quinta-feira, 31 de julho de 2014

Este cretino

Vê o mundo pelo próprio umbigo. É perigoso.

A receita do cozinhado

Clarinha. http://www.jn.pt/Opiniao/default.aspx?content_id=4055842&opiniao=Daniel%20Deusdado

Phoska-se

Ó mana!

A barganha

Em tempos tive um amigo de quem depois me afastei, por pura salvaguarda. Uma vez que ele usava obedecer, e sempre, à mesma múmia do Estaline.
Um dia confessei-lhe uma perplexidade e uma suspeita: a de que o ódio ao Sócrates, em uso desde 2005 (já estávamos em 2010), era uma coisa manhosa. E nunca se tinha visto coisa igual e tão encarniçada, desde o Marquês de Pombal. Alguma coisa haveria a motivá-la!
Ele respondeu-me que essa questão do ódio era pura barganha insignificante. Importantes na sua crítica ao Sócrates eram as questões de fundo que ele me quis traduzir do manual. 
Eu fui-me embora. E pouco tempo depois, o comité central levou o Passos e o Relvas ao altar.
A barganha do ódio ao Sócrates continua, por alguma razão será. O comité central ganhou cinco pontos eleitorais, seguindo o manual. Hoje publica consignas bombásticas na primeira página do Avante e fica-se por aí. Os fiéis (e os infiéis também) foderam-se todos juntos.

quarta-feira, 30 de julho de 2014

La poule

Rameau. Puro cultismo. http://www.youtube.com/watch?v=xcXY7dyK7eQ

Jean-Philippe Rameau foi um compositor marcante do barroco francês, na primeira metade do séc. XVIII.
E esta composição "La poule" é exemplar, como objecto musical do cultismo barroco. Diferentemente do conceptismo, que explorava muitas vezes o puro jogo de conceitos (Pe. António Vieira!), o cultismo barroco era um mero exercício de formas, alheio e indiferente a outros conteúdos artísticos.
A literatura portuguesa da época (mormente a poesia fradesca dominante) é cultismo puro as mais das vezes, como demonstram os sonetos Ao Menino Jesus em Metáfora de Doce, ou outros de conteúdo igualmente insignificante.

Mais dura, mais cruel, mais rigorosa,
Sois, Lisi, que o cometa, rocha, ou muro,
Mais rigoroso, mais cruel, mais duro, 
Que o céu vê, cerca o mar, a terra goza.

Associemos céu, com cometa, e com rigoroso;
associemos mar, com rocha, e com cruel;
associemos terra, com muro, e com duro.
Presentes lá estão os quatro elementos da Natureza: a terra, a água e o ar, sendo que Lisi é o fogo. O resto do soneto não sai deste jogo, que é uma construção a régua e esquadro, e nela se esgota.

A composição de Rameau é um sofisticado exercício formal, fascinante a seu modo. Porém sem outra substância, além da pouca que existe no cacarejar duma galinha.
Ouçamo-la outra vez.
O ar do tempo das sociedades actuais contém semelhanças claras com o dos séc. XVII e XVIII. Ao menos porque nele predominam a perturbação, o desequilíbrio, a angústia do transitório. O espírito do homem não é hoje apolíneo, diurno, luminoso, positivo e confiante. Como não era então, muito por influência da santa Inquisição. Ora isso reflecte-se forçosamente na criação artística. 
Há então barroquismo, na literatura de hoje?!
Já houve mas já não há, porque isso dá muito trabalho. E porque entraram em jogo a produtividade, o imediatismo, o mercado, o dividendo, os três minutos de fama. Só o vazio é que é o mesmo.

A mesma albarda

E dizes que eu exagero, quando insisto que a desgraça destas nossas elites indígenas começou com a rapaziada de corte, que foi a ida a Ceuta em 1415! O povo acabou transformado em gado de exportação por esse mundo fora. Portugal ficou ao abandono, até que desabou o império, que nunca passou duma impotência mítica, triste e ruinosa. E as elites encheram a barriga. Mutatis mutandis, ainda hoje o fazem, montadas na mesma albarda!

Construtores do caos

Ou da puta que os pariu!

Marcel Marceau

Café parisien.

Fodidos pelo absurdo, é no que estamos!

Portugal é um país de broncos, que devoram como alarves a semântica e a racionalidade lógica da própria língua. 
Metade dos jornalistas que aí andam não distinguem o significado do adjectivo soalheiro, do significado do adjectivo solarengo. - Hoje esteve um dia solarengo!!! - informam.
Pior do que isso é o facto de 90% dos indígenas já confundirem o perigo de morte com o perigo de vida, que é coisa que não existe.
Façamos um boneco:
- O meu amigo teve um acidente e correu perigo de morte; ou, nesse acidente o meu amigo teve a vida em perigo. Nunca por nunca, o meu amigo teve um acidente e correu perigo de vida; quando muito, correu perigo de morte.
- Tem algum sentido uma sinalefa pública, a advertir ATENÇÃO! PERIGO DE VIDA?!
E o mais grave é que, para os gramáticos modernos, a prática dita a lei!

terça-feira, 29 de julho de 2014

Ou o PS mete na boca deste cabrão um pirete das Caldas e o cala

Ou no fim pouco sobra do PS. E do país.

