sábado, 31 de dezembro de 2016

Este assombro só pode chegar à terra

vindo dum céu comum, universal!

Guardiões

Moram p'ra lá dos Hermínios, a serra-mãe, até à fronteira leonesa e castelhana. As aldeias em que habitam estão desertas, e os velhos sobreviventes dependem da gentileza das meninas da Assistência. 
Não é a primeira vez que isto acontece na história dos tempos, os idiotas do pugresso é que o não sabem. São eles os guardiões duma fronteira antiga, perdida no nevoeiro. Tão velha que nem os europeus hoje a conhecem. 
Entre sinais antigos e símbolos modernos, os filhos deles emigraram para a Europa reformada, acreditando que está nela a salvação. Não é verdade!

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Al Berto

Parece que Lucrécio dizia...

O olhar saboreia o morno vinho
envolve teus cabelos, bebe no teu rosto, adormece
dormente onde tu e as aves vêm pernoitar
aqui sentado, neste restaurante de praia
mosquitos, árvores reclinadas, talvez palmeiras envelhecidas como eu
a paisagem é um plano a preto e branco de filme neo-realista
pregos ferrugentos, madeiras soltas, a boca rente às areias
resíduos calcários de passos pelas ervas altas
águias, soberbas e lentas

(o puto move-se, apertado nas calças finas, como se tivesse o corpo e os movimentos forrados por uma película em matéria finíssima, transparente, deixando contudo aperceber as modulações do seu corpo-rebuçado)

bebo, apetece-me gritar no horizonte do meu filme mudo
embriagado e desfeito, olho
aves irradiando luz, cordas enceradas pela transpiração das mãos
as vozes dos homens numa rebentação distante da ressaca
as vozes dos homens puxando os barcos: só o mar das outras terras é que é belo
em grande plano
ocupando-me por completo o écran desfocado dos olhos
o algodão pobre da tua camisa, as unhas roídas
os dedos duros engordurados, o buço macio
despontando num desafio que eu aceito

espero que a noite venha com seus ínfimos sóis, e solte transparentes borboletas cobertas de mel
parece que só assim, dizia Lucrécio
tua imagem permanecerá perto de mim, e a doçura do teu nome insinuar-se-á
gota a gota, junto ao coração

[O Medo, Ed. Assírio e Alvim, Lisboa, Dez 97]

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

A Gorda


«(...) Logo senti o meu coração cheio de amor pelo passarinho que me era concedido e aceitei. Comecei a gerar um pardalinho minúsculo e frágil na aurícula direita do meu coração. Andei assim os meses necessários com o coração batendo devagar para não assustar o passarinho. Nunca dormia voltada para o lado esquerdo para não apertar o menino. Nos princípios de Março, mais ou menos por essa altura, senti um aperto cardíaco. Uma dor muito aguda. Encolhi-me. Não conseguia respirar, que aflição! Abri a boca, abri, abri, agoniada, mal disposta, que confusão de sensações, e o pardalinho veio-me à garganta, envolto em sangue. 
Puxei-o para fora com o polegar e o indicador, e ali estava o mais belo filho deste mundo, perfeitinho como qualquer mãe deseja. O biquinho. As patinhas. As asinhas húmidas. Os olhinhos fechados. Sacudindo-se cheio duma vida que desponta. Que felicidade, o meu filho! Embrulhei o menino num paninho de algodão, limpei-o com muito cuidado e aconcheguei-o numa caixinha de sapatos forrada a trapos, muito quentinha. O menino foi crescendo com o meu amor e atenção. Não lhe atribuí nome, pois sabia que, sendo meu, não me pertencia, mas ao mundo. Chamava-lhe só Passarinho, o meu passarinho, o meu amor que não podia prender. (...)
Fechei a janela, voltei para dentro, e pensei que Deus deveria estar contente com o meu serviço. Oferecera-me o passarinho e retirara-se, deixando-me entregue à minhas mãos aprendizes.
Na sequência da aparição de Mark Ruffalo engravidei efectivamente nos anos que se seguiram, por duas vezes. Estive quase sempre grávida, real ou mentalmente, excluindo os dias passados na maca, na maternidade do hospital, à espera da raspagem dos abortos espontâneos, cuja concretização ia passando de turno para turno. (...)»

A despautérios destes, a que chamam imaginação criadora, deve chamar-se roubo ao tempo exíguo do leitor. Servem para quê? Para o impedir de dar tempo e atenção ao que merecia tê-los? Antes o Caderno de Memórias Coloniais!

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Fado antigo

Tradicional, sem marialvas nem putas pós-modernas.
(Ouvido ali)

Poesia

Há dias

Há dias em que julgamos
que todo o lixo do mundo nos cai
em cima. Depois
ao chegarmos à varanda avistamos
as crianças correndo no molhe
enquanto cantam.
Não lhes sei o nome. Uma
ou outra parece-se comigo.
Quero eu dizer: com o que fui
quando cheguei a ser
luminosa presença da graça,
ou da alegria.
Um sorriso abre-se então
num verão antigo.
E dura, dura ainda.

(Poesia - Eugénio de Andrade - 1ª ed. Set. 2000)

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

O retorno

Ler este retorno é um privilégio de leitor. Está nele a essência do que se viveu quando a gesta gloriosa desabou: uma ponte aérea, um casal com dois filhos, o alojamento na metrópole em hotéis de luxo. 
Os indígenas não conhecem este relato magnífico, não conhecem a história nem ela lhes faz falta. Preferem ouvir falar de mitos e de glórias que nunca existiram. Criaram-se a ouvir isso e hoje fogem de realidades como o diabo da cruz.

«A sala de espera da casa dos penhores é pequena, tem cadeiras encostadas às paredes, uma mesa com jornais velhos ao centro, a janela tapada por cortinas de veludo escuras e o chão de madeira aos quadrados como um tabuleiro de damas. Num dos cantos há uma árvore de natal de plástico com uma estrela dourada no topo e uma cabana com um menino Jesus deitado numas palhas de barro, uma nossa senhora e um S. José. O nosso presépio lá tinha os reis magos com as oferendas, pastores, ovelhas, burros e vacas e um rio que a minha irmã estendia, um rio amarrotado e colorido feito com as pratas em que os chocolates vinham embrulhados. Eu fazia as montanhas em cartolina verde, uns triângulos recortados com algodão no cimo para imitar a neve, e colava areia da praia num chão que era de cartolina castanha. (...)
A rapariga que nos mandou esperar pediu desculpa, o meu avô está um bocadinho demorado, uns dez minutos, podem aguardar aqui, estejam à vontade, um sorriso tranquilo como se não tivesse reparado nos olhos desassossegados da mãe, como se não soubesse o que íamos ali fazer.
Já aqui estamos à espera há mais de meia hora e a mãe ainda não se calou, o Zé Viola não fez bem mas a directora e o comité dos trabalhadores ainda agiram pior, ninguém gosta de ser acusado injustamente, a directora não podia ter acusado o Zé Viola de ter destruído a tapeçaria da primeira missa do Brasil sem ter provas, é muito grave fazer uma acusação sem provas, o Zé Viola já não é um garoto, tem mulher e dois filhos, e nem um garoto gosta de ser acusado injustamente, não sei como é que o do comité dos trabalhadores jurou que tinha visto o Zé Viola de navalha na mão a cortar a tapeçaria de alto a baixo, se não tivesse ter conseguido provar que nesse dia estava fora do hotel o Zé Viola estava metido num bonito sarilho, a directora podia expulsá-lo e para onde é que o Zé Viola ia com dois filhos pequenos, o que seria daquela gente sem um tecto e sem comida, a directora também tem razão quando diz que não é a partir cadeiras e mesas que se resolvem as coisas (...), gostava era de saber quem terá dado a navalhada na tapeçaria, deve ter sido um homem que uma mulher não teria força para tanto (...), o que eu dava para sair daquele hotel, se conseguisse arranjar um trabalho, nem que passasse o dia todo a lavar chão, nunca tive medo ao trabalho e já lavei muito chão, a minha mãe ensinou-me logo de pequenina, o trabalho de um menino é pouco mas quem não o aproveita é louco, parece que nesta terra já nem chão há para lavar, haver há só que não no-lo dão, até parece que temos lepra, que raio de gente esta.
A mãe dobrou o lenço encarnado que trouxe no cabelo e pô-lo no colo. Retirou a pulseira de prata da malinha de mão, o teu pai deu-me esta pulseira quando fiz trinta e dois anos, ainda te lembras, foi um dia tão bonito (...).»
(Edições tinta-da-china, Lisboa, Out.2011)

domingo, 25 de dezembro de 2016

Pérola em concha

(Segunda casca integral, porque noblesse oblige):

