O companheiro fez as despedidas telefónicas, está encostado ao balcão e perdeu visivelmente a cor, qualquer coisa lhe deserta do semblante, se não é a luz dos olhos que inesperadamente selhe apaga, agarra-se ao balcão e desaba redondo no duro soalho. Discreto alvoroço geral, e de novo Gaspar não compreende, a bem dizer de novo a situação o escandaliza, agora por caricata, se por ela poderemos nós avaliar e perceber inexplicadas coisas, segunda vez que tal comentário, assim azedo e suspeitoso, escapa do peito de Gaspar, que coisas serão elas. Se não houver aqui diferenças de galões e de responsabilidades, ficamos sem saber a que vem esta subtil censura, este protesto fechado. A um subalterno desilude sempre a vista destas e outras fraquezas, é como quem diz, onde haveríamos nós de ter podido ir com gente assim, se entrega um homem a outro as suas confianças, natural é aguardar que ele esteja à altura delas. De facto, Gaspar nunca se deu à boca de cena nos múltiplos palcos da revolução, embora a estranha essência das coisas conferisse aos militares fundamental papel. Nunca usou da ofertada intimidade das velhas secretárias, pontes discretas dos antigos patrões silenciados e das suas conspirações, nunca fez depender da sua opinião o correr dos rios, nunca mergulhou no vulcão das escolas, das empresas, das herdades na planície, onde o povo, como um cavalo de súbito sem freio, subitamente irado, se debatia entre contrários gritos, agora contra o fascismo e logo contra o social-fascismo,ninguém lhes perguntou se sabiam do que falavam. Outros o fizeram por ele, assim se expondo à euforia da glorieta fugaz, vaidosos talvez por se terem tornado personagens de entrevistas, com direito a sentença e opinião. Discretamente, Gaspar sonhou apenas o sonho colectivo, que o houve, e remou muita vez contra si mesmo, mas a euforia geral empurrou-o a silenciar vagos augúrios de catástrofe.
Ultimamente pressentia, arrumado numa prateleira administrativa onde um coronel lhe entregava tarefas sem sentido, como um sísifo qualquer condenado a alinhar, das nove às cinco, inúteis listas de pessoal em quilométricas folhas de papel quadriculado, ultimamente pressentia, já isolado e sem contactos num segundo andar de larga escadaria de madeira, que os pulmões da revolução sofriam de bronquite asmática, como um cavalo a rebentar dos quartos à vista da meta de chegada, pressentia que a euforia primaveril da liberdade dera lugar a um outono melancólico e cinzento, em que as facções surgidas no povo e nas tropas se afadigavam a cozinhar intolerâncias, e que ambos os campos aguardavam apenas um despize do adversário para o degolar. A princípio tudo era unidade, todos queriam o socialismo e a revolução. E os poderosos, que a temiam, traziam na consciência um peso tão antigo, que só acharam refúgio seguro no exílio ouno silêncio das alcovas. Porém, aos poucos, se foram separando as águas entre as partes. Uns aprenderam a ver a história como loga sucessão de opostos insanáveis, infatigável e verdadeira guerra de classes, a dado ponto os interesses em vigor bloquevam a sociedade, tornavam impossível a expansão e o desenvolvimento geral. Qualquer avanço exigia a ruptura violenta que só a revolução trazia, uma classe nova arrancava às mãos da antiga os lemes do poder, se quisessem mudar o rumo da sua vida os trabalhadores tinham que suceder à esgotada burguesia, já esta fizera o mesmo à esgotada arstocracia do despotismo antigo.Era assim, por saltos bruscos, que a ahistória dos homens mudava de qualidade.