Bolero em vernáculo

Ay España!

Assim não!

Portugalmente - Peregrinação da Lapa a Riba-Côa é literatura pura, do nobre género do relato de viagem. E há nele muitos casos e figuras, maus encontros e alegrias, amarguras e malfeitorias. Há uns tempos ofereci-o a uma biblioteca. E agora vou descobrir que ficou catalogado como monografia.
Tenho ali armazenada alguma livralhada, que tenciono oferecer a uma biblioteca. Mas a esta não será. Não vão eles confundir-me a caixotada com donativos ao banco de Perafita.

O desejo, não te esqueças!

É o Mut. É o tónus. É a busca insatisfeita. É o risco sem a bebedeira dele. É a ânsia intranquila. É a tusa das hormonas, se ainda vivem. É a beleza da alvorada. É a acção, é o fazer. É aquela nuvem das vontades que a Blimunda recolhia, e levaram a passarola do padre Gusmão.
Se abdicares do desejo, se deixares que to matem, ficas morto. 
Mas cuidado com as confusões! Que o Velho do Restelo tinha mais do que razão!

Nem com guru lá vai

O narciso traste inútil.

Benesse dos deuses

«Deus criou o mundo em Vila Nova de Gaia, numa tarde quente de Maio em 1930.»
(Ernestina, José Rentes de Carvalho, Quetzal).
Há-de ser verdade, se o disse um francês, a frase original é benesse dos deuses.
E um texto que começa assim, há-de ser um notável sucesso. 
E é, uma saga familiar que se vê pouco, com proveitos para o leitor.

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Quando é que ouviste falar

Do esplendor de Portugal?!

Com a saída da troika

«Tornou-se ainda mais evidente que o governo não tinha qualquer agenda que não fosse fazer a dobragem para português das exigências dos nossos credores.»

A puta

O pescador tem seis canas espetadas na margem e espera que as carpas piquem. Dá-lhes a manhã inteira. Veio da Ucrânia, há muito tempo, hoje talvez não viesse. E já fala sem sotaque, um linguajar enfeitado de vernáculo.
Com uma filha, que ficou em Kiev, conversa todos os dias através da Internet. E mora numa aldeia da Serra da Estrela, mais a mulher que anda além, debaixo dos salgueiros, a recolher lagostins.
Hoje acordaram às cinco da manhã e vieram às trutas salmonadas. Ele ainda sugeriu que era melhor passar no Pingadoce de Gouveia, comprar um peixe e metê-lo no forno. Mas ficavam a perder uma manhã assim.
Esse russo do Putin é que não passa dum sacana que só quer a guerra, e até paga mil dólares aos independentistas. Yuri já mal se lembra de Chernobyl, e agora nem quer saber da frota do Mar Negro, nem lhe importa o gás que chega da Sibéria e passa no pipeline. O que ele queria era que houvesse paz, sem passageiros mortos em aviões abatidos. Só por causa do sacana do Putin.
Uma carpa enrolada no anzol põe aquela cana em sobressalto. Não era bem salmonada, mas escapuliu-se. Levou um beiço rasgado mas ficou-se a rir. A puta.

Este palerma

É ridículo! E não tem a noção do ridículo. O que o torna patético. Tal como os broncos aparelhistas que o seguem e parasitam. 

Um pitéu que encontrei no correio, vindo de algum alfarrabista!

Dia 9

O bartolomeu não sabe explicar por que tomou a decisão de subir ao chiado, naquele dia à tarde. Certo está apenas de já não guardar esperanças no peito, à medida que ia subindo a rua nova do almada. Dormia há três meses nas arcadas do ministério das finanças, encostado a um pilar que os pombos ainda respeitavam. Esmolava no sul e sueste, quotidianamente posto em risco pelas avalanches de pernas que desaguavam de Cacilhas, e aventurava-se a um almoço na económica dos anjos, quando as forças lhe deixavam subir a avenida, o que era raro. Nesse dia trepou ao chiado como quem vai de férias.
Olhai as aves do céu, que não semeiam nem colhem! Soletrou o cartaz pendurado ao cimo das escadas da igreja dos mártires, que no íntimo sentiu como sua, porém sem cogitar o milagre que ali estava à espera. Atravessou o guarda-vento, tacteou ao longo da parede e lançou os dedos à pia da água benta, num gesto que desenterrou duma memória antiga. E foi quando a mão direita lhe transitava, canhestra, entre o pai e o espírito santo, que os olhos se afizeram à obscuridade e decifraram o peixe picotado no lioz da coluna, mesmo por cima do tanque.
Pouco dado a leituras cabalísticas, o bartolomeu ficou surpreendido. Mas logo saltou da surpresa para o espanto, quando viu o peixe desprender-se da pedra e mergulhar na água benta, num encarpado perfeito.
Arqueou as sobrancelhas, roçou um punho nos olhos, não queria acreditar. Procurou assento num dos bancos corridos, e ali ficou, de queixo nas mãos, enquanto a fresca atmosfera da nave central lhe assentava lentamente na cumeada dos ombros. À saída foi espreitar a concha da água benta. O pequeno dorso do peixe evolucionava lá dentro, a lavrar, cuidadoso, as lodagens do fundo.
Oito dias depois regressou à igreja, e lá encontrou o vulto escuro a remexer as águas. Mas o que via agora eram dois palmos de lombada sólida e carnuda, de barbatana inchada, abrindo as guelras ávidas ao maná da água benta. Logo ali capturou o robalo a mãos ambas, fê-lo desaparecer no bolso e foi tratar do jantar.
No dia seguinte foi à igreja de são roque e saiu-lhe uma carpa enorme. Na sé teve direito a salmão. Nos jerónimos ia-se empanturrando de besugos, de linguados, de azevias. O bartolomeu tem o futuro assegurado. Levará muitos anos a percorrer as pias de água benta de lisboa. Depois há-de vir o porto, santarém, a idolátrica braga… E o bartolomeu olhará, sem cobiça, os pássaros do céu, enquanto for correndo as capelas do minho, à espera duma lampreia.
(O Mensário do Corvo, Quasi Edições, 2002)