«(...) Bem, quando ouvi os gritos no elevador tive pena de quem lá estava. Mas ali no condomínio os elevadores devem ser bons. Pois eles não têm dinheiro para grandes carros e para aqueles jardins no telhado, com relva e tudo? E para uma piscina, também no telhado, com cadeiras de lona e guarda-sóis em volta? Lá não dizem telhado, dizem deque. A modos que nem há telhado, pelo menos nunca lá vi telhas, aquilo é uma espécie de varanda a cobrir tudo, com pedaços de relva e de jardim. Se têm dinheiro para tudo isso, e nem chegam a gozá-lo, porque nunca vi ninguém nesse tal jardim, haviam logo de poupar nos elevadores? Ná, aquela gente nem sabe o que é poupar, os elevadores têm sempre alguém ao telefone, a atender quando é preciso. Está lá? É o senhor que trata dos elevadores? Olhe, estou aqui parado, o elevador avariou e não anda nem pra cima nem pra baixo. Entrão carregue naquele botão ali ao fundo. Já carreguei nos botões todos e não anda. Então o senhor espere só um momentinho que já aí mando um técnico resolver tudo.
Pois, alguém resolvia logo aquela alhada e ainda pedia desculpas pelo incómodo. Não valia a pena eu perder o barco, ainda mais quando à hora do almoço tive de ir a correr comprar uns ténis de ginástica para o meu mais novo, a professora marcava falta se ele não os levasse, e ao lado dos ténis vi alheiras com desconto e um pão de Mafra e comprei o pão e as alheiras, e depois a dona do quinto andar ouviu-me no patamar e abriu a porta a perguntar se eu queria seis pacotes de leite que já estavam um dia depois do prazo, eu disse que sim, é claro, o leite de certeza estava bom, e portanto eu vinha carregada com os ténis, as alheiras, o pão de Mafra e os pacotes de leite, só queria era pôr-me a andar dali para fora o mais depressa que pudesse, e ainda havia de ir, carregada quem nem um burro, à procura de quem, se não vi o segurança, nem passei por ninguém ao sair.
Tenho é que deixar de ser estúpida e não pensar mais no caso, raleiras já tenho que me cheguem.
Mas não é que aquela história me tirou horas de sono e só tornei a dormir lá pelas quatro? E de manhã acordei e pensei logo naquilo, valha-me Deus que sou tão parva.
Quando lá cheguei logo o segurança me contou: 
- Pois dona Ricardina sabe a senhora o que aconteceu?
A dona do oitavo ficou fechada no elevador, logo ela que tem claustrofobia, quando viu que não andava, começou a gritar e a bater nas paredes, mas aquilo é uma caixa grossa, os andares têm portas blindadas e janelas duplas, ninguém ouviu nada.
Eu estava na hora da ronda, mas ainda ouvi e fui logo ver, o elevador estava parado no sexto piso, tinha descido dois e empancou, a madame lá dentro gritava que estava no escuro e nem via os botões. Minha senhora, disse-lhe eu, não se preocupe, o que é preciso é calma. E então ela lá encontrou a campainha do telefone e responderam-lhe do Algarve, a empresa disse que lamentava imenso, que já não estava na hora do expediente mas ia resolver o assunto quanto antes. Mas ora, demoraram quase toda a noite, juntou-se gente do prédio, telefonaram pra tudo quanto é sítio, chegaram vizinhos doutros prédios, alarmados, e encheram as escadas, a madame berrava lá dentro que nem um porco na matança, salvo seja.
Até parecia um filme, dona Ricardina, nunca vi nada assim. Mas pelo menos as pessoas do prédio encontraram-se, uma vez na vida. A maioria nem fazia ideia de quem eram os vizinhos, nunca se tinham cruzado, é cada piso um dono e raramente alguém encontra outra pessoa. E aquilo da piscina lá em cima também é só para vista, quando muito juntam-se lá meia dúzia de miúdos, porque se fossem os moradores, ou só metade ou menos, nem sequer lá cabiam, e então acaba por não ir ninguém.
Eu cá pra mim não gosto nada de condomínios, se tivesse dinheiro escolhia outra coisa, mas todos acham que é o melhor que há, pelo menos é o que dizem por aí.
Bom, mas no fim lá veio um homem dos elevadores, detrás do sol-posto, e a senhora saiu, em braços, mais morta que viva e toda mijada até aos tornozelos, às tantas não aguentou e aliviou-se ali mesmo, coitada, o que havia ela de fazer. Pois foi assim, demoraram quase toda a noite e ela era uma pessoa rica, já pensou se fosse a senhora ou eu que lá estivesse, dona Ricardina? Nunca mais vinha ninguém, connosco não se ralavam.
Mas a madame não estava nada bem, parece que entrou em pànico e se descontrolou, começou a bater com a cabeça nas paredes até desmaiar, tiveram que a tirar e deitar na maca, ao princípio julgou-se que estava morta, veio o INEM e levaram-na de ambulância, mas agora de manhã já havia mais notícias, parece que está livre de perigo e se safou desta, sem mesmo quebrar um osso.
- Pois ainda bem, senhor Viçoso, ainda bem que ma diz isso, então até ,logo que tenho de ir lavar a escada. Se o elevador avariar comigo lá, o senhor tenha atenção e ouça logo. 
- Não há-de haver azar, dona Ricardina, o diabo não está sempre atrás da porta.
E agora aqui vou eu no elevador, com o coração um bocadinho apertado. Além das pontes e do metro também fiquei com medo dos elevadores.
E ainda estou a pensar que podia ter feito alguma coisa. Não me saiu da cabeça a mulher lá trancada toda a noite. O que ela deve ter sofrido, coitada. E Deus manda ajudar o nosso semelhante. Pois.
Mas sempre sou muito bronca, raios me partam. Não tive culpa de nada, ora essa. Nadinha mesmo. Se ela lá ficou é porque Deus a quis deixar lá fechada e alguma razão deve ter tido para isso. Voltar atrás, carregada como eu ia? Era o que faltava.
Devia ajudar o meu semelhante? Ora, tinha de tratar da ninha vida primeiro.
E aquela mulher nem era semelhante a mim. Se fosse, vivia no meu prédio ou no meu bairro.
Aí é claro que eu voltava atrás e a ajudava, mesmo que fosse carregada e com pressa.
Mas nem ia ser preciso. No meu bairro não há elevadores.»
NOTA: Quem sabe, sabe! Tudo o mais são tretas! 

sábado, 24 de dezembro de 2016

Pérola em concha

(Primeira casca)

