quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

A Gorda


«(...) Logo senti o meu coração cheio de amor pelo passarinho que me era concedido e aceitei. Comecei a gerar um pardalinho minúsculo e frágil na aurícula direita do meu coração. Andei assim os meses necessários com o coração batendo devagar para não assustar o passarinho. Nunca dormia voltada para o lado esquerdo para não apertar o menino. Nos princípios de Março, mais ou menos por essa altura, senti um aperto cardíaco. Uma dor muito aguda. Encolhi-me. Não conseguia respirar, que aflição! Abri a boca, abri, abri, agoniada, mal disposta, que confusão de sensações, e o pardalinho veio-me à garganta, envolto em sangue. 
Puxei-o para fora com o polegar e o indicador, e ali estava o mais belo filho deste mundo, perfeitinho como qualquer mãe deseja. O biquinho. As patinhas. As asinhas húmidas. Os olhinhos fechados. Sacudindo-se cheio duma vida que desponta. Que felicidade, o meu filho! Embrulhei o menino num paninho de algodão, limpei-o com muito cuidado e aconcheguei-o numa caixinha de sapatos forrada a trapos, muito quentinha. O menino foi crescendo com o meu amor e atenção. Não lhe atribuí nome, pois sabia que, sendo meu, não me pertencia, mas ao mundo. Chamava-lhe só Passarinho, o meu passarinho, o meu amor que não podia prender. (...)
Fechei a janela, voltei para dentro, e pensei que Deus deveria estar contente com o meu serviço. Oferecera-me o passarinho e retirara-se, deixando-me entregue à minhas mãos aprendizes.
Na sequência da aparição de Mark Ruffalo engravidei efectivamente nos anos que se seguiram, por duas vezes. Estive quase sempre grávida, real ou mentalmente, excluindo os dias passados na maca, na maternidade do hospital, à espera da raspagem dos abortos espontâneos, cuja concretização ia passando de turno para turno. (...)»

A despautérios destes, a que chamam imaginação criadora, deve chamar-se roubo ao tempo exíguo do leitor. Servem para quê? Para o impedir de dar tempo e atenção ao que merecia tê-los? Antes o Caderno de Memórias Coloniais!