terça-feira, 22 de julho de 2014

Le vol noir des corbeaux

Rolls-Royce 1 - General Electric 0

Se a memória me não trai, o objectivo da missão era experimentar umas bombas-pinóquio, pois quem não tem cão caça com gato, toda a vida assim foi. Não havia espoletas adequadas para fazer detonar as bombas de fragmentação antes do impacto no solo, o que lhes suprimia muita da eficácia. A bomba-pinóquio era o milagre possível.
Encaixava-se na bomba um tubo de dois metros, atulhava-se de velas de trotil, montava-se-lhe na ponta uma espoleta comum, e a bomba detonaria a dois metros de altura, se não partisse o nariz.
Eu seguia a número dois, a nível médio pela Estremadura abaixo, à procura do campo de Alcochete. Até que a passarola se pôs a uivar. Uma portinhola aberta? Uma tampa mal fechada? Um hidráulico preguiçoso? Mau Maria! Nos relógios tudo bem!
O chefe esfalfou-se a bailar à minha volta e não viu nada. Invertemos posições e voltámos à missão. 
Uma vez abandonadas a si próprias, as bombas-pinóquio punham-se a acenar. Faziam vénias, sofriam de hesitações, lembravam as cortesias dum cão a apurar os faros. Por fim estabilizavam e lá iam. E no solo vassoiravam um terreiro, que era o que se pretendia. Mas não tiveram futuro, as pinóquias do milagre. Porque a história manda em tudo, embora pouco pareça. Só que isso é outra questão.   
Os uivos da passarola só se calaram na pista, com o motor totalmente reduzido. Transformaram-se em vibrações mecânicas, e a passarola parecia amotinada. Não me desencaixou as rótulas porque eu lhe cortei o pio sem misericórdias. Levaram-na pela arreata até ao estacionamento. Pobre dela, destratada, que na turbina lhe saltara a puta duma palheta. À despedida picotou mais meia dúzia e foi-se embora.
Lembrei-me da peripécia, muito antiga, quando há dias ouvi na televisão que a Tap tinha andado a largar pregos por cima de Camarate. E depois acabou na Caparica, a esvaziar os depósitos, para aterrar com um só motor. Gente mimada, é o que é!

NOTA: Neste lugar, mais se perseguem as artes da palavra do que a História. Mas procura respeitar-se algum rigor factual.
O texto é elaborado sobre três episódios: a experimentação das bombas-pinóquio, a perda de palhetas numa missão a Alcochete, e a Tap que também andou a largar pregos em Camarate. Qualquer dos três é factual e histórico.
Admite-se, porém, que possa o primeiro não ter parentesco com o segundo. Que as pinóquias tenham sido testadas com outra aeronave (1971?), e que a perda das palhetas ocorresse noutra missão ao campo de tiro, que a memória já não guarda (1973?).
Sobra o texto, sem compromisso.

Isto aqui

É clarinho! Como água da fontana!

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Ainda os Estudos Clássicos

Ou a agonia dum país que caiu nas unhas da mais primária cafraria.

Outra opinião

Ajuda a perceber, sempre.

Costela romântica

A televisão brindou-me ontem com um panegírico de Francisco Sá Carneiro.
E há de facto horas felizes. Porque o exercício me trouxe uma novidade, explicou-me um enigma, reforçou uma convicção, e atirou comigo para os braços do Camilo.
A novidade é que o Sá Carneiro era um papa-hóstias quotidiano.
O meu enigma foi sempre o que andaram a fazer nas hostes do PPD certas figuras como Emídio Guerreiro, Natália Correia e Helena Roseta, quando por lá passaram.
A convicção prévia era a do mito do Dom Sebastião. Que também ficou na história não pelo pouco que fez, mas pelo muito que havia de fazer, se não tivesse morrido antes do tempo.
E o Camilo? Esse já tinha contado quase tudo, na Queda dum Anjo. Com um pouco menos de realismo, bem entendido, que se lhe ajustava mal à costela romântica.

