava de portas abertas, tratou-se apenas de entrar e cortar as cabeças. A comunhão de culturas foi o sarrabulho da sangueira mourisca.
Os mixordeiros relapsos são assim. E acabam sempre a torcer a orelha, quando já não deita sangue.
Só fanáticos fascistas facciosos e patifes
É que ainda não perceberam duas coisas:
1 - Porque será que Sócrates começou a ser acossado pelas elites indígenas desde o primeiro dia em que entrou no seu primeiro governo;
2 - O falhanço dos facínoras ficcionistas das togas; só lhes falta falsificar uma prova qualquer e fabricar um depoimento falso.
1 - Porque será que Sócrates começou a ser acossado pelas elites indígenas desde o primeiro dia em que entrou no seu primeiro governo;
2 - O falhanço dos facínoras ficcionistas das togas; só lhes falta falsificar uma prova qualquer e fabricar um depoimento falso.
A trovoada chegou
Faíscas riscam o céu, estrondeiam os trovões a dez segundos, vem aí a grande Berta! Calam as aves, que desapareceram. As andorinhas cochicham no seu canto. Saltaram os disjuntores. Os trovões já estão a cinco, a chuva não tarda aí. Aparece o arco-íris. Imperturbáveis só os quixotes eólicos a rodar na cumeada. E eu dispenso-me da rega vespertina, janto uns restos de arroz-doce, fico a ouvir o cantar dos algerozes.
Não fora o bom augúrio colorido, já me tinha ido a Santa Bárbara!
Não fora o bom augúrio colorido, já me tinha ido a Santa Bárbara!
segunda-feira, 8 de junho de 2015
Pena dupla
Andam aí uns letrados a tropeçar nas sombras de Saramago, angustiados com o seu gesto terrível de retirar do Memorial do Convento a dedicatória inicial a Isabel da Nóbrega. Tais especialistas do mexerico esquecem facilmente que, de Saramago, tudo quanto sobra é a obra. Lê-la e usufruí-la é o único gesto útil.
Já em tempos vim à fala com um figurão medíocre e frustrado que padecia duma obsessão: o Saramago era um pulha, porque tinha retirado do Levantado do Chão a memória dos camponeses do Lavre, de cuja oralidade ele extraiu o fascinante modo de narrar que mais ninguém usou. O tal que nos pôs a lê-lo, a nós todos e à Europa, nos anos oitenta. E foi assim até ao Ensaio Sobre a Cegueira e ao Nobel. O resto é repetição irrelevante.
Quase tanto como um filmezinho que aí andou, e revi recentemente. Faz-me pena, a dolorosa exposição da decadência do mestre já senil. Sei bem que o próprio se pôs muito a jeito, talvez a carne seja mesmo fraca. É pena dupla!
Já em tempos vim à fala com um figurão medíocre e frustrado que padecia duma obsessão: o Saramago era um pulha, porque tinha retirado do Levantado do Chão a memória dos camponeses do Lavre, de cuja oralidade ele extraiu o fascinante modo de narrar que mais ninguém usou. O tal que nos pôs a lê-lo, a nós todos e à Europa, nos anos oitenta. E foi assim até ao Ensaio Sobre a Cegueira e ao Nobel. O resto é repetição irrelevante.
Quase tanto como um filmezinho que aí andou, e revi recentemente. Faz-me pena, a dolorosa exposição da decadência do mestre já senil. Sei bem que o próprio se pôs muito a jeito, talvez a carne seja mesmo fraca. É pena dupla!
Isto não é um jornalista que se possa ler a sério, pois que, se outras não tiver, um jornalista tem responsabilidades de cidadania
Antes é um espírito errante e confundido, um ogre troglodita, um psicopata sem camisa de forças, um inimputável que fugiu de Rilhafoles, um triste mercenário em desespero por mostrar serviço.
domingo, 7 de junho de 2015
O mundo 'tá à espera!