O meu semelhante.
«Eram já cinco e cinco quando cheguei à entrada do prédio e abri a porta da rua. Foi quando ouvi a campainha de um elevador tocar. Está alguém lá fechado, pensei. Mas tinha muita pressa de chegar ao metro. Se não apanhasse o barco das cinco e quarenta e cinco no Cais do Sodré só tinha outro passado meia hora.
E depois do barco ainda tenho sempre de apanhar outro autocarro. Em chegando a casa, é acabar o jantar, que já ficou meio pronto, pra isso me levanto às cinco e meia, ver se os rapazes fizeram os deveres da escola, pôr roupa a lavar e ouvi-los bulhar um com o outro, até eu me zangar com eles. 
Eu, se pudesse, bem me deitava logo que chegasse, nem se me dava de comer ou não. Mas aqueles mafarricos nunca têm pressa de ir para a cama e nuca estão cansados, enquanto eu ando estafada e chego à noite a cair.
Bem, isto só para dizer que nem pouco nem muito me ralei com quem estava no elevador. Se lá estava preso, lá ficasse. Ne4m que fosse por conta de quem devia estar na prisão e não estava.
Estes do condomínio bem podem comprar elevadores em condições e pagar a quem lhes vá acudir, se for caso disso. E então a modos que decidi nem pensar mais e fui à vida, que a morte é certa.
Mas já ia no barco e ainda estava a magicar em quem lá estava dentro, e no que se havia de afligir. E já estava na cama e pensei na agonia que era se demorassem muito a acudir-lhe.
Não gosto de elevadores nem do metro, andar debaixo da terra dá-me um soco no estômago como se estivesse dentro dum caixão. E se aquilo nos cai na cabeça e a gente fica debaixo de um montão de entulho?
Andar cá por cima sempre é diferente, pelo menos tem ar. Se bem que se houver um terramoto nem Santo António nos salva. As primeiras coisas a cair são de certeza os túneis, e a cidade está cheia deles, não há praça que não esteja furada que nem um caminho de toupeiras. Também não gosto das pontes, aquilo balança e assobia com o vento, parece que anda por lá o diabo à solta.
Até podia apanhar o comboio em vez do barco, mas passar de comboio na ponte dá-me um arrepio. O barco sempre acho mais seguro.
Bem, isto para dizer que me deitei na cama e tão derreada estava que acabei por cair no sono, mas aí às duas da manhã acordei. Assim, sem mais nem menos. E a primeira coisa que pensei foi em quem ficou a gritar no elevador.
Ora, não lhe havia de acontecer nada. É verdade que o elevador se fecha que nem uma caixa de metal, mas aquilo deve ter algum buraco por onde venha o ar. Ou deve ter ar condicionado, aquela gente tem ar condicionado em tudo quanto é canto. Se sentisse falta de ar devia ser só impressão.
E o que queriam que eu fizesse? Que fosse chamar o segurança? Sabia lá por onde andava, na porta de saída não estava, podia andar na ronda em qualquer garagem ou corredor, vá-se lá saber qual.
Não tenho nadinha a ver com isso; se o elevador avariou, problema deles. Eu lavo as escadas, é para isso que me pagam, e só ando de elevador para as lavar. Subo até ao último piso e começo a lavar de cima para baixo, que é como deve ser. Quando chego cá abaixo, já lavei e desci tudo quanto é degrau e patamar e doem-me os braços e as pernas, e até as mãos. de tanto rolar nelas o cabo da esfregona.
Eles sabem lá o que é trabalho. Andam elevador abaixo e elevador acima para sair a passear o cão, ir ao cabeleireiro, ao ginásio e às compras nas lojas finas, e nunca pensaram em quem lava escadas. Nem devem saber quanto me pagam, são despesas do condomínio. Nunca é com eles que falo, é com os encarregados, que também não fazem nada, a não ser mandar. Ora isso também eu fazia, e bem melhor do que eles. Ó Fulana, lave aí as escadas. É tanto ao fim do mês. Olha que difícil. Lavassem-nas eles, pra ver como é. Até porque não tenho só aquele prédio do condomínio, tenho mais, e limpo os corredores e as garagens, aquilo é um desperdício de vazio, no espaço que eles não usam vivia uma pancada de famílias.
Em minha casa nem lugar há para outra mesa, as crianças fazem os deveres na mesa da cozinha. E ainda tive sorte de o vizinho Arnaldo me fechar a marquise, sempre tenho onde pôr umas mercearias, e deixo debaixo da cama as malas com roupa de Verão ou de Inverno, a que não se usa no tempo em que se está. Antes da marquise entrava muito frio por baixo da janela, assim ficou bem melhor; a marquise tem pouco espaço mas sempre é mais algum, e tudo o que possa ajudar eu agarro logo, com as duas mãos. (...)»

Vilancico

Adeste fideles - Pavaroti. Do rei restaurador?!

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

La folia

Viola da gamba.

O "princípio do mal menor"?!

A retirada de Alepo tem estado em curso. Os media internacionais têm dado à questão a antena que acham conveniente. Uma rebaldaria é o que tem sido! Mas vai tomando forma a convicção de que há na Síria, como em tudo, um mal menor. Convirá rememorar.
A seu tempo os rebeldes da primavera árabe foram tomados por heróis da liberdade. A senhora NATO, então, parecia a dona do mundo, num momento em que lhe competia ter arrumado as botas, quando o Pacto de Varsóvia foi à vida. Foi a Tunísia, foi a Líbia e o desgraçado Kadhafi, foi o Egipto, foi o Iraque e o Saddam das armas químicas, foi o Afeganistão dos talibans, havia de ser o Irão, a Síria estava na lista do eixo do mal. Aí chegada, a dona NATO encolheu-se.
De costas quentes pelo Putin, o Assad fez-lhe um pirete das Caldas e ficou à espera. Encharcou os rebeldes que andavam a pedir mama com bombas-barril. O célebre Daesh aproveitou e entrou no palco, com as suas cenas de selvajaria. E o Putin fez o que devia ser feito: mandou-lhes bombardeiros e bombas inteligentes.
E foi assim que a opinião publicada ocidental foi concluindo que há na vida real "males menores". Mesmo para cabeças rudes, já não era sem tempo!

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Caeiro

Poema do menino jesus.

Fantasia

Schubert, por Maria João Pires..

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Peregrinação

Todo o santo dia corre numa peregrinação por lugares predilectos: a escamungada do Côa, Escalhão, Barca d'Alva, Freixo-de-Espada-à-Cinta, a Congida e o Mazouco, que tem lá dois cavalinhos há 18 mil anos, com enseada privativa no Douro Internacional. 
Volto a casa ao fim da tarde, o carro a abarrotar de laranjas excelentes da quinta do Antunes. As cadeias de distribuição põem na manjedoura dos consumidores indígenas os sub-produtos da Suláfrica, da Argentina, da Andaluzia. É para eles uma questão de mercado, o resto é pura conversa e assim vivemos. Porém os leoneses de Vitigudino compram-lhe quantas tiver, basta levar-lhas. 
Se uma patrulha qualquer de parasitas da guarda me tivesse abordado, estava metido em trabalhos. E encontrei uma dúzia numa estrada, cada um deles ocupado com um motorista futrica. Lá escapei, neste país de equívocos.´
O Antunes tem posições muito próprias sobre o império das Índias, e os políticos, e a pátria e tudo isso. Eu entendo e não me interessa questionar, porque não sou missionário. Esteve ao serviço no Estado da Índia, onde andou nas informações da Pide, antes de o Nehru ter invadido Goa. Por isso não passou pelos campos de prisioneiros, em que muitos portugueses penaram longo tempo. Nada lhe diz a figura do Vassalo e Silva, que ousou discordar do Botas de Santa Comba, e pagou por isso um alto preço.
Nessa altura já ele estava ao serviço da mesma Pide, em Moçambique. E quando regressou a Portugal comprou esta quinta na Congida. Os indígenas locais viviam na miséria, não tinham unhas para ela. Ou tinham fugido para a Europa a reconstruir países, afastados duma terra onde tudo estava por fazer. Plantou-a de laranjeiras e oliveiras, de que faz óptimo azeite. E assim ficou redimido.

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Ensaio e erro, a menos quatro

Às cinco da manhã saio ao alpendre, a sondar a madrugada. O Platão aproveita a porta entreaberta e ensaia uma saída. Dobra uma esquina, não arrisca as ervas congeladas, dobra a outra. Eu reentro.
Depois lá foi o Sócrates. Aproveitou a abébia, esgueirou-se e saiu. Passou a grade e sumiu-se nas ervas. 
Eu desisto de os pastorear, reentro em casa, volto ao calor da cama.
Passada meia hora venho à porta: lá estão ambos, mirando a luz da sala, de rabo incomodado no mosaico frio. Mal reabro, esgueiram-se lá para dentro.
Se dois filósofos antigos preferem ensaio e erro, quem sou eu para questionar um tal princípio. E abandono as teorias modernas do chip incorporado, infalível e eficaz. Coisas que só entram na cabeça da América produtiva, quando pensa na função dum macaco pensante.
A mim bloqueou-se-me a caixa dos fusíveis, há muitos anos atrás, numa madrugada pelas ruas duma Berlim que já deixou de haver. Mas foram quase três horas, e estavam menos vinte. Até me congelaram os cabelos que ainda tinha!