Situação primeira

Menina e Rubinho
Esta menina, com doze anos e três irmãos mais novos, desce pela mão da mãe o portaló dum vapor colonial, na Rocha do Conde de Óbidos. Nasceu e fez-se o que é numa província ultramarina, onde o Verão e a liberdade eram eternos. Hoje acaba de chegar a um país vago e tristonho, num dia de inverno frio, e há-de apanhar um comboio ronceiro, com bancos de madeira, que vai partir para o Norte.
Quando ela chegar ao Porto, estão a dar-se em casa de Rubinho os últimos retoques na árvore de Natal, cuja montagem dura há uma semana.
Daqui a um tempo, quando Rubinho for a férias na Granja, esta menina vai chegar no comboio todas as manhãs, e venderá saquinhas de pipocas pela praia fora para ajudar a mãe a manter a família.
Anos mais tarde, quando Rubinho andar entretido a descobrir a vida no peito acolchoado duma senhora inglesa, há-de afagar a menina as frieiras dos dedos, por causa da água gelada do tanque onde lava a roupa das camas dos hóspedes, para ajudar a mãe a manter a família.
E quando Rubinho for para a universidade, onde estão à espera dele os mestres que lhe hão-de explicar o pensamento dos filósofos, irá esta menina à escola técnica nocturna, porque as horas do dia são para ajudar a mãe a manter a família.
Um dia havemos nós de ler as memórias de Rubinho, e adentrar-nos com ele nos meandros do surrealismo. O que nos valia a pena era aprender a sustentar uma família. Mas o mundo é o que é, se não for antes o que fazem dele.

Corazon

Loco.  https://www.youtube.com/watch?v=owXdcA_aWzY

sábado, 19 de julho de 2014

Assim falava

Sócrates, antes de voltar amanhã..

Ó Crato!

Olha aí!

"Alentejanidades"

O guarda foi destacado para a Manta Rota, numa campanha estival. E a caminho aprimorou-se no farnel.
De Castro Verde levou os torresmos da balona, pitéu célebre. Faltava o famoso pão de Mértola, dum padeiro à beira do Guadiana.
- Conte comigo, compadre! Mas primeiro deixe vir o camião de Lisboa!

Estudos Clássicos?

- Acabaram. Ponto final!
É isso o que diz o Público de hoje, citando a directora Cristina Pimentel.
E realmente para quê as latinadas?! Mais ao jeito dos cafres que aí andam, teremos os estudos ovimbundos. Honni soit...

Mais

Kora do Mali.

Dilúvio

Desaba a tormenta pela encosta.
Só as pedras afogadas na torrente
Ficarão sem saber deste dilúvio.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Um país

Refém de escroques.

Privilégio

Terminada a gravação desta obra de Afonso Cruz, chega também ao fim a minha colaboração duma dúzia de anos com a Sonora. E é como fruto do trabalho voluntário duma equipa notável de locutores que milhares de obras ficam ao alcance dos utentes que não podem ler.
No caso presente, sobre o lastro duma fertilíssima imaginação criadora, o autor constrói uma engenhosa fábula narrativa, donde o amor, a morte, a natureza humana e o acto de viver (mesmo se em ambiente exótico), nunca estão ausentes. 
O romance responde exemplarmente às três perguntas canónicas a que o leitor comum, analista empírico, sujeitará qualquer texto: o quê, o como, e o porquê. Isto é, o que é que o texto diz, de que modo é que o faz, e com que finalidade.
O único reparo vem das seiscentas páginas do romance. Se o texto fosse aliviado dum quartel (o segundo?), parece que de essencial pouco se perderia, com vantagem geral.
Para Onde Vão os Guarda-Chuvas é um exercício inovador e luminoso da arte de narrar, é um encantamento para o leitor. É um grande ganho para a mísera Literatura. E foi um privilégio para mim, poder terminar assim.

Lembranças do velho Aspirina


Ódios velhos
Chegavam sempre no começo do Outono, quando os corvos passavam ao fim da tarde, a grasnar às frialdades que vinham de Além-Doiro. Interrompiam-nos a bola no terreiro, saltavam das carripanas escuras, abriam as gaiolas das matilhas. E caíam nos braços dum lavrador lá do povo, inchado por ter amigos na cidade. Soltavam palavrões que eu julgava proibidos, numa língua esquisita de pagãos, e escarravam muito pelo chão.
Manhã cedo faziam-se aos caminhos, de espingarda na ombreira, a açular a canzoada. E não havia brejo em todo o vale inteiro que escapasse à invasão. O cainçar dos podengos ouvia-se nas quebradas, e os ecos da fuzilada faziam ricochete nas encostas do vale, monte cá, monte lá, até ao cair da noite.
Retiravam-se ao terceiro dia, com as grelhas de metal enfeitadas de perdizes a largar nuvens de penas, e rosários de coelhos a pendular nos telhados das carripanas escuras.
Hoje vivemos paredes-meias. Os palavrões já me são familiares, e ao sotaque de pagãos acostumei-me aos poucos. Mas não sei como indultá-los do olhar morto das lebres, enforcadas nas janelas, a mandarem-me corrê-los à pedrada.

Enigmas

Entre o não-ser e o ser vai um enigma;
Se um deus intervier, dois haverá.
Sê tu, sem mais perguntas ao silêncio.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Kora

Do Mali. Uff!!!

