Ler este retorno é um privilégio de leitor. Está nele a essência do que se viveu quando a gesta gloriosa desabou: uma ponte aérea, um casal com dois filhos, o alojamento na metrópole em hotéis de luxo.
Os indígenas não conhecem este relato magnífico, não conhecem a história nem ela lhes faz falta. Preferem ouvir falar de mitos e de glórias que nunca existiram. Criaram-se a ouvir isso e hoje fogem de realidades como o diabo da cruz.
«A sala de espera da casa dos penhores é pequena, tem cadeiras encostadas às paredes, uma mesa com jornais velhos ao centro, a janela tapada por cortinas de veludo escuras e o chão de madeira aos quadrados como um tabuleiro de damas. Num dos cantos há uma árvore de natal de plástico com uma estrela dourada no topo e uma cabana com um menino Jesus deitado numas palhas de barro, uma nossa senhora e um S. José. O nosso presépio lá tinha os reis magos com as oferendas, pastores, ovelhas, burros e vacas e um rio que a minha irmã estendia, um rio amarrotado e colorido feito com as pratas em que os chocolates vinham embrulhados. Eu fazia as montanhas em cartolina verde, uns triângulos recortados com algodão no cimo para imitar a neve, e colava areia da praia num chão que era de cartolina castanha. (...)
A rapariga que nos mandou esperar pediu desculpa, o meu avô está um bocadinho demorado, uns dez minutos, podem aguardar aqui, estejam à vontade, um sorriso tranquilo como se não tivesse reparado nos olhos desassossegados da mãe, como se não soubesse o que íamos ali fazer.
Já aqui estamos à espera há mais de meia hora e a mãe ainda não se calou, o Zé Viola não fez bem mas a directora e o comité dos trabalhadores ainda agiram pior, ninguém gosta de ser acusado injustamente, a directora não podia ter acusado o Zé Viola de ter destruído a tapeçaria da primeira missa do Brasil sem ter provas, é muito grave fazer uma acusação sem provas, o Zé Viola já não é um garoto, tem mulher e dois filhos, e nem um garoto gosta de ser acusado injustamente, não sei como é que o do comité dos trabalhadores jurou que tinha visto o Zé Viola de navalha na mão a cortar a tapeçaria de alto a baixo, se não tivesse ter conseguido provar que nesse dia estava fora do hotel o Zé Viola estava metido num bonito sarilho, a directora podia expulsá-lo e para onde é que o Zé Viola ia com dois filhos pequenos, o que seria daquela gente sem um tecto e sem comida, a directora também tem razão quando diz que não é a partir cadeiras e mesas que se resolvem as coisas (...), gostava era de saber quem terá dado a navalhada na tapeçaria, deve ter sido um homem que uma mulher não teria força para tanto (...), o que eu dava para sair daquele hotel, se conseguisse arranjar um trabalho, nem que passasse o dia todo a lavar chão, nunca tive medo ao trabalho e já lavei muito chão, a minha mãe ensinou-me logo de pequenina, o trabalho de um menino é pouco mas quem não o aproveita é louco, parece que nesta terra já nem chão há para lavar, haver há só que não no-lo dão, até parece que temos lepra, que raio de gente esta.
A mãe dobrou o lenço encarnado que trouxe no cabelo e pô-lo no colo. Retirou a pulseira de prata da malinha de mão, o teu pai deu-me esta pulseira quando fiz trinta e dois anos, ainda te lembras, foi um dia tão bonito (...).»
(Edições tinta-da-china, Lisboa, Out.2011)