Da excelente Viagem a Portugal, transcreve-se a chegada de Saramago à Guarda:
«Se o viajante fosse a exame, sairia reprovado. Exame de viajante, entenda-se, que outros, talvez sim, talvez não. Chegar à Guarda passada a uma da manhã, a um sábado, isto em Março, que é alta estação de neve na serra, e confiar no patrono dos viajantes para lhe ter um quarto vago, é incompetência rematada. Aqui lhe disseram que não, além ninguém veio abrir, acolá nem vale a pena tocar a campainha. Voltou ao primeiro hotel, como é possível, tão grande edifício e não haver sequer um quarto. Não havia. O frio, lá fora, era de transir. O viajante podia ter pedido a esmola dum sofá na sala de espera, para esperar a manhã e um quarto despejado, mas sendo pessoa com o seu orgulho entendeu que esta sua tão grava imprevidência merecia punição, e foi dormir dentro do automóvel. Não dormiu. Envolvido em tudo quanto podia fazer vezes de agasalho, trincando bolachas para enganar o apetite nocturno e aquecer ao menos os dentes, foi a mais mísera criatura do Universo durante as longas horas do seu pessoal Inverno polar. Estava clareando a manhã, dificilmente clareando, e o frio apertava, quando foi posto em terrível dilema: ou humilhar-se a pedir enfim abrigo na sala de espera tépida, ou sofrer a humilhação de ver os madrugadores espreitarem pelas janelas, a ver se lá dentro estava um homem ou pingente gelado. Escolheu a humilhação mais aconchegada, não se lhe pode levar a mal. Quando enfim, tendo saído muito cedo uma algazarra de espanhóis que tinham vencido esta Aljubarrota, ficou livre um quarto, o viajante mergulhou na água mais quente do mundo, e depois entre lençóis. Dormiu três horas de profundo sono, almoçou e foi ver a cidade. (...»
(Círculo de Leitores e Ed. Caminho, Lx 1985)