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Air on a g-string

Kyung-Wha Chung.

Ondas de paixão

Este filme de Lars von Trier foi Grande Prémio do Júri em Cannes 96.
Na costa noroeste da Escócia Jan trabalha numa plataforma petrolífera. Sofre um acidente e fica paralisado.
Bjork/Bess, protagonista fracturada e estranha, alimenta por ele uma paixão doente. E é isto que o filme tem para nos mostrar, evoluindo até ao desenlace.
É um filme de gente doente a funcionar em circuito fechado, que só uma plateia de paranóicos suportará. O desenlace aparecerá com a morte de Bess e Jan assiste ao seu enterramento. Parece, mas não é bem verdade!...
Não admira que o cinema europeu tenha congelado há décadas no zero absoluto, perante a enxurrada da indústria cinematográfica americana. A tal do entretenimento de massas com pipocas nos queixos. A evitar a todo o custo!

domingo, 18 de dezembro de 2016

Requiem Marcha Fúnebre Mozart

Pelo génio indomado, pelo Salieri, por ela, por nós todos, quem o saberá?!

Mulheres

A lembrança mais antiga que guardo na memória é tão remota que nem eu mesmo cá andava para dar notícia dela. Vem da minha avó materna, que em cachopa vinha apanhar garrobas para as colinas de Foz-Côa. Vinha de longe, da aldeia onde vivia, de lá para aqui era uma eternidade. Mas ela vinha, a pé, conforme então se usava. E as garrobas eram indispensáveis para o gado, antes de haver as rações que andam pr'aí.
Mais tarde viveu connosco, foi a nossa salvação: os cuidados e a paciência que nos deu não se podem esquecer.
Que os deuses hoje a guardem e a protejam, se puderem. Que o paraíso perdido sem mulheres não existia.

sábado, 17 de dezembro de 2016

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Viagem

Sempre que lá vou, o Porto tem artes de me surpreender. Porque ele ainda existe, embora nada o demonstre. Apesar dos Jaguares e dos Ferraris que passam, rente ao passeio, são as mulheres que fazem andar aquilo, de autocarro.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Karma

Se há um Karma, esta mulher trá-lo com ela. Sei-o, porque lhe conheço a geração, embora eu não entenda nada disso. Os homens, esses coitados, sucumbiriam sem elas e os karmas tratam-nos bem.
Ela criou-se numa colónia antiga, onde o Verão e a liberdade eram eternos. Quando a guerra rebentou, voltou a Portugal pela mão da mãe. E no Inverno tinha frieiras nos dedos, da roupa dos hóspedes a quem a mãe alugava quartos, para criar a filharada. Quando chegava a época da praia na Granja, ela vendia saquinhas de pipocas aos veraneantes, para ajudar a mãe a criar os irmãos. E à noite frequentava a escola nocturna, porque as horas do dia não lhe pertenciam.
Casou-se com um columbófilo, que ouvia as mensagens de radio-amador e controlava as anilhas dos pombos. O resto não era nada com ele.
Um dia ela arranjou trabalho numa multinacional americana, onde tinha um salário privilegiado. E a certa altura mandou bugiar o homem, porque se fatigou de parasitas. Ele é que não esteve pelos ajustes e não a deixava em paz. Foi assim que ela se despediu, e caiu numa emergência verdadeira. Depois disso foi lavar escadas e limpar apartamentos, e nunca se lamentou.
Eu de karmas não entendo nada, mas trato-os com respeitinho.

Fado novo?

Não basta imitar uma toada, pôr umas cordas a chorar, e cantar um fado novo. É indispensável respeitar o que está lá por trás, o que o fado foi, que vidas teve, por onde andou. Põe primeiro o pés no chão e depois falamos. 

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Parasitas

Quando perdi o meu bastão de almirante - que uma sociedade de cidadãos me teria restituído - dei ao demo um objecto de grande estimação e um apoio fundamental para evitar quedas na rua. Foi por isso que adoptei um apoio metálico que não quero dispensar. Nos passeios escalavrados das nossas ruas e nos pavimentos esburacados de algumas localidades, uma queda é coisa que não me agrada.
Fui ao banco e deixei a viatura num dos lugares reservados a cidadãos condicionados. Não tardou que uma viatura de agentes do trânsito não tivesse estacionado a emboscar-me. Estes parasitas estão encarregados de emboscar os cidadãos responsáveis e justificam-se com isso. É-lhes indiferente tudo o resto: os irresponsáveis que usam faróis desregulados, os que andam de dia com a farolada toda iluminada, e aqueles que saem do nevoeiro sem uma lâmpada acesa. Os parasitas desconhecem tudo isso, não é a função que têm atribuída.
Saí do banco e lá estava o parasita à minha espera. Aparece ao meu lado, olha para mim com cuidado, e diz-me que posso pedir ao médico um atestado das minhas limitações afixado no vidro.
Apetece-me mandá-lo bardamerda e não o faço, prefiro um silêncio mais consensual. Desta vez lá me escapei. Saúdo o parasita e vou à vida.

domingo, 11 de dezembro de 2016

Chopin

Mazurka por Horowitz.

Godfather

A seu tempo, ter ido parar a França foi para ele um destino natural. Mas o tempo que lá andou não foi a assentar tijolos. A gare de Austerlitz era uma pátria emigrada, Champigny um arrabalde de destroços onde alguns patrícios acharam ocupação. Conheciam-se obras e patrões, vendia-se trabalho escravo a gente desesperada. Os bancos ainda não tinham circo montado, e mandar dinheiro às mulheres fazia-se por mão própria: um que vinha trazia o suor dos outros em moeda forte. Os francos é que nem sempre chegavam ao destinatário; muita vez eram roubados, sumiam-se no caminho, eram azares.
O padrinho em poucos anos arranjou pecúlio. Voltou a Portugal logo que pôde, e foi estabelecer-se numa terra à beira-mar. Montou indústria de extracção de areias numa praia, e estufas de pepinos e cavalos de volteio. E comprou na aldeia o que havia para vender.
A cocaína vinha da Colômbia. E ele tinha mulas ao serviço, que mandava a Paris de comboio a entregar uns pacotes. Ministros houve, dum Portugal triunfante, que na aldeia vinham a serões em casa dele, lamber uma bisca e encharcar-se de conhaques raros. Depois subiram na vida e deixaram de aparecer.
A certa altura os calotes eram muitos, ele abriu falência e foi tudo parar ao leilão dum tribunal. Ele trocou as voltas a uma juíza novata, que andava a dormir como é típico da corporação. Depois disso retirou-se para uma colónia antiga, onde se reconstruiu. Escapou ele à polícia de investigação e a pátria acabou por se calar.
A cena mais recente é na aldeia, numa assembleia de compartes, se alguém sabe o que isso é. Os compartes reuniram para discutir assuntos de baldios. O godfather não é eleitor nem residente. Mas tem o seu interesse a defender. E pretende chamar seus uns cantos de baldios.
Nunca pensei que as personagens da vida reproduzem fielmente as figuras que lhe povoam a cabeça. Como ele, que é baixito e é redondo. Envolvido nas abas do capote, é um bom siciliano à moda antiga.

sábado, 10 de dezembro de 2016

Tarde

Um bom pivot da televisão - o orelhudo é um exemplo excelente - diria sorridente: "a Lapa teve uma tarde solarenga!"
Aqui se corrige, como se valesse a pena: "a Lapa teve uma tarde soalheira!"
Isso é o que devia ser dito. Porque são coisas diversas!