Espeleologia

Só quem se mete em mudanças é que pode avaliar a tralha que tem em casa. Não é metade duma vida. Mas podia ser uma sinopse dela.

RECLAMAÇÃO ao Ministro das Finanças (2007)
Dirijo-me a V.Excia como instância última, e nos exactos termos em que o faço, por estritos motivos de cidadania. Por considerar que existem, também na administração fiscal, limites para o desrespeito pelo cidadão, limites para o atropelo dos direitos do contribuinte, limites para a leviandade, a arbitrariedade e a irresponsabilidade.
Em 1976 fui demitido do quadro de oficiais pilotos aviadores da FAP por um fundamentalista que, para o fazer, violou a lei e usurpou poderes que não tinha.
Em 1992 veio a ser corrigida tal situação, por força de acórdão do STA, que impunha a reconstituição da carreira. Mas não bastou para que o Ministério das Finanças aceitasse indemnizar-me, através do pagamento do somatório de vencimentos devidos, deduzido de rendimentos entretanto auferidos.
Em 1999, uma sentença do TACL viria impor tal indemnização, acrescida dos juros legais. No que respeita ao mesmo capital, a retenção na fonte, logo efectuada em sede de IRS, rondou os 70%.
Contactadas três instâncias da administração fiscal, sobre a forma de regularizar a situação tributária, achei-me perante três soluções divergentes, devidas por certo à transcendência do caso. E só em 2003 obtive instruções objectivas sobre como proceder, tendo então apresentado declarações de substituição relativas aos anos em causa.
Embora os valores a declarar estivessem perfeitamente definidos em numerosos documentos da FAP e da Secretaria Geral do Ministério das Finanças, a administração fiscal impôs-me valores diferentes, absurdos e arbitrários para mim. Apesar dos meus protestos, alterou as minhas declarações suplementares, tratou-me como ladrão do fisco, e impôs-me liquidações oficiosas, a acrescer aos referidos 70% já retidos na fonte. E só quando eu, em exposição dirigida ao Senhor Director de Finanças do Porto, com informação à Senhora Ministra das Finanças e ao Senhor Director Geral dos Impostos, fiz saber que receberia a tiro os agentes da fiscalidade, é que a administração fiscal se dignou olhar para o assunto e deu como acertadas, em 2004, as minhas alegações. Apesar de assim comprometida a corrigir os erros, a administração manteve-se inactiva, e em silêncio deixou sem resposta algumas exposições que apresentei posteriormente.
Em 2006 fiz queixa à Provedoria de Justiça. E foi através dela, já em 2007, que vim a tomar conhecimento de que a devolução do imposto indevidamente cobrado já havia sido efectuada pela Direcção dos Serviços de Reembolsos.
Verifiquei depois, não sem surpresa, não sem espanto, não sem indignação, que a devolução fora efectuada para a antiga morada de família, uma casa da minha falecida mulher, de quem fiquei viúvo em 1996. A correspondência acabou devolvida à origem pelos CTT. E o zelo profissional, a noção de serviço público, o sentido de dignidade humana e a falta de vergonha em uso no imprestável elenco que V.Excia tem sob tutela na dita Direcção de Reembolsos, não lhes permitiu fazer melhor do que simplesmente cancelar e declarar prescritos os cheques devolvidos pelos CTT.
Foi assim que, em Julho do corrente ano de 2007, o advogado que tive que constituir me comunicou a última decisão da mesma Direcção dos Reembolsos: durante o mês de Agosto, iria eu receber em casa a devolução do imposto indevidamente cobrado em 1999; estivesse eu atento à caixa do correio, não fosse ocorrer nova devolução por parte dos CTT.
Cancelei planos de férias, modifiquei a vida, abdiquei de rotinas que são direito meu. Mas não faltei à caixa do correio. E até hoje não chegou devolução alguma.
Isto acontece num momento em que, por razões de saúde que não partilho aqui com V.Excia, eu devia ausentar-me da minha residência por período prolongado. E não o posso fazer. Só porque o mesmo grupo de bandalhos que V.Excia tem sob tutela, depois de me privar de património, de tripudiar sobre direitos meus e anular-me a cidadania, vem agora condicionar-me a liberdade e fixar-me residência.
Isto é mais do que um cidadão deve tolerar.
Apelo assim a V.Excia...

Já ouvimos há muito falar de tudo isto

Mas vê-lo assim clarinho é outra coisa.

Papa-figos

Uma brisa agitou a figueira.
Fogem espavoridos os papa-figos,
Lambendo os bicos húmidos.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Ouvir gente inteligente

Além de ser um prazer, é meio caminho andado.

Isso!

- Antigamente, bicasse, havia muito, aí à volta. Gostam muito da frescura. E fazem uma canjinha melhor do que a da perdiz. Agora bicasse há menos.
- Galinhola?!
- Isso!