Quando é que o Pentágono manda as esquadrilhas da Nato (esse baluarte dos povos contra a tirania!) pôr na ordem os marginais do regime da Arábia Saudita? O tal que sustenta o dólar, como moeda exclusiva do mercado dos petróleos.
Sete anos de pastor
Durante a caminhada recolhi as imagens, ruminei texto para elas, guardei-o no gravador.
Chegado a casa, num gesto estouvanado, limpei-as do cartão antes de as ter guardado.
Não fora esta canícula, não fora a insensatez, já imporia a mim mesmo a repetição de tudo.
Salvou-me a lembrança dum poeta, pois quem mais?! E sosseguei.
Chegado a casa, num gesto estouvanado, limpei-as do cartão antes de as ter guardado.
Não fora esta canícula, não fora a insensatez, já imporia a mim mesmo a repetição de tudo.
Salvou-me a lembrança dum poeta, pois quem mais?! E sosseguei.
Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
e a ela só por prémio pretendia.
Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando-se com vê-la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe dava Lia.
Vendo o triste pastor que com enganos
lhe fora assim negada a sua pastora,
como se a não tivera merecida;
começa de servir outros sete anos,
dizendo: -Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta a vida.
[Lírica de Camões]
Prisão domiciliária ou armistício de canalhas?!
Ao fim de seis meses de achincalhanço geral do ex-PM José Sócrates (que procurava levar na mesma rede o PS e António Costa), a fina-flor do entulho da corporação dos magistrados (onde pontua o super-Alex e o ficcionista Teixeira) conseguiu condená-lo perante uma opinião pública de sonâmbulos e pulhas, com a colaboração canina de certo jornalismo de sarjeta.
Perante o falhanço das inquirições (porque as ficções não se provam, apenas são reais na página impressa!) o Teixeira vem propôr a prisão em casa. O super-juiz anuirá, Sócrates ficará com liberdade para tomar em casa o seu muesli ao pequeno-almoço, e ficará indefinidamente à espera de acusação, enquanto o assunto se esvai da imprensa canina como um balão de mecha do São João do Porto, com o réu já sentenciado no tribunal da opinião pública.
Espero que o preso 44 recuse a mudança da situação. Ou a liberdade, ou uma alfurja em Évora! Na guerra não se fazem armistícios com canalhas.
Perante o falhanço das inquirições (porque as ficções não se provam, apenas são reais na página impressa!) o Teixeira vem propôr a prisão em casa. O super-juiz anuirá, Sócrates ficará com liberdade para tomar em casa o seu muesli ao pequeno-almoço, e ficará indefinidamente à espera de acusação, enquanto o assunto se esvai da imprensa canina como um balão de mecha do São João do Porto, com o réu já sentenciado no tribunal da opinião pública.
Espero que o preso 44 recuse a mudança da situação. Ou a liberdade, ou uma alfurja em Évora! Na guerra não se fazem armistícios com canalhas.
sábado, 6 de junho de 2015
Aviso de mobilização
[Portalegre, 1952]
Passaram pelo meu nome e eu era um número
- menos que a folha seca dum herbário.
Colheram-me com mãos de zelo e gelo:
escreveram-no sem mágoa num postal.
Convite a que morresse... mas por quê?
Convite a que matasse... mas por quem?
Ó vago amanuense, ó apressado
e súbito verdugo, que te ocultas
numa rubrica rápida, ilegível,
que dirás tu do meu e de outros nomes,
que dirás tu de mim e de outros mais,
no Dia do Juízo já tão próximo
- que dirás tu de nós, se nem tremeu,
na rápida rubrica, a tua mão?
Bem sei que a tua mão só executa;
mas para além do ombro a ti pertences.
Bem puderas chorar, ter hesitado...
- A mancha duma lágrima bastara
para dar um sentido a esta morte
a que a tua indiferença nos convoca!