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Viajantes

Da excelente Viagem a Portugal, transcreve-se a chegada de Saramago à Guarda:
«Se o viajante fosse a exame, sairia reprovado. Exame de viajante, entenda-se, que outros, talvez sim, talvez não. Chegar à Guarda passada a uma da manhã, a um sábado, isto em Março, que é alta estação de neve na serra, e confiar no patrono dos viajantes para lhe ter um quarto vago, é incompetência rematada. Aqui lhe disseram que não, além ninguém veio abrir, acolá nem vale a pena tocar a campainha. Voltou ao primeiro hotel, como é possível, tão grande edifício e não haver sequer um quarto. Não havia. O frio, lá fora, era de transir. O viajante podia ter pedido a esmola dum sofá na sala de espera, para esperar a manhã e um quarto despejado, mas sendo pessoa com o seu orgulho entendeu que esta sua tão grava imprevidência merecia punição, e foi dormir dentro do automóvel. Não dormiu. Envolvido em tudo quanto podia fazer vezes de agasalho, trincando bolachas para enganar o apetite nocturno e aquecer ao menos os dentes, foi a mais mísera criatura do Universo durante as longas horas do seu pessoal Inverno polar. Estava clareando a manhã, dificilmente clareando, e o frio apertava, quando foi posto em terrível dilema: ou humilhar-se a pedir enfim abrigo na sala de espera tépida, ou sofrer a humilhação de ver os madrugadores espreitarem pelas janelas, a ver se lá dentro estava um homem ou pingente gelado. Escolheu a humilhação mais aconchegada, não se lhe pode levar a mal. Quando enfim, tendo saído muito cedo uma algazarra de espanhóis que tinham vencido esta Aljubarrota, ficou livre um quarto, o viajante mergulhou na água mais quente do mundo, e depois entre lençóis. Dormiu três horas de profundo sono, almoçou e foi ver a cidade. (...»
(Círculo de Leitores e Ed. Caminho, Lx 1985)

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

O amante de Lady Chatterley

Finais da 1ª Guerra; uma elite inglesa rotinada, humanamente esgotada, exaurida, doente, nos seus feudos industriais e agrícolas. A salvação só pode estar cá em baixo. 
Lady Chatterley (cujo marido, lord Clifford, saiu inválido da guerra), repara um dia no guarda-caça. Nas costas dele que se lava ao ar livre, entre as galinhas. E fica tão perturbada com a visão do tronco masculino, que tem pesadelos nessa noite.
O filme é a descoberta do desejo, da sexualidade, da vida, do prazer, da natureza, da alegria e da energia; e é gradualmente que a Lady mergulha num vulcão que nunca sentiu. Os encontros na cabana evoluem para um relacionamento erótico e sexual intenso, à beira da paixão. É ela que conduz esses encontros, porque o couteiro se coíbe; e ela fá-lo sempre com uma delicadeza extrema.
O patrão, além de ser um déspota, é um cretino altivo e sobranceiro. Um traço de que, ainda hoje, padecem quase todos.
Sobre novela de D. H. Lawrence, 1926, proibido em 1928.

Muxima

Valdemar Bastos. 

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Fernando Trueba


Fernando é um desertor da guerra civil de Espanha que depois de andar a monte, durante um mês, encontra Don Manolo que lhe dá abrigo e amizade. Com a visita das suas quatro filhas, Don Manolo pede a Fernando para partir. Mas quando este as conhece, muda de ideias. Deixa-se ficar...
Rodado em território português (linha do Oeste), o filme foi vencedor do Oscar da Academia Melhor Filme Estrangeiro 1994. A ver, onde o encontrares: na Fnac, na Feira da Ladra, nos ciganos, que sei eu?!
Versão deficiente, manhosa como é costume, tens aqui.

A gesta gloriosa

Então os generais do Estado Maior promoveram-me a tenente, mandaram-me para Angola e marcaram-me lugar num DC-6. Era o melhor que havia. Dos aviões que me esperavam no Congo não conhecia nenhum. Nunca ensaiara quaisquer manobras de tiro, e tudo o que fizera em Alcochete eram adaptações com granadas de artilharia. As espoletas de percussão rebentavam nas copas da floresta. Por isso as granadas tinham no nariz um longo tubo cheio de trotil. Ia chegar o tempo de aprender.
A partida seria ao fim da tarde e era Maio. Mas adiaram o voo, por um problema qualquer. Eu improvisei uma pensão, não disse nada a ninguém. E fiquei com o dia livre, marcada que estava nova tentativa para a noite seguinte. Passei a tarde na feira do livro, avenida abaixo comprei a Terra de Neve, do japonês Kawabata, e avenida acima as Lendas da Guatemala, do Miguel Ángel Astúrias. Um já tinha o prémio Nobel, o outro estava para o ter. Não poderei afirmar que fui para a guerra mal acompanhado.
O velho quadrimotor descolou à meia-noite, fez tremer o Areeiro, e lá foi pelo mar abaixo, seguindo a rota duns marinheiros antigos. Eu adormeci logo que pude, quando acordei passara o Bojador. Mas um Nobel não se come, e eu sentia a fome dos antigos marinheiros, que também não pensaram no farnel. Quem me valeu ali foi a Mitina, mulher dum companheiro de aventuras, alminha previdente e caridosa que trazia numa bolsa um salame de cacau. Ao romper da manhã aterrávamos no Sal, e constou que havia a bordo uma avaria. Claudicara uma peça qualquer num dos motores, que a TAP nos traria de Lisboa.
As instalações da Força Aérea no Sal eram exíguas, para aquela tropa toda. É certo que lá ao fundo, disfarçado numa duna, havia um hotel de madeira. Mas era espaço restrito das tripulações civis que faziam escala nos Espargos. E foi assim que o velho DC-6 se viu transformado em tenda de campanha.
Na cauda ficava a zona de marinheiros e soldados. À frente havia mulheres, cavalheiros respeitáveis, e crianças, e bebés. Só um restrito grupo de privilegiados encontrou lugar nuns catres disponíveis, que havia na enfermaria. Foi o meu caso, durante dois dias. E quando se levantou aquele acampamento, o avião cheirava a fraldas, a paparocas azedas e a caravelas antigas.
Aterrámos em Bissau a meio duma tarde que era um forno. Fizemos ali aguada, e foi então que me penetrou na alma o eflúvio das calmarias do golfo, que nunca mais me saiu. Anos depois voltaria a encontrá-lo, mas não nos antecipemos, por enquanto ainda é cedo.
Que já estamos em Luanda, e vão mandar-nos para o Norte, para manter os bacongos em respeito. Lá voaremos aviões que nunca vimos, em missões que nunca praticámos. Mas quem nos conhece a História, há-de saber que estamos sempre a tempo.
Passado um ano esmurrei o focinho, quer dizer, bati com as trombas no chão. Literalmente. Passei dois meses numa enfermaria, depois dos médicos terem feito o milagre de não me deixar morrer. E o regresso a Lisboa, a remendar o resto, foi já num avião moderno, que vai num pé e já regressa noutro. Para que se leve até ao fim o faduncho da gesta gloriosa.

sábado, 3 de dezembro de 2016

Efemérides

Numa madrugada como a de hoje, há uns trezentos anos, nasci eu. A aparadeira deu-me um pontapé no rabo e dizem-me que berrei.
Quando apareceu a manhã, foi o meu pai a casa do Zé Barbeiro, que vendia marrã. Para festejar a efeméride. 
Passados uns dias abri os olhos e trouxeram-me à rua. Como a minha mãe não tinha leite, nem havia os sucedâneos de hoje, fui mamar ao peito da vizinha, que o tinha disponível e abundante.
Não lembro a que é que me soube. Só depois disso me levaram à janela e vi a encosta, que ainda hoje além está. 
Peregrinei durante trezentos anos por esse mundo de Cristo, e um dia soube o que isso da marrã era. Provei-a num restaurante e não gostei. Não era a do Zé Barbeiro...
Hoje é na Lapa que vivo, é onde espero acabar. E não desejo outra coisa.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Eça