À beira d'água

- Os escalos já viviam na ribeira, antes de fazerem a barragem, para matar a sede à vila e ao concelho. Mas os pescadores é que trouxeram as trutas. E elas acudiam às poldras do Boco, lá em cima, onde a água era corrente, para a desova. Levavam dali sacadas de juvenis.
- Depois trouxeram as carpas, é ao que ando. Dormem fundo, têm tempo de crescer, há bicho aí de três quilos.
- A dada altura largaram aí umas percas. E eram tantas que se apanhavam à mão, ali na margem. Mas é bicho sem interesse, até nem gosto. 
- Foi quando foram buscar os achigãs. Os achigãs comem tudo, as ovas, os juvenis... Nem filhos próprios escapam. Há manhãs em que não tiro uma peça!
- Chegou a haver aí lontras, a cocar entre os salgueiros. Depois constou que as peles eram caras. Foram-se a elas, deixaram de se ver!

Lusco-fusco

Há dois minutos... mal o sol se pôs. E já desponta uma lua redonda, majestosa, dos lados da Marofa. É dia, sem já o ser.
As rãs berram, na represa. 
As andorinhas volteiam, numa fona, para a última ceia de mosquitos. 
Um cão ladra na distância, que vai já pegar no turno, a sossegar o mundo.

terça-feira, 15 de julho de 2014

Além de narciso e paranóico

Este homem é um cavalo de tróia. É um filho da puta dum traidor!
«AQUI»

Tal e qual

É só ler!

Ó Cavaco!

Vê se aprendes, minha besta!  [Pilhado aqui!]

Vai-se embora

A femme-de-ménage claudicou. Tem o homem sem salário há muito tempo. O patrão só lhe dará trabalho no estrangeiro. E ele não quer ir sozinho.
Tem dois filhos, o mais velho fez o décimo segundo e gostava de estudar. Mas ela sente-se de pernas cortadas.
Anda a reunir as tralhas. Vai-se embora.

Caralho!

Quem é que ainda não percebeu, neste país deserdado, que a antiquíssima direita ultramontana e oligárquica fritou o Sócrates durante anos e forçou a vinda da troika em 2011 com o único objectivo de inverter a relação de forças, reocupar posições perdidas e pôr outra vez a canga aos portugueses?!  

Qualquer cretino chapado

Já viu isto.

Ossos de ofício

Dois bezerros. Atulhados de pãezinhos, de bolachas, de bolinhos. De consolas electrónicas. Ambos filhos da vaca mais estúpida que já me saiu nas fábulas.
O seu lugar natural era no prado. Mas viajam mesmo atrás de mim, no autocarro que tomam por casa sua. São uma família portuguesa.
Já me estoiraram os tímpanos. Engoliram-me a santa paciência, a tolerância, a raiva. E ruminaram-me metade da manhã, mas fizeram um milagre imprevisível: transformaram-me o Porto em terra prometida.

sábado, 12 de julho de 2014

sexta-feira, 11 de julho de 2014

O triunfo

Dos porcos.

Olha!

Fica-te com esta e aguenta-te, que o Verão está aí!

O preço da cidadania

Sempre trouxe da Sonora bem mais do que lá deixei. Salvo daquela vez em que se fez a gravação da Odisseia, por uma versão que eu tinha em casa e disponibilizei, por não existir em São Lázaro. Era essa tradução brilhante que o Frederico Lourenço fez, verso a verso.
A obra lá ficou por alguns dias, conforme sempre acontece, para anotações burocráticas.
Eu acabei por esquecer-me dela, e alguém que se enamorou privatizou-a.
Quem é que disse que a cidadania não tem por vezes um elevado preço?!

O último eco da Sonora

Já um dia se falou aqui dum trabalho de Afonso Cruz na literatura, dos bons augúrios e inovações que trouxe. Hoje volta-se a falar a propósito da gravação deste romance, editado pela Alfaguara em 2013.
A gravação, que será a minha última colaboração com a Sonora enquanto locutor, tem sido demasiado interrompida por outros afazeres pessoais. Tem sido descontínua, sincopada, intermitente, o que não favorece uma visão crítica global e ordenada.
Mantém-se a excelência formal do discurso narrativo. Porém, sem arriscar opinião mais alargada, não parece que todos os bons augúrios se mantenham. Estão presentes os temas do amor, da morte, do exercício da vida, num quadro de sociedade oriental indiana. E o seu tratamento assenta numa surpreendente imaginação criadora, muito distinta da fantasia infantil e oportunista, que por aí prolifera como a sarna.
Da leitura resulta um efeito estético e encantatório assinalável. Factor que, fazendo parte da natureza e da função do texto literário, não deverá ocupar demasiado lugar, parasitando os outros componentes. Conviria atentar nisso.

Adenda: A locução do texto impõe, exige desde cedo, uma toada, um ritmo, uma voz característica. Mostra a experiência empírica que isso é um óptimo sinal de qualidade.

Tempo perdido

No princípio eram os porcos da finança, e o seu verbo peçonhento
Já no fim, tudo volta à vaca fria. Foi tudo tempo perdido

E levanta-se o padeiro às quatro da manhã...