(David Mourão-Ferreira]
[Boletim das Bibliotecas Itinerantes Gulbenkian, 1996)
O meu cavalo das sete cores
O Serviço das Bibliotecas Itinerantes da Gulbenkian editava um Boletim que fornecia aos utentes. Este número de 1991, com tiragem de 70 mil exemplares, era dedicado ao público infantil e dava a ler quarenta histórias inéditas.
Era branco o meu cavalo,
Certo dia quis pintá-lo.
Mas estava sem saber
Que cor iria escolher.
Olho o céu que me aconselha
Cores do arco-da-velha.
Pintei-o, então, com cuidado,
Do violeta ao encarnado.
Quem tem cavalo mais belo?
Logo o arreio, logo o selo,
Logo o monto, decidido:
Eu alegre, ele garrido.
Mas quando o meti à estrada
Deixou a cor encarnada.
E a agitar a crina em franja
Desbotou-lhe a cor laranja.
Dou-lhe, por meta, uma estrela.
E que é da cor amarela?
Foi pastar ao prado e perde
A quarta cor: a cor verde.
Sopra-lhe o vento do Sul
E leva-lhe a cor azul.
Vêm as chuvas de Abril
E apagam-lhe a cor de anil.
Corre, então, como uma seta
E foge-lhe a cor violeta.
E agora monto, discreto,
(António Manuel Couto Viana)
Mãe é mãe?!
Já se viram peripécias ao contrário, o crime é o mesmo e são sempre de temer.
A senhora tinha um filho, dum camarada aviador que morreu no sertão, num acidente. Ainda hoje me emociona o quanto aprendi com ele.
Mais tarde casou comigo, até eu me descasar dela. E para mim eram dois filhos iguais, distinguiam-se pelo cheiro quando lhes dava dentadas.
Mas nem o meretíssimo juiz do tribunal de família, nem o coiro da psicóloga que interferiu no processo romperam com a tradição: a mãe é mãe!
E assim foi: o mais novo passei eu vinte anos sem o ver; já o mais velho foram trinta e cinco. Até que um, depois o outro, vieram ter comigo.
Hoje nenhum deles vê a mãe, porque a história será lenta mas é sempre luminosa e implacável. Mãe é mãe?!
A senhora tinha um filho, dum camarada aviador que morreu no sertão, num acidente. Ainda hoje me emociona o quanto aprendi com ele.
Mais tarde casou comigo, até eu me descasar dela. E para mim eram dois filhos iguais, distinguiam-se pelo cheiro quando lhes dava dentadas.
Mas nem o meretíssimo juiz do tribunal de família, nem o coiro da psicóloga que interferiu no processo romperam com a tradição: a mãe é mãe!
E assim foi: o mais novo passei eu vinte anos sem o ver; já o mais velho foram trinta e cinco. Até que um, depois o outro, vieram ter comigo.
Hoje nenhum deles vê a mãe, porque a história será lenta mas é sempre luminosa e implacável. Mãe é mãe?!
Ar do tempo!
Gigantes havia aí que poderiam contar a nossa história toda. A tinta a uns, a outros o cancro da América, derrotaram-nos aos poucos.
Surgiu agora uma vespa das galhas, um insecto que põe ovos. O castanheiro nem precisa de morrer, basta-lhe que não dá frutos. É uma praga muito em moda!
sexta-feira, 5 de junho de 2015
"O sol é grande, caem coa calma as aves"
Assim falava o Sá de Miranda, que a seu tempo mandou bugiar a corte e foi para a quinta do Minho, onde fazia sonetos como quem calceta ruas.
Mal sabia ele o que aí vinha!
Mal sabia ele o que aí vinha!
Conta lá!
Onde é que tu encontras, ao chegar, à meia-noite, o rouxinol a galrejar dum lado, do outro a coruja-das-torres poisada num castanheiro, e no meio a lua cheia triunfante?!
quinta-feira, 4 de junho de 2015
O Ministério da Cultura da "outra senhora"
LEGENDA
Nada garante que tu existas
Não acredito que tu existas
Só necessito que tu existas
David Mourão-Ferreira
Nos finais da década de cinquenta, a Gulbenkian mandou a Inglaterra o Branquinho da Fonseca observar o serviço de bibliotecas itinerantes. E instituiu-o em Portugal em 1958.