Estes textos são da primeira fase do Eça de Queirós, em que ele ainda não era cônsul em Havana, na Inglaterra e em Paris. Foi nessa circunstância que, em 1869, assistiu com o conde de Resende à inauguração do Canal de Suez, onde conheceu os grandes da Europa. No início de 1870 regressou a Lisboa.
Não se pode dizer que Eça tenha sido o mais fiável observador do Egipto. Adjectivado, impressionista e prolixo, foi o que podia ser.
«(...) Ao fundo, sobre a negra terra de África, erguia-se o Atlas, tão belo, tão forte, tão vivo como nos velhos tempos mitológicos, quando ele sustentava nos ombros gigantescos o céu com todo o seu povo de deuses.
Nada há igual à sensação de se caminhar assim entre arvoredos, vendo sempre reluzir o fino azul da água.
Descansámos um momento num jardim cheio duma doçura infinita. Toda a sorte de árvores, de ramos delgados, se entrelaçam, se prendem e limitam o horizonte, deixando-o entrever apenas, sereno e azulado, para além das suas ramagens. É aquilo, ali, um centro suave, longe do mundo, estreito e ao mesmo tempo ilimitado, onde a vida e a sensação se espiritualizam e se confundem com o alto pensamento vital das coisas. A vida, o ruído, os soldados, os uniformes vermelhos, as trombetas, os véus das mouras - nada ali chega: uma muralha de árvores, de relvas, de plantas, isola aquele lugar de contemplação. (...)».

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Ecos

O Carlos Barroco Esperança decidiu editar alguns textos já conhecidos do blogue Ponte Europa. E é uma boa decisão, porque há neles paisagens da guerra colonial, dum passado e duma meninice beirã de que já ninguém se lembra. Com vénia aqui se transcreve parcialmente BANDEIRA & PISTOLEIRO.
"Em Fevereiro de 1970, recém-chegado da guerra colonial, conheci o Sr. Bandeira, por intermédio de amigos oriundos do distrito da Guarda, no café Nova York. Era aí que nos reuníamos ao fim da tarde e após o jantar, em agradável convívio, enquanto ele tentava corrigir a oscilação das mesas e procurava estudar, intento frustrado pela instabilidade emocional.
O Bandeira, eterno aluno da Faculdade de Direito, entrava no café com um Código debaixo do braço, e abanava as mesas disponíveis para verificar se buliam. Percorria o café e desalentado voltava sempre à primeira mesa, para meter cunhas de papel até lhe conferir a firmeza possível. Não se dava por satisfeito mas resignava-se. O estudo é que não rendia, com aquela apoquentação de poder baloiçar a mesa. Há anos que mantinha o ritual e o inofensivo desequilíbrio mental na insistente procura da melhor mesa.
Aos conhecidos dava por conselho que andassem prevenidos com uma pequena esfera para o caso de terem que alugar um quarto ou apartamento, aconselhando-os a fugir de zonas em que o soalho fosse oblíquo, como a esfera comprovaria, rolando.
Um dia o Tó Zé Almeida tinha as pernas cruzadas e movia um pé, enquanto o Bandeira se debruçava sobre um livro na mesa próxima. Num determinado momento levantou-se irado e gritou. - Não se pode estudar aqui! - É comigo? - balbuciou desconfiado o Tó Zé, e o Bandeira disse: - Pois é, não está quieto com o pé! E o Tó Zé assentou os dois pés no chão, para não perturbar o estudo ao frágil aluno de Direito que caminhava para os cinquenta anos.
A conversa foi prosseguindo entre o grupo habitual e mais de uma hora depois o Bandeira repete o desabafo anterior, não se pode estudar aqui, e o Tó Zé a verificar o sítio dos pés e a dizer-lhe , mas eu tenho os pés quietos, e o Bandeira a replicar, mas eu estou sempre à espera de que volte a cruzar as pernas e a abanar o pé! (...)".

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Neblinas

Vejo no Soares dos Reis uma exposição da obra integral de Amadeo de Souza Cardoso, o génio de Amarante, Manhufe. E descubro um paralelo entre Amadeo e a minha Lapa de há cem anos.
Amadeo morreu novíssimo, levado em 18 pela pneumónica. A mesma que levou a Marquinhas do Zé Ribeiro, comerciante de tachas e ferralhas, e segunda mulher do Vitorino, pai dos Crespos todos e seguidor do ramo.
Tudo lhe chegava do Porto, duns grandes armazéns. E quando um dia lá foi a pagamentos, bem a avisaram as sibilas da aldeia:
- Ai, dona Marquinhas, que anda por lá tão ruim a pneumónica!
- Eu dou-lhe com a carteira!
Recheada a tinha ela, mas a pneumónica foi mais despachada. A dona Marquinhas é que nunca mais voltou.

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Chopin

Nocturno em dó menor (póstumo). Claudio Arrau.

Morrer de paixão

Era um gato preto longilíneo, sabedor, uma estampa de felino. Vivia com o irmão num terceiro andar. O irmão era mais curto e descuidado, não conhecia requintes de higiene. Ele ensinava-o, lambia-o, cuidava dele.
Os dois corriam em brincadeiras casa fora. E um dia passou a porta da varanda do 3º andar, atravessou a grade sem que ninguém saiba como, esbracejou no ar e estatelou-se na rua sem cair de pé. Acabou a morrer nas mãos da veterinária, todo partido por dentro.
Ao irmão faltou-lhe a companhia, ele compensou-a com uma bulimia sem controle. Engordou desmesuradamente, um rim entrou-lhe em falência, o pâncreas desregulou-se. O gato não vai durar. Nada é próprio dos humanos, que os gatos não conheçam há milénios. Até os males de amor.

sábado, 26 de novembro de 2016

Ode

Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra 
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós próprios.
[Odes de Ricardo Reis, Ed. Ática, Lisboa]

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Paisagem

A neve, que há muito não aparecia, marca a paisagem da Lapa nas encostas. Há estradas cortadas nas serranias, planos que se alteram, tarefas que se adiam. Mas nem todas são notícias más.
O Coelho, que só falava ovimbundo quando chegou há anos do sertão, agora já se entende em português. O Relvas e o Marco António, que estariam por aí pintados em cartazes do farwest se os magistrados do ministério público não andassem a dormir, levaram-no ao governo. Não sem antes disso transformarem num deserto o velho PPD, do Sá-Carneiro, do Balsemão, do Magalhães Mota, do Amaral dos Açores, os tais a quem o poder caiu nas mãos e os veio arrancar ao sono da ala liberal.
Os trunfos que o Coelho apresentava eram a boa gestão da Tecnoforma, num tacho arranjado pelo Ângelo Correia que hoje tem vergonha dele; e os milhares de técnicos futricas de aeródromos que só existiam na contabilidade do Relvas, esse ilustre secretário de estado que Portugal teve um dia. Até o Passos engendrar um governo do PPD e mandar em Portugal durante uns anos. 
O governo era um bando fantoches, de sipaios ignorantes, que também vieram dum sertão para desgraça do país: era ele a ministra da justiça, uma bêbeda que pôs os tribunais num caos, se os juízes não bastassem para isso; era ele a ministra das finanças, uma ignorante radical da escola de Chicago que abanava o rabo aos donos da Europa, e nunca acertou num orçamento rectificativo dos inúmeros que fez. O Moedas, esse alentejano triste, servia-lhes de correio. E o Portas, único espírito ilustrado que colaborou na festa, mandou-os apanhar nos entrefolhos logo que lhe foi possível, e foi governar a vida. O Cavaco, esse rústico de Boliqueime, trancou-se na marquise do Possolo, arredondou o orçamento e deixou-os andar.
Nem os maus ventos que hoje sopram da América salvam esta tropa desqualificada. E a neve que branqueja na paisagem vai passar.

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Quais pitbull quais porra!

