Então os generais do Estado Maior promoveram-me a tenente, mandaram-me para Angola e marcaram-me lugar num DC-6. Era o melhor que havia. Dos aviões que me esperavam no Congo não conhecia nenhum. Nunca ensaiara quaisquer manobras de tiro, e tudo o que fizera em Alcochete eram adaptações com granadas de artilharia. As espoletas de percussão rebentavam nas copas da floresta. Por isso as granadas tinham no nariz um longo tubo cheio de trotil. Ia chegar o tempo de aprender.
A partida seria ao fim da tarde e era Maio. Mas adiaram o voo, por um problema qualquer. Eu improvisei uma pensão, não disse nada a ninguém. E fiquei com o dia livre, marcada que estava nova tentativa para a noite seguinte. Passei a tarde na feira do livro, avenida abaixo comprei a Terra de Neve, do japonês Kawabata, e avenida acima as Lendas da Guatemala, do Miguel Ángel Astúrias. Um já tinha o prémio Nobel, o outro estava para o ter. Não poderei afirmar que fui para a guerra mal acompanhado.
O velho quadrimotor descolou à meia-noite, fez tremer o Areeiro, e lá foi pelo mar abaixo, seguindo a rota duns marinheiros antigos. Eu adormeci logo que pude, quando acordei passara o Bojador. Mas um Nobel não se come, e eu sentia a fome dos antigos marinheiros, que também não pensaram no farnel. Quem me valeu ali foi a Mitina, mulher dum companheiro de aventuras, alminha previdente e caridosa que trazia numa bolsa um salame de cacau. Ao romper da manhã aterrávamos no Sal, e constou que havia a bordo uma avaria. Claudicara uma peça qualquer num dos motores, que a TAP nos traria de Lisboa.
As instalações da Força Aérea no Sal eram exíguas, para aquela tropa toda. É certo que lá ao fundo, disfarçado numa duna, havia um hotel de madeira. Mas era espaço restrito das tripulações civis que faziam escala nos Espargos. E foi assim que o velho DC-6 se viu transformado em tenda de campanha.
Na cauda ficava a zona de marinheiros e soldados. À frente havia mulheres, cavalheiros respeitáveis, e crianças, e bebés. Só um restrito grupo de privilegiados encontrou lugar nuns catres disponíveis, que havia na enfermaria. Foi o meu caso, durante dois dias. E quando se levantou aquele acampamento, o avião cheirava a fraldas, a paparocas azedas e a caravelas antigas.
Aterrámos em Bissau a meio duma tarde que era um forno. Fizemos ali aguada, e foi então que me penetrou na alma o eflúvio das calmarias do golfo, que nunca mais me saiu. Anos depois voltaria a encontrá-lo, mas não nos antecipemos, por enquanto ainda é cedo.
Que já estamos em Luanda, e vão mandar-nos para o Norte, para manter os bacongos em respeito. Lá voaremos aviões que nunca vimos, em missões que nunca praticámos. Mas quem nos conhece a História, há-de saber que estamos sempre a tempo.
Passado um ano esmurrei o focinho, quer dizer, bati com as trombas no chão. Literalmente. Passei dois meses numa enfermaria, depois dos médicos terem feito o milagre de não me deixar morrer. E o regresso a Lisboa, a remendar o resto, foi já num avião moderno, que vai num pé e já regressa noutro. Para que se leve até ao fim o faduncho da gesta gloriosa.