Mais tarde foi dirigido por António Quadros, por Mourão-Ferreira, pelo Graça Moura e finalmente pelo Virgílio Ferreira.
O encontro sobre o tema decorreu ao fim da tarde, no relvado da BMEL, trocando impressões com o encarregado Prata que nisso trabalhou quarenta anos. Algumas delas bem surpreendentes: o O'Neil e o Herberto Helder tiveram essa função.
A Gulbenkian era já o Ministério da Cultura do fascismo lusitano. E as bibliotecas itinerantes, da Citroën ondulada, alargaram a questão à Educação. Centenas de lugares visitados mensalmente, e milhares de utilizadores, tiveram por uma vez acesso ao livro.
Foi uma verdadeira lança em África, para não dizer um escândalo. Que ainda hoje surpreende quem nunca fez uso delas nem tinha pensado nisso.
Nem nas contradições que o serviço levantou: padres que pediam em privado O Crime do Padre Amaro, e muitos outros que, do altar para baixo, proibiam o povo de lá ir; professores que as desaconselhavam, e outros que lhes fechavam os olhos; polícias que abusivamente apreenderam livros.
O serviço das itinerantes da Gulbenkian ocupou um escasso nicho em que as normas eram omissas. Só por isso conseguiram existir, até que foram extintas na década de noventa.
Nasceram esta manhã
Os filhos da andorinha. E os trabalhos do casal vão duplicar, já que tais são as fadigas da natureza. Que eu saiba ainda lhe não chegaram as falácias e as canseiras desta choldra que manda na nossa vida.
Lágrimas póstumas já não contam!
Nesta guerra, como em todas, convém muito estar atento aos jogos dela!
Muitas vezes
Uma visão assim, a voo de pássaro, é mais clarinha do que as tantas de pensadores encartados.
quarta-feira, 3 de junho de 2015
O granzoal azul
Só recebes quanto deres. Habitualmente com ganho.
Toda esta moral cabe num grão-de-bico. E não há mais ética no universo inteiro.
Toda esta moral cabe num grão-de-bico. E não há mais ética no universo inteiro.
Onomatopeias
O povo, que não leu os manuais, quando não sabe uma coisa logo inventa, que remédio! Ouviu a felosita a cantar ao fim da tarde - chincha-la-raiiiz, chincha-la-raiiiz! - crismou-a logo do nome.
Nidifica em prados húmidos, escondida nas ervagens, num bercito de Moisés entre os canaviais do Nilo. Já começou a ouvir-se por aí.
Nidifica em prados húmidos, escondida nas ervagens, num bercito de Moisés entre os canaviais do Nilo. Já começou a ouvir-se por aí.
terça-feira, 2 de junho de 2015
Um livrinho do dr. Relvas?!
Deixa cá ver! A explicar as reformas que fez no poder local?! A minha alma fica parva, com tanta desfaçatez.
Mas saúdo cá de longe o comité central, que nesses tempos ofereceu a flor de laranjeira a uma noiva já furada! Só à espera duma balda no escurinho do bordel.
Mas saúdo cá de longe o comité central, que nesses tempos ofereceu a flor de laranjeira a uma noiva já furada! Só à espera duma balda no escurinho do bordel.
"Os próprios deuses lutam em vão"?!
Os tomates! Esta escumalha vai sangrar os povos, mas há-de morder o pó do chão.
Pão e laranjas
O povo compareceu, respeitando a tradição da romaria a São Marcos. E assistiu ao içar da bandeira, com guarda-de-honra e fanfarra.
