segunda-feira, 1 de junho de 2015

4º andamento

De Leibnitz a John Cage, da Llansol a Glenn Gould, muitas figuras servem de pretexto a estes textos de Pedro Eiras. Um académico entregue à docência, de quem não sei muito mais. Ao último chamou ele 2002.
Uma voz (a própria?) fala com um filho, que vai adormecendo na escuridão da casa. É uma voz que recorda a tragédia das Torres Gémeas, enquanto sussurra uma ária de Bach, Mache dich, mein Herze, rein. (arriscando: limpa-te, purifica-te, coração meu?!) Uma voz que gostaria de escrever sobre Bach, mas não sabe como se escreve sobre Bach. 
Não decifro a ideia desta colectânea, e reclama-me na horta a colheita das ervilhas verdes que o sol há-de secar. Deixo aqui o texto 2002, uma perfeição formal. Enquanto vou trauteando uma ária de Bach, já que é ela "tudo o que temos, tudo o que existe em nós."

 «É noite , e eu ando contigo às escuras no corredor. Faremos muitas vezes este caminho até adormeceres. Os meus olhos habituam-se, e um pouco de luz atrás das portadas revela a forma das estantes. Vejo o suficiente para não ir contra as coisas; e de tanto ir e vir no corredor já sei quantos passos cabem entre as paredes. Saberia fazer este caminho mesmo de olhos fechados.
Seguro-te contra mim. Sinto o teu sono a chegar: no ritmo da tua respiração, no modo como vais deixando cair a cara sobre o meu ombro. Aos poucos, ao ritmo dos meus passos, na penumbra da casa, sossegas. E eu sinto o cheiro da tua pele, do teu cabelo, o calor do teu corpo no escuro. Conforme os teus braços deixam de me agarrar, seguro-te com mais força nas minhas mãos.
Inventamos um longo caminho num corredor que não tem mais de três metros; da sala em direcção ao quarto, do quarto em direcção à sala. Mil vezes hoje, como ontem mil vezes, mil vezes amanhá. Levo-te nos braços, atento ao teu sono, eu próprio sinto os olhos pesados.
Da rua, além das portadas, sobe o ruído do arranque dos carros. Às vezes alguém chama um nome, um carro buzina. Em breve começarão as chuvas do Outono, e haverá o som da água nos vidros e parapeitos, trovões, algum granizo, e a surdina que a chuva provoca aos sons da cidade. Há o silêncio das paredes, da escuridão; os meus passos no corredor. Ando contigo dum lado para o outro, e canto para ti em voz baixa: Mache dich, mein Herze, rein. 
Sempre esta ária da Paixão segundo Mateus. A última ária, para baixo, tão solene e íntima, com as cordas tão doces a envolverem a voz. Não sei o que as palavras querem dizer. Bastaria abrir o caderno que acompanha o CD, ler o texto, as traduções para inglês, para francês, compreender o texto da ária. Mas não procuro o caderno, não o abro; não quero saber o significado das palavras, só cantá-las assim, em voz baixa, verter a melodia desta música sobre o silêncio que nos toma, sobre o teu corpo a adormecer.
Canto a ária, a melodia. Perco o jogo das vozes em contraponto, o contraste dos timbres: violinos, violoncelos, oboés. Uma voz no escuro é pouca coisa para fazer justiça a esta música, e ainda pior se falho os intervalos, se acelero ou atraso o tempo, sem dar conta. Mas que importa agora o tempo ou a tonalidade? Canto para ti, na escuridão do corredor, o início da melodia: Mache dich, mein Herze, rein
A seguir, ainda terei de ir trabalhar: preparar aulas, ler bibliografias, esquematizar ensaios. Vou pousar-te no berço, trabalhar noite fora. Mas agora só reparo na tua respiração, na ária que murmuro junto dos teus ouvidos. Não penso em aulas, prazos; nem nos ruídos da cidade, além das portadas. Não penso, agora, que há um ano, ou pouco mais, dois aviões chocaram contra duas torres, e as torres desabaram sobre três mil pessoas. É difícil, no escuro, quase de olhos fechados, não voltar a ver essas imagens; só esperam uma distracção para surgir do nada. Se fecho os olhos, vejo corpos a caírem no vazio.
Canto em voz baixa: Mache dich, mein Herze, rein. Vibração da minha voz, batimento do teu sangue, agitação nos meus tímpanos cansados do dia. E do teu sono, que começa, sobe uma aura de calor. Contra o meu peito, sinto as tuas pulsações mais lentas: gestos, sonhos de sons e perfumes, o conhecimento do corpo - sem palavras. Afastas-te nesse mundo interior, que eu não conheço, ou que já conheci e esqueci.
A mim, a vigília. Narrativas, teorias. A andar no escuro, a pensar no trabalho e a lembrar tantas coisas, textos que não tenho tempo de escrever. penso que gostaria de escrever sobre Bach, mas não sei como se escreve sobre Bach, ainda procurarei durante muitos anos. Penso no tempo. Penso na memória dolorosa das imagens. Penso na tua fragilidade, e no cerco do mundo; a tua respiração, e a violência que empurra os corpos até ao vazio. A tua fragilidade nas minhas mãos e o mundo lá fora contra nós.
Mas murmuro sempre, continuo a murmurar para ti, sempre: Mache dich, mein Herze, rein..., como se estas notas de música pudessem proteger-nos, esses pequenos sons, um pouco de calor entre os nossos corpos. Uma breve melodia, no meio da noite, tudo o que temos, tudo o que existe em nós.»