O Rafeiro do Alentejo
«Em épocas pré-romanas os pastores da Península Ibérica utilizavam cães de grande porte, sendo hoje completamente impossível tentarmos definir detalhes morfológicos desses animais. 
Contudo, é indiscutível a sua utilização nesse território e em épocas tão remotas.
O Alentejo, na sua imensidão, tornou-se a partir de determinada época no solar desses animais de grande corpulência que defendiam e acompanhavam os rebanhos, guardavam "Montes" e integravam as matilhas usadas nas montanhas.
Excelente guarda, seguro e confiante, é particularmente vigilante durante a noite.
Cão de grande nobreza, é firme para com estranhos e tem comportamento dócil para com as crianças.
Trata-se sem dúvida de um cão de defesa e não de ataque, inconfundível pelo timbre do ladrar, grave, profundo, propagando-se a grande distância.
Em finais da década de 40 é elaborado o Estalão da Raça. Pelo número de registos efectuados conclui-se que a euforia, verificada então, diminuiu drasticamente na década de 60, chegando mesmo a considerar-se a Raça muito próxima da extinção, no início da década de 80. Contudo, graças ao empenho de uns quantos criadores, o molosso alentejano conseguiu sobreviver. (...)
Se é seu propósito conhecer ou mesmo adquirir um exemplar, a Associação de Criadores do Rafeiro do Alentejo (ACRA) pode ajudá-lo e esclarecê-lo.»
(C.M. Monforte)

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Sono americano

Às quatro da manhã ouvi as previsões: Trump vai ganhar as eleições da América!
Vim à rua, olhei em volta a ver se havia mundo, ainda havia. 
Eu é que me esquecera de tomar o indutor do sono americano.

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

domingo, 30 de outubro de 2016

Homens bons

Nascido em Cartagena em 1951, Pérez-Reverte é actualmente o autor espanhol mais lido do mundo, estando traduzido em 40 idiomas (fora os dialetos!); escreve romances trepidantes, que são muitas vezes viagens ao coração das trevas (Rui Lagartinho); domina como ninguém a arte de contar uma história (El Mundo)...
Pois assim será! Para mim, enquanto leitor, que chegou à concisão dos textos com dez linhas... com sete... a questão maior concentra-se no tempo. Onde é que o leitor tem tempo para as 510 páginas do livralhão, quando metade chegaria, se o houvesse?!
Espraiando-se entre o séc. XVIII e a actualidade (espanhola e mundial), Reverte recreia-se no prado. Haverá quem goste, eu não! Que cheguei à página 200 e daqui não passo!

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Ele anda aí!

O nazi handicapado não desarma. Não sabe o que há-de fazer da enxurrada do Deutsche Bank, mais do que imputá-la às galdérias do Sul. Talvez se foda!

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Centum Celas

« (...) Mas afinal de que falamos quando falamos de Centum Celas? Antes de mais é um topónimo. Desconhece-se a sua origem, embora a tradição oral atribua esta designação às "cem celas" da prisão que aqui teria existido. Durante a Idade Média este local parece ter tido particular importância na consolidação da fronteira nacional, e em 1188 surge referido como Centum Celli em carta de foral de D. Sancho I.
Centum Celas é um Monumento Nacional, assim classificado desde 1927, e situa-se no local de Colmeal da Torre, junto a Belmonte. É precisamente a torre que ainda hoje mantém que mais caracteriza este local, deveras emblemático da região. (...)
A torre tem uma planta rectangular, quase quadrada, e atinge cerca de 12 metros de altura. Não conserva a cobertura, e assim as paredes terminam de forma desigual, fazendo lembrar as ameias e abertas de um castelo. (...)
Desconhecem-se os pormenores da funcionalidade desta torre ao longo dos tempos, mas é evidente que os panos de parede superiores serão posteriores aos da construção original, a qual se mantém, ao que tudo indica, nos dois pisos inferiores. (...)
A ideia deste local corresponder a uma villa é defendida desde 1988 por Jorge de Alarcão. Antes desta interpretação, outros estudiosos classificaram este lugar como tendo sido uma mansio, conforme defendeu o primeiro arqueólogo, Aurélio Ricardo Belo, que escavou no local entre 1958 e e 1960. Outros estudiosos defenderam ter-se tratado de uma atalaia e prisão, outros ainda de um acampamento militar, e a ideia de ter sido um santuário também não ficou excluída. (...)»

domingo, 23 de outubro de 2016

Lavar a honra

Esquecendo aqui os Cem Anos de Solidão, de todos os trabalhos produzidos por este mestre colombiano de narradores é o que mais me toca enquanto leitor. O realismo mágico de há décadas ainda anda por aqui. E ainda hoje é um grande prazer lê-lo.
A devolução à mãe duma esposa que não estava virgem na noite de núpcias é a peripécia essencial. Santiago Nasar, membro duma comunidade muçulmana há muito integrada na Colômbia, é tomado como culpado, e cortado às postas por dois irmãos da noiva, Angela Vicário. Para lavar a honra.
Personagem marcante e curiosa, "Bayardo San Román, o homem que devolveu a esposa, tinha vindo pela primeira vez à vila em Agosto do ano anterior: seis meses antes do casamento. Chegou no barco semanal com uns alforges guarnecidos de prata a dar com as fivelas da correia e as argolas das botinas. Andava pelos trinta anos, mas muito bem disfarçados, pois tinha cintura fina de novilheiro, os olhos dourados, e a pele curtida a fogo lento pelo salitre."
O tempo da narrativa não vai além duma noite. E o melhor é dar a palavra ao narrador:
«Durante anos não conseguimos falar de outra coisa. O nosso comportamento diário, até então dominado por tantos hábitos lineares, começara subitamente a girar à volta duma mesma ansiedade comum. Surpreendiam-nos os galos do amanhecer quando tentávamos ordenar os inúmeros acontecimentos fortuitos encadeados que tinham tornado possível o absurdo, e era evidente que o não fazíamos por um empenho de esclarecer mistérios, mas porque nenhum de nós podia continuar a viver sem saber exactamente qual o sítio e a missão que lhe designara a fatalidade.
(...) Cristo Bedoya, que chegou a ser um cirurgião notável, não conseguiu explicar a  si próprio por que cedeu ao impulso de esperar duas horas em casa dos avós até o bispo chegar, em vez de ir descansar para casa dos pais, que ficaram à sua espera até ao romper do dia, para avisá-lo. (...) Hortensia Baute, cuja única participação foi ter visto manchadas de sangue as facas que ainda estavam limpas, sentiu-se tão afectada pela alucinação, que caiu numa crise de penitência e um dia não conseguiu suportá-la e saiu em pêlo para a rua. Flora Miguel, a noiva de Santiago Nasar, fugiu por despeito com um tenente do Serviço de Fronteiras que a prostituiu entre os seringueiros de Vichada. Aura Villeros, a comadre que ajudara a nascer três gerações, sofreu um espasmo da bexiga quando lhe deram a notícia, e até ao dia da morte necessitou de sonda para urinar. D. Rogelio de la Flor, o bom do marido de Clotilde Armenta, que era um prodígio de vitalidade aos 86 anos, levantou-se pela última vez para ver como despedaçavam Santiago Nasar contra a porta fechada de sua casa, e não sobreviveu à comoção. (...)»

sábado, 22 de outubro de 2016

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

J. S. Bach

Tocata e fuga em ré menor. (Atenção a Pedro Monteiro.)

domingo, 16 de outubro de 2016

Kubrik

A ver urgentemente, por qualquer meio disponível!
Filme superior, de 1971, do mestre Kubrik, baseado na novela de Anthony Burgess, Clockwork Orange.
Num momento em que os gangs da ultra-violence duma juventude mimada, se disputavam territórios em Londres. E é isto.
Prémio da Associação de Críticos de Cinema de Nova York, com quatro nomeações para os Óscares de Melhor Filme.
E isto
Interpretações notáveis de Malcom Macdowell, entre outras. Tudo antes de a indústria do entretenimento de massas americana ter reduzido a cinzas a cultura europeia e a sua cinematografia. E isto.