Falou o clero, pela voz dum capelão que exaltou os patriotas. Falou a nobreza, das entidades militares e civis, que arengaram de heróis de ontem e de agora. Mas ninguém disse ter sido esse o momento derradeiro em que os portugueses tiveram um país. Pois desde então as elites inventaram um império de ficção. Penduraram-lho ao pescoço, lançaram-lhe na escudela muitos mitos e gestas gloriosas, e transformaram o povo em gado de exportação. Encheram disso a barriga, ainda hoje disso vivem. Ninguém o disse e foi pena!
Veio depois a reconstituição da batalha, com soldadeiras e achas de armas, e ginetes façanhudos que acometeram surgidos do matagal.
Um par dos bons!
O burgo não acordava assim em pé de guerra, com a praça tomada de assalto, desde os tempos do Beresford, ou da caçada aos malhados, ou outras aventuras igualmente galantes. Desta vez o fito era mais sério, era lúcido e era patriótico.
Tratava-se do protocolo estabelecido entre o Exército Português e a autarquia, na celebração da Batalha de S. Marcos (o recontro de Trancoso), a 29 de Maio, dia do feriado municipal.
O rei Fernando Formoso morrera sem herdeiro varão, e a filha Beatriz casara com D. João, rei de Castela, que assim reivindicava o trono de Portugal. Instalara-se a crise de 1383/85. Os castelhanos vieram por Almeida, por Pinhel, e tinham ido a saquear Viseu. Dizem que foi ali um regabofe!
As elites fidalgas fizeram o costume, o que ainda hoje fazem com o maior dos desplantes: a maior parte dos alcaides de praças e castelos passaram-se para o lado de Castela. Esse facto viria a alimentar a veia lírica das cantigas de escarnho e maldizer, que ainda sobrevivia dos tempos trovadorescos.
Regressavam a casa, os castelhanos, com o saque ao lombo de setecentas azêmolas. E foi ali a S. Marcos que os alcaides de Trancoso, de Linhares e da Vila das Aves foram esperar por eles. O mestre de Aviz, o Condestável do reino e futuro João I, andava por Guimarães, e tinha Elvas cercada por Castela.
Apesar da colossal desproporção e qualidade das forças, ao fim dum dia inteiro de escaramuças os castelhanos acabaram destroçados. Mas voltariam em breve. Em força. A Aljubarrota. E a história aí já canta doutro modo.
O município comemora estes eventos e faz bem. O Exército participa, e faz melhor. Foi a partir da batalha de Trancoso que se instalou a farronca, ainda hoje adaptada para imitações: - Quem se mete com beirões, leva!
E é verdade, é a história que o atesta! Do ponto em que seja um par dos bons, que é muito raro!
Tratava-se do protocolo estabelecido entre o Exército Português e a autarquia, na celebração da Batalha de S. Marcos (o recontro de Trancoso), a 29 de Maio, dia do feriado municipal.
O rei Fernando Formoso morrera sem herdeiro varão, e a filha Beatriz casara com D. João, rei de Castela, que assim reivindicava o trono de Portugal. Instalara-se a crise de 1383/85. Os castelhanos vieram por Almeida, por Pinhel, e tinham ido a saquear Viseu. Dizem que foi ali um regabofe!
As elites fidalgas fizeram o costume, o que ainda hoje fazem com o maior dos desplantes: a maior parte dos alcaides de praças e castelos passaram-se para o lado de Castela. Esse facto viria a alimentar a veia lírica das cantigas de escarnho e maldizer, que ainda sobrevivia dos tempos trovadorescos.
Regressavam a casa, os castelhanos, com o saque ao lombo de setecentas azêmolas. E foi ali a S. Marcos que os alcaides de Trancoso, de Linhares e da Vila das Aves foram esperar por eles. O mestre de Aviz, o Condestável do reino e futuro João I, andava por Guimarães, e tinha Elvas cercada por Castela.
Apesar da colossal desproporção e qualidade das forças, ao fim dum dia inteiro de escaramuças os castelhanos acabaram destroçados. Mas voltariam em breve. Em força. A Aljubarrota. E a história aí já canta doutro modo.
