(Segunda casca integral, porque noblesse oblige):
«(...) Bem, quando ouvi os gritos no elevador tive pena de quem lá estava. Mas ali no condomínio os elevadores devem ser bons. Pois eles não têm dinheiro para grandes carros e para aqueles jardins no telhado, com relva e tudo? E para uma piscina, também no telhado, com cadeiras de lona e guarda-sóis em volta? Lá não dizem telhado, dizem deque. A modos que nem há telhado, pelo menos nunca lá vi telhas, aquilo é uma espécie de varanda a cobrir tudo, com pedaços de relva e de jardim. Se têm dinheiro para tudo isso, e nem chegam a gozá-lo, porque nunca vi ninguém nesse tal jardim, haviam logo de poupar nos elevadores? Ná, aquela gente nem sabe o que é poupar, os elevadores têm sempre alguém ao telefone, a atender quando é preciso. Está lá? É o senhor que trata dos elevadores? Olhe, estou aqui parado, o elevador avariou e não anda nem pra cima nem pra baixo. Entrão carregue naquele botão ali ao fundo. Já carreguei nos botões todos e não anda. Então o senhor espere só um momentinho que já aí mando um técnico resolver tudo.
Pois, alguém resolvia logo aquela alhada e ainda pedia desculpas pelo incómodo. Não valia a pena eu perder o barco, ainda mais quando à hora do almoço tive de ir a correr comprar uns ténis de ginástica para o meu mais novo, a professora marcava falta se ele não os levasse, e ao lado dos ténis vi alheiras com desconto e um pão de Mafra e comprei o pão e as alheiras, e depois a dona do quinto andar ouviu-me no patamar e abriu a porta a perguntar se eu queria seis pacotes de leite que já estavam um dia depois do prazo, eu disse que sim, é claro, o leite de certeza estava bom, e portanto eu vinha carregada com os ténis, as alheiras, o pão de Mafra e os pacotes de leite, só queria era pôr-me a andar dali para fora o mais depressa que pudesse, e ainda havia de ir, carregada quem nem um burro, à procura de quem, se não vi o segurança, nem passei por ninguém ao sair.
Tenho é que deixar de ser estúpida e não pensar mais no caso, raleiras já tenho que me cheguem.
Mas não é que aquela história me tirou horas de sono e só tornei a dormir lá pelas quatro? E de manhã acordei e pensei logo naquilo, valha-me Deus que sou tão parva.
Quando lá cheguei logo o segurança me contou:
- Pois dona Ricardina sabe a senhora o que aconteceu?
A dona do oitavo ficou fechada no elevador, logo ela que tem claustrofobia, quando viu que não andava, começou a gritar e a bater nas paredes, mas aquilo é uma caixa grossa, os andares têm portas blindadas e janelas duplas, ninguém ouviu nada.
Eu estava na hora da ronda, mas ainda ouvi e fui logo ver, o elevador estava parado no sexto piso, tinha descido dois e empancou, a madame lá dentro gritava que estava no escuro e nem via os botões. Minha senhora, disse-lhe eu, não se preocupe, o que é preciso é calma. E então ela lá encontrou a campainha do telefone e responderam-lhe do Algarve, a empresa disse que lamentava imenso, que já não estava na hora do expediente mas ia resolver o assunto quanto antes. Mas ora, demoraram quase toda a noite, juntou-se gente do prédio, telefonaram pra tudo quanto é sítio, chegaram vizinhos doutros prédios, alarmados, e encheram as escadas, a madame berrava lá dentro que nem um porco na matança, salvo seja.
Até parecia um filme, dona Ricardina, nunca vi nada assim. Mas pelo menos as pessoas do prédio encontraram-se, uma vez na vida. A maioria nem fazia ideia de quem eram os vizinhos, nunca se tinham cruzado, é cada piso um dono e raramente alguém encontra outra pessoa. E aquilo da piscina lá em cima também é só para vista, quando muito juntam-se lá meia dúzia de miúdos, porque se fossem os moradores, ou só metade ou menos, nem sequer lá cabiam, e então acaba por não ir ninguém.
Eu cá pra mim não gosto nada de condomínios, se tivesse dinheiro escolhia outra coisa, mas todos acham que é o melhor que há, pelo menos é o que dizem por aí.
Bom, mas no fim lá veio um homem dos elevadores, detrás do sol-posto, e a senhora saiu, em braços, mais morta que viva e toda mijada até aos tornozelos, às tantas não aguentou e aliviou-se ali mesmo, coitada, o que havia ela de fazer. Pois foi assim, demoraram quase toda a noite e ela era uma pessoa rica, já pensou se fosse a senhora ou eu que lá estivesse, dona Ricardina? Nunca mais vinha ninguém, connosco não se ralavam.
Mas a madame não estava nada bem, parece que entrou em pànico e se descontrolou, começou a bater com a cabeça nas paredes até desmaiar, tiveram que a tirar e deitar na maca, ao princípio julgou-se que estava morta, veio o INEM e levaram-na de ambulância, mas agora de manhã já havia mais notícias, parece que está livre de perigo e se safou desta, sem mesmo quebrar um osso.
- Pois ainda bem, senhor Viçoso, ainda bem que ma diz isso, então até ,logo que tenho de ir lavar a escada. Se o elevador avariar comigo lá, o senhor tenha atenção e ouça logo.
- Não há-de haver azar, dona Ricardina, o diabo não está sempre atrás da porta.
E agora aqui vou eu no elevador, com o coração um bocadinho apertado. Além das pontes e do metro também fiquei com medo dos elevadores.
E ainda estou a pensar que podia ter feito alguma coisa. Não me saiu da cabeça a mulher lá trancada toda a noite. O que ela deve ter sofrido, coitada. E Deus manda ajudar o nosso semelhante. Pois.
Mas sempre sou muito bronca, raios me partam. Não tive culpa de nada, ora essa. Nadinha mesmo. Se ela lá ficou é porque Deus a quis deixar lá fechada e alguma razão deve ter tido para isso. Voltar atrás, carregada como eu ia? Era o que faltava.
Devia ajudar o meu semelhante? Ora, tinha de tratar da ninha vida primeiro.
E aquela mulher nem era semelhante a mim. Se fosse, vivia no meu prédio ou no meu bairro.
Aí é claro que eu voltava atrás e a ajudava, mesmo que fosse carregada e com pressa.
Mas nem ia ser preciso. No meu bairro não há elevadores.»
NOTA: Quem sabe, sabe! Tudo o mais são tretas!