«No dia 26 de Fevereiro fomos a Viana do Castelo ao 2º Encontro de Tocadores de Concertina e Cantadores ao Desafio - antes tínhamos feito provisão de garrafas para a viagem e quando chegámos ao terminal rodoviário já íamos bêbados...
Eu devia levar Lisabeth a ver o povo português a cantar... E a beber... E a vomitar... Foi o que aconteceu...
O Lopes da Ariosa, um admirador fervente dos meus livros, tinha-me convidado...
Já nos esperava à saída do autocarro da Avic vomitado por uns tantos enjoaditos...
Levou-nos a um convento diante da Santa Luzia onde íamos dormir...
Dormir? Oh, meu Deus, não! Era impossível, já que nas paredes havia crucifixos, retratos de padres, santas com o Divino Coração nas mãos... Por todo o lado uma higiene santificada... Cheirava a comida leve... A cera nos corredores...
A religião sempre me excitou...
Foram quatro horas de seguida...
Lisabeth era inflamável, perene, infinita...
Depois, cansados, dormimos duas horas integrais...
De manhã, às sete, começámos outra vez a foder... Movidos pelo eterno tesão do mijo e pela fria estranheza do local de granito...
E de repente, vozes e mais vozes saem de todos os corredores... Que abafam os gritos de Lisabeth... É uma excursão de peregrinos... Que com toda a certeza nos ouviu durante a noite... E nós que pensávamos que estávamos sós... Deviam ter dormido duas horas integrais, os bichos!
Olho a saída e vejo que o nosso quarto não tem vidros por cima da porta...
- I hate parents! - diz Lisabeth passando pela décima vez o bâton vermelho pelos lábios.
Há um grande segredo em Lisabeth. Talvez maior que os olhos dos coelhos quando são agredidos no pescoço pelas mãos familiares...»

Andei ali a empacotar uns livros, e aqui fica, para que conste:
1 - A D. Quixote editou, em 2007:
2 - João Pedro George reviu;
3 - O autor tem numerosos inéditos e a sua ficção, como disse um dia Ernesto Sampaio, é uma brisa fresca na literatura portuguesa.
O que é que deu nesta gente da literatura?!
E pensarmos nós que existem, em Portugal, tantas matas para limpar...

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Ainda e sempre

Ligados à máquina das nossas veias.

A porca

E o rabo dela.

Cidade

Mais do que chegar a ser uma cidade, o Porto é um lugar onde vive muita gente. Veja-se a exemplo a falta de vergonha com que recebe os visitantes que lhe chegam de autocarro: um lôbrego galpão, que é uma ruína de guerra.
Tem a S. Lázaro uma boa biblioteca, que já tinha. Tem pólos universitários de fazer inveja, que andou a construir e agora vai perdendo. Tem ali a Pedras Rubras o melhor aeroporto do Noroeste, que os low-costs amamentam; infelizmente não basta para o transformar no pólo peninsular de que uns indígenas falam. Tem um brinquedo caríssimo, de novo-rico pacóvio, não completamente inútil porque de horas em quando lhe dão uso, com concertos do Lenine e da Calcanhoto.
Em 2001 foi a capital de qualquer coisa. Hoje é a capital da precariedade e da penúria, se o não for antes da pura indigência. De sério, de irreversível, de verdadeiramente civilizacional, resta ao Porto a limitada rede de metropolitano, que transformou a vida da cidade e o civismo dos seus habitantes. Por esse pouco aí andam os falsários da finança, e o seu conto do vigário da dívida soberana e da austeridade. Para esses, o Porto estava bem servido com o velho americano. Que se fodam!

Uppsss!!!

Uns jogam à bola, outros vão à mãe-de-santo e encomendam-se a Iemanjá.
Uns suam, outros persignam-se, benzem-se, agua-bentam-se.
Uns fiam-se em qualquer Virgem, outros correm.
Que esperar senão as lágrimas, o fogo, e o ranger de dentes que aí anda. E a quem é que isso dói?!

terça-feira, 8 de julho de 2014

Ó Callas!

Aguenta aí, caraças!

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Bolo-rei?!

Nanão! Bolo-rainha!

Não é o Alzheimer!

É a mesquinhez e a pulhice!

Se dúvidas ainda houver

Sobre este grande conto do vigário, o melhor é perdê-las.

O Sol, lá está!

Bendita seja a luz do dia!

É chegada a hora de governarem agora os montanheses do interior!

Livrem-nos desta cavalgadura, que toma o freio nos dentes quando se ouve a si própria a arengar a plateias de broncos! 

quinta-feira, 3 de julho de 2014

quarta-feira, 2 de julho de 2014

É medroso

E é merdoso!