O município comemora estes eventos e faz bem. O Exército participa, e faz melhor. Foi a partir da batalha de Trancoso que se instalou a farronca, ainda hoje adaptada para imitações: - Quem se mete com beirões, leva!
E é verdade, é a história que o atesta! Do ponto em que seja um par dos bons, que é muito raro!
segunda-feira, 1 de junho de 2015
Isso mesmo!
Antes que os mixordeiros do costume se ponham a misturar a trampa com a ervilha de cheiro, ponhamos as coisas no lugar!
Dó!
Tanto como a náusea e a vergonha, o que esta criatura me provoca é pena, é dó! Mas nunca é por demais mostrar-lhe as tripas, a miséria daninha de que é feito.
4º andamento
De Leibnitz a John Cage, da Llansol a Glenn Gould, muitas figuras servem de pretexto a estes textos de Pedro Eiras. Um académico entregue à docência, de quem não sei muito mais. Ao último chamou ele 2002.
Uma voz (a própria?) fala com um filho, que vai adormecendo na escuridão da casa. É uma voz que recorda a tragédia das Torres Gémeas, enquanto sussurra uma ária de Bach, Mache dich, mein Herze, rein. (arriscando: limpa-te, purifica-te, coração meu?!) Uma voz que gostaria de escrever sobre Bach, mas não sabe como se escreve sobre Bach.
Não decifro a ideia desta colectânea, e reclama-me na horta a colheita das ervilhas verdes que o sol há-de secar. Deixo aqui o texto 2002, uma perfeição formal. Enquanto vou trauteando uma ária de Bach, já que é ela "tudo o que temos, tudo o que existe em nós."
«É noite , e eu ando contigo às escuras no corredor. Faremos muitas vezes este caminho até adormeceres. Os meus olhos habituam-se, e um pouco de luz atrás das portadas revela a forma das estantes. Vejo o suficiente para não ir contra as coisas; e de tanto ir e vir no corredor já sei quantos passos cabem entre as paredes. Saberia fazer este caminho mesmo de olhos fechados.
Seguro-te contra mim. Sinto o teu sono a chegar: no ritmo da tua respiração, no modo como vais deixando cair a cara sobre o meu ombro. Aos poucos, ao ritmo dos meus passos, na penumbra da casa, sossegas. E eu sinto o cheiro da tua pele, do teu cabelo, o calor do teu corpo no escuro. Conforme os teus braços deixam de me agarrar, seguro-te com mais força nas minhas mãos.
Inventamos um longo caminho num corredor que não tem mais de três metros; da sala em direcção ao quarto, do quarto em direcção à sala. Mil vezes hoje, como ontem mil vezes, mil vezes amanhá. Levo-te nos braços, atento ao teu sono, eu próprio sinto os olhos pesados.
Da rua, além das portadas, sobe o ruído do arranque dos carros. Às vezes alguém chama um nome, um carro buzina. Em breve começarão as chuvas do Outono, e haverá o som da água nos vidros e parapeitos, trovões, algum granizo, e a surdina que a chuva provoca aos sons da cidade. Há o silêncio das paredes, da escuridão; os meus passos no corredor. Ando contigo dum lado para o outro, e canto para ti em voz baixa: Mache dich, mein Herze, rein.
Sempre esta ária da Paixão segundo Mateus. A última ária, para baixo, tão solene e íntima, com as cordas tão doces a envolverem a voz. Não sei o que as palavras querem dizer. Bastaria abrir o caderno que acompanha o CD, ler o texto, as traduções para inglês, para francês, compreender o texto da ária. Mas não procuro o caderno, não o abro; não quero saber o significado das palavras, só cantá-las assim, em voz baixa, verter a melodia desta música sobre o silêncio que nos toma, sobre o teu corpo a adormecer.