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Nobel

Bons tempos estes, para a literatura, quando os nomes dos autores apareciam minúsculos na capa, comparados com o título das obras! Sinal de que não havia as inversões e os equívocos que depois vieram!
Esta obra do mestre Saramago não é um concentrado de Literatura, porque não há disso. Mas está nela tudo quanto prenuncia um tempo áureo e único das letras portuguesas. Nos finais de 1975 era Saramago um jornalista da direcção do DN. E essa condição veio opô-lo a um grupo de colegas jornalistas que o acusavam de estalinismo, provavelmente com alguma razão. Saramago demitiu-se e abandonou a direcção do DN. Passou uns tempos no Lavre, ouviu o povo camponês e produziu esta obra, que dedicou a Isabel da Nóbrega.
A obra contém o substrato (ideário e um modo narrativo novo, à maneira das antigas narrativas orais de serão) donde sairiam os romances inesquecíveis com que ganhou o Nobel: Memorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis, A Jangada de Pedra, a História do Cerco de Lisboa, a Viagem a Portugal, O Evangelho Segundo Jesus Cristo e esse portento do Ensaio Sobre a Cegueira. A par com meia dúzia de romances de António Lobo Antunes, que apareceram de rajada, fulgurantes e inovadores - Os Cus de Judas, Memória de Elefante, Explicação dos Pássaros, As Naus, O Esplendor de Portugal, Fado Alexandrino - ambos puseram a Europa inteira a ler-nos, coisa que antes nunca tinha acontecido nem voltaria a acontecer.

«(...) Um povo que se lava é um povo que não trabalha, talvez nas cidades, enfim, não digo que não, mas aqui, no latifúndio, vai contratado por três ou quatro semanas para longe de casa, e meses até, se assim convier a Alberto, e é ponto de honra e de homem que durante todo o tempo do contrato se não lave nem cara nem mãos, nem a barba se corte. E se o fizer, hipótese ingénua de tão improvável, pode contar com a troça dos patrões e dos próprios companheiros. É esse o luxo da época, gloriarem-se os sofredores do seu sofrimento, os escravos da escravidão. É preciso que este bicho da terra seja bicho mesmo, que de manhã some a remela da noite à remela das noites, que o sujo das mãos, da cara, dos sovacos, das virilhas, dos pés, do buraco do corpo, seja o halo glorioso do trabalho no latifúndio, é preciso que o homem esteja abaixo do animal, que esse, para se limpar, lambe-se, é preciso que o homem se degrade para que não se respeite a si próprio nem aos seus próximos.
E mais. Gabam-se os trabalhadores das pontadas que apanharam nos trabalhos de arroteia. Cada uma delas é medalha para vanglórias de taberna, entre o casco e o copo, Já apanhei tantas ou tantas pontadas a arrotear para Berto e Humberto. Esses é que eram os trabalhadores bons, os que, em tempo de chicote, mostrariam envaidecidos os vergões encarnados, e se sangrarem melhor ainda, gabarolas iguais ao rebotalho das cidades que presumiam de virilidade tanto maior quanto mais cavalos duros ou cancros moles adquirissem no comércio da cama alugada. Ah, povo conservado na banha ou no mel da ignorância, que nunca te faltaram ofensores. E trabalha, mata-te a trabalhar, rebenta se for preciso, que assim deixarás boa lembrança no feitor e no patrão, ai de ti se ganhas fama de malandro, nunca mais tens quem te queira. Podes ir por-te às portas da tabernas, com os teus companheiros de desfortuna, eles próprios te hão-de desprezar, e o feitor, ou o patrão, se lhe deu para isso, olhará para ti com nojo e tu só ficarás sem trabalho, para aprenderes. Que os outros decoraram a lição, vão matar-se todos os dias no latifúndio, e quando tu chegares a casa, se casa isso é, com que cara vais dizer que não arranjaste trabalho, que os outros sim, mas tu não. Emenda-te, se ainda vais a tempo, jura que já tiveste vinte pontadas, crucifica-te, estende o braço para a sangria, abre as veias e diz, Este é o meu sangue, bebei, esta é a minha carne, comei, esta é a minha vida, tomai-a, com a bênção da igreja, a continência à bandeira, o desfile das tropas, a entrega das credenciais, o diploma da universidade, façam-se em mim as vossas vontades, assim na terra como nos céus. (...)»

terça-feira, 4 de outubro de 2016

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Chopin

Polonaise, Shiskhin.

Malaposta

O Ladrar à Lua faz aqui uma pausa (que se prevê longa), para refrigério de alimárias. Até futuro aviso. 
Lixe-se o mundo ou não, o postilhão não muda.

Cantos de cego

[clicar]
Feitas as rotundas (às vezes alindadas!), muitos autarcas voltaram-se para a cultura. Aqui no município foi ideia positiva, no último fim de semana; fecundo noutros gestos, nunca acontecera nada no campo cultural. Mas adiante!
O último serão foi animado pela dupla de Ariel Ninas (galego) e César Prata (português) de Vila Nova de Cerveira. Presentearam o auditório com um reportório variado de Cantos de Cego, de aquém e além-Minho.
Eu tinha imagens distantes de cantigas de cordel, sempre uma mulher e um homem, cada um com uma função. Penduravam num barbante os folhetos que vendiam, com as histórias impressas, crimes, tragédias, desgraças, ou novidades distantes. 
Foi positivo recordar esse passado com estas novas figuras, em que o contributo galego foi bem mais rico e genuíno.

Almofala (Figueira de Castelo Rodrigo)

[clicar]
(...) «O facto de que apenas se mantém de pé esta torre, numa área onde hoje não existe qualquer outra edificação, justifica-se pelo facto de ela ter sido aproveitada sucessivamente, tendo, entre o séc. XVI e o séc. XVII, servido como torre de vigia. O facto mais importante é que esta torre, apesar das alterações que sofreu posteriormente, é uma edificação romana.
Hoje, a torre ergue-se isolada, dominando a paisagem. Localizada no alto duma elevação de perfil suave, oferece um perfil estranho, com o seu interior esventrado e mantendo apenas duas paredes mais completas. Mas é quando nos aproximamos que percebemos que a escala é surpreendente, e que, de facto, o que temos à nossa frente não pode ser uma qualquer torre medieval. 
De facto, a base sobre a qual as paredes se elevam tem uma altura de 2,65 m e é integralmente construída em silharia de granito. (...)
A descoberta de uma inscrição gravada numa pequena ara forneceu a informação pela qual tantos arqueólogos buscam em qualquer escavação, especialmente de época romana: o nome duma divindade e a designação da cidade que teria oferecido o monumento. A inscrição é muito simples e a pequena ara, isto é, o pequeno altar em que ela se encontra gravada também o é! Um altar de culto onde seria prestada veneração à divindade, tendo para o efeito, na sua parte superior, um pequeno foculus uma concavidade, onde seriam colocados os líquidos necessários à cerimónias religiosas. Essa inscriçao refere-nos:
IOVI.OPTIMO / MAXVMO / CIVITAS / COBELCORUM "A Júpiter Óptimo Máximo, a cidade dos Cobelcos". (...)
Clara é a afirmação de que este local era uma civitas, o que equivale a afirmar que esta povoação dominaria e administraria um vasto território. A sua região seria naturalmente limitada a Norte pelo rio Douro, a Nascente pelo rio Águeda e a Poente pelo rio Côa. A Sul seria a serra da Marofa a estabelecer a limitação geográfica do territorium
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(...) «Andemos um pouco mais e desloquemo-nos à ermida de Santo André na povoação de Almofala. O que nos chama a atenção são as duas esculturas de berrões, ou verrões, que ladeiam o portão de acesso à ermida.(...)
A imponência destas duas esculturas contrasta com a singeleza da portada de madeira de duas folhas, que abre caminho a uma igualmente singela vereda que acede à pequena ermida. (...) Quem se afastar um pouco mais da ermida e das ruínas que ainda se vêem no local, depara com um magnífico miradouro natural que se debruça sobre uma garganta escarpada profunda, sobranceira ao rio Águeda. (...) Destacam-se os abutres localmente denominados por butardos, com dezenas de casais distribuídos pelos afloramentos rochosos. (...) Outras espécies características deste vale são o abutre do Egipto, localmente conhecido por Britango, a Águia-real e a Cegonha preta. Pode observar-se ocasionalmente o Abutre-negro. (...)»