Canto a ária, a melodia. Perco o jogo das vozes em contraponto, o contraste dos timbres: violinos, violoncelos, oboés. Uma voz no escuro é pouca coisa para fazer justiça a esta música, e ainda pior se falho os intervalos, se acelero ou atraso o tempo, sem dar conta. Mas que importa agora o tempo ou a tonalidade? Canto para ti, na escuridão do corredor, o início da melodia: Mache dich, mein Herze, rein.
A seguir, ainda terei de ir trabalhar: preparar aulas, ler bibliografias, esquematizar ensaios. Vou pousar-te no berço, trabalhar noite fora. Mas agora só reparo na tua respiração, na ária que murmuro junto dos teus ouvidos. Não penso em aulas, prazos; nem nos ruídos da cidade, além das portadas. Não penso, agora, que há um ano, ou pouco mais, dois aviões chocaram contra duas torres, e as torres desabaram sobre três mil pessoas. É difícil, no escuro, quase de olhos fechados, não voltar a ver essas imagens; só esperam uma distracção para surgir do nada. Se fecho os olhos, vejo corpos a caírem no vazio.
Canto em voz baixa: Mache dich, mein Herze, rein. Vibração da minha voz, batimento do teu sangue, agitação nos meus tímpanos cansados do dia. E do teu sono, que começa, sobe uma aura de calor. Contra o meu peito, sinto as tuas pulsações mais lentas: gestos, sonhos de sons e perfumes, o conhecimento do corpo - sem palavras. Afastas-te nesse mundo interior, que eu não conheço, ou que já conheci e esqueci.
A mim, a vigília. Narrativas, teorias. A andar no escuro, a pensar no trabalho e a lembrar tantas coisas, textos que não tenho tempo de escrever. penso que gostaria de escrever sobre Bach, mas não sei como se escreve sobre Bach, ainda procurarei durante muitos anos. Penso no tempo. Penso na memória dolorosa das imagens. Penso na tua fragilidade, e no cerco do mundo; a tua respiração, e a violência que empurra os corpos até ao vazio. A tua fragilidade nas minhas mãos e o mundo lá fora contra nós.
Mas murmuro sempre, continuo a murmurar para ti, sempre: Mache dich, mein Herze, rein..., como se estas notas de música pudessem proteger-nos, esses pequenos sons, um pouco de calor entre os nossos corpos. Uma breve melodia, no meio da noite, tudo o que temos, tudo o que existe em nós.»
Uma voz (a própria?) fala com um filho, que vai adormecendo na escuridão da casa. É uma voz que recorda a tragédia das Torres Gémeas, enquanto sussurra uma ária de Bach, Mache dich, mein Herze, rein. (arriscando: limpa-te, purifica-te, coração meu?!) Uma voz que gostaria de escrever sobre Bach, mas não sabe como se escreve sobre Bach.
Não decifro a ideia desta colectânea, e reclama-me na horta a colheita das ervilhas verdes que o sol há-de secar. Deixo aqui o texto 2002, uma perfeição formal. Enquanto vou trauteando uma ária de Bach, já que é ela "tudo o que temos, tudo o que existe em nós."
«É noite , e eu ando contigo às escuras no corredor. Faremos muitas vezes este caminho até adormeceres. Os meus olhos habituam-se, e um pouco de luz atrás das portadas revela a forma das estantes. Vejo o suficiente para não ir contra as coisas; e de tanto ir e vir no corredor já sei quantos passos cabem entre as paredes. Saberia fazer este caminho mesmo de olhos fechados.
Seguro-te contra mim. Sinto o teu sono a chegar: no ritmo da tua respiração, no modo como vais deixando cair a cara sobre o meu ombro. Aos poucos, ao ritmo dos meus passos, na penumbra da casa, sossegas. E eu sinto o cheiro da tua pele, do teu cabelo, o calor do teu corpo no escuro. Conforme os teus braços deixam de me agarrar, seguro-te com mais força nas minhas mãos.
Inventamos um longo caminho num corredor que não tem mais de três metros; da sala em direcção ao quarto, do quarto em direcção à sala. Mil vezes hoje, como ontem mil vezes, mil vezes amanhá. Levo-te nos braços, atento ao teu sono, eu próprio sinto os olhos pesados.
Da rua, além das portadas, sobe o ruído do arranque dos carros. Às vezes alguém chama um nome, um carro buzina. Em breve começarão as chuvas do Outono, e haverá o som da água nos vidros e parapeitos, trovões, algum granizo, e a surdina que a chuva provoca aos sons da cidade. Há o silêncio das paredes, da escuridão; os meus passos no corredor. Ando contigo dum lado para o outro, e canto para ti em voz baixa: Mache dich, mein Herze, rein.
Sempre esta ária da Paixão segundo Mateus. A última ária, para baixo, tão solene e íntima, com as cordas tão doces a envolverem a voz. Não sei o que as palavras querem dizer. Bastaria abrir o caderno que acompanha o CD, ler o texto, as traduções para inglês, para francês, compreender o texto da ária. Mas não procuro o caderno, não o abro; não quero saber o significado das palavras, só cantá-las assim, em voz baixa, verter a melodia desta música sobre o silêncio que nos toma, sobre o teu corpo a adormecer.
Canto a ária, a melodia. Perco o jogo das vozes em contraponto, o contraste dos timbres: violinos, violoncelos, oboés. Uma voz no escuro é pouca coisa para fazer justiça a esta música, e ainda pior se falho os intervalos, se acelero ou atraso o tempo, sem dar conta. Mas que importa agora o tempo ou a tonalidade? Canto para ti, na escuridão do corredor, o início da melodia: Mache dich, mein Herze, rein.
A seguir, ainda terei de ir trabalhar: preparar aulas, ler bibliografias, esquematizar ensaios. Vou pousar-te no berço, trabalhar noite fora. Mas agora só reparo na tua respiração, na ária que murmuro junto dos teus ouvidos. Não penso em aulas, prazos; nem nos ruídos da cidade, além das portadas. Não penso, agora, que há um ano, ou pouco mais, dois aviões chocaram contra duas torres, e as torres desabaram sobre três mil pessoas. É difícil, no escuro, quase de olhos fechados, não voltar a ver essas imagens; só esperam uma distracção para surgir do nada. Se fecho os olhos, vejo corpos a caírem no vazio.
Canto em voz baixa: Mache dich, mein Herze, rein. Vibração da minha voz, batimento do teu sangue, agitação nos meus tímpanos cansados do dia. E do teu sono, que começa, sobe uma aura de calor. Contra o meu peito, sinto as tuas pulsações mais lentas: gestos, sonhos de sons e perfumes, o conhecimento do corpo - sem palavras. Afastas-te nesse mundo interior, que eu não conheço, ou que já conheci e esqueci.
A mim, a vigília. Narrativas, teorias. A andar no escuro, a pensar no trabalho e a lembrar tantas coisas, textos que não tenho tempo de escrever. penso que gostaria de escrever sobre Bach, mas não sei como se escreve sobre Bach, ainda procurarei durante muitos anos. Penso no tempo. Penso na memória dolorosa das imagens. Penso na tua fragilidade, e no cerco do mundo; a tua respiração, e a violência que empurra os corpos até ao vazio. A tua fragilidade nas minhas mãos e o mundo lá fora contra nós.
Mas murmuro sempre, continuo a murmurar para ti, sempre: Mache dich, mein Herze, rein..., como se estas notas de música pudessem proteger-nos, esses pequenos sons, um pouco de calor entre os nossos corpos. Uma breve melodia, no meio da noite, tudo o que temos, tudo o que existe em nós.»
Susto
A névoas matinais eram uma cerração, prendiam ao chão as aves, fechavam o horizonte. Lembravam o Saturno a regressar e assustaram-me.
Mas depressa o solstício veio pôr ordem no mundo. E a luz voltou, que ainda é o tempo dela!
Mas depressa o solstício veio pôr ordem no mundo. E a luz voltou, que ainda é o tempo dela!
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