Gabi

Nessa altura Gabi era arquitecta. Morava nuns prédios novos, em frente dum logradouro onde os autocarros húngaros invertiam a marcha, abrindo sulcos na neve. Do outro lado da avenida, por trás da paragem dos eléctricos, havia um jardim zoológico. E nas manhãs mais agrestes o urso desertava do fosso da entrada, sumindo-se na caverna. Os bisontes, que moravam perto, apontavam à brisa a cornadura hirta e ruminavam. Pareciam estátuas de pedra, indiferentes à invernia que lhes desabava nos costados.
Foi numa dessas manhãs que me atrevi a saudá-la. Ela ficou a saber que eu chegara do Sul, das terras quentes onde os limões florescem. E só um provinciano limitado podia desconhecer o poder de sedução desse argumento.
Um dia foi mostrar-me o Sanssouci, onde Frederico-o-Grande pastoreava o tédio e os cuidados. Tinha escadarias a perder de vista, platibandas e terraços, e as estufas duma Orangerie. Mas não tinha laranjas de Setúbal, conforme já se tem visto, nem uma ribeira a atravessá-lo antes de chegar à Cruz Quebrada, nem um açude onde a Rainha Louca entrava na barcarola e dava banho aos fantasmas de ninfómana, verdadeira sarça a arder em labaredas sacrílegas.
Tempos depois Gabi fez-se fotógrafa. Enganchar umas nas outras as placas pré-fabricadas que chegavam das fábricas cumpriria o plano quinquenal, mas não era exercício estimulante. E ela gastava noites inteiras na câmara escura, a ensaiar revelações. Deixou-me sulcos na alma e sonhos inverosímeis, que o avião do regresso mais tarde interromperia.
Mas a história de Gabi vinha de muito mais longe, e eu conheci-a melhor anos depois, quando o muro antifascista desabou. Bogdan fazia dezassete anos nos arredores de Belgrado, em 1942. E um dia caiu nas unhas duma tropa da Gestapo, em horas de recolher obrigatório. Marcaram-lhe lugar num vagão J e despacharam-no para Eichsfeld, onde haveria muito que fazer.
A avó de Gabi, cuja não era nascida, regia a vida na quinta, qual Junker improvisado. E não sobejava nela um único homem válido, já que todos eram poucos para domesticar o mundo e as gentes que nele havia. Diz-se que não faltou muito.
Bogdan passava as noites na tarimba da estrebaria, mas durante o dia inteiro andava uma fona. E quando à noite se estendia nas palhas, mal tinha tempo de fechar os olhos. Mas dispõe a juventude de argumentos que não convém aqui menosprezar. Guiados por um instinto mais poderoso do que as insânias em voga, Bogdan e uma das filhas da Junker tomaram-se de amores fatais. Quando a guerra terminou, foi o mesmo vagão J que resgatou o Bogdan, devolvido a Belgrado depois de muitos trabalhos. E pouco tempo depois nasceu Gabi.
A mãe viria a casar-se com um mutilado de guerra, que tinha andado na Itália. E Gabi passou a infância no meio de ruínas, e viveu a meninice num internato gelado.
Cinquenta anos depois, montada no seu Trabant, cavalgou até Belgrado à procura de Bogdan. E regressou de lá pacificada.
Foi então que a encontrei pela segunda vez, num mundo em que os operários estavam a desaparecer. E Gabi acumulava na câmara escura imagens das velhas fábricas dos briquetes de linhite, e implosões de chaminés, que o camartelo dum ilusório progresso estava a desmantelar.
Quando apanhei o comboio na estação do Zoo, quedou-se desamparada na vastidão do cais, tomada dum medo antigo. Soube depois que o ilusório progresso lhe fixou um estipêndio para deixar de viver. Ela também.

A despropósito

Salgueiro Maia ao Panteão, seus canalhas!

terça-feira, 1 de julho de 2014

O Mata-Sete (rev.)

São certas guerras e as cenas da caça, numas e noutras há sempre um mata-sete. Personagem de estatura abaixo da mediana, um grosso tacão a compensar, vasta panóplia de tiques amalandrados, e galhardia, muita galhardia, e façanhas que não são para qualquer um.
O João era também assim, e nesta guerra que agora nos ocupa ia em mais de meia comissão. E como tinha uma fama a cultivar, descompunha-se com frequência a comentar o tiro dos companheiros, ou os fracos resultados do reconhecimento aéreo. Uma vez entrara ele num passe de bombardeamento, descobrira, pelo meio, qualquer coisa a mexer noventa graus ao lado, mudou de alvo, aniquilou-o, e recuperou em triunfo.
Era assim, e ninguém se zangava, o João que um dia saiu numa missão a chefe. Tratava-se do que as Neps designavam como missão de soberania, um patrulhamento de fronteira sobre um estranho rio que corria para norte. Ao contrário de todos os outros, que só descansam à vista do mar, este corria para o centro da terra, desafiando as normas da sua condição. E lá ia, caudaloso, ora saltando cascatas turbulentas, ora a espreguiçar-se em meandros vagarosos que eram uma beleza de se ver, e onde os pescadores lançavam as artes em rombudas pirogas pré-históricas.
A viagem era uma rotina. Nunca se previam sobressaltos, nunca havia semelhanças entre um qualquer negro à pesca e um terrorista temível, a executar uma invasão a partir do Congo. Havia combustível em Malanje. E o resto era uma jornada de passeio às deslumbrantes paisagens do norte de Angola.
Lá iam os dois bombardeiros, à distância do regulamento, semeando na límpida manhã o rataplã dos seus nove cilindros. Eram bombardeiros porque a tropa assim os nomeava, para os distinguir dos outros, que não levavam bombas. Esses eram frágeis e silenciosos, quando se ouviam era para trazer correio, ou comestíveis frescos, um raro passageiro, se não era para evacuar um felizardo que se tomou de febres, ou algum acidentado. Os bombardeiros não, faziam-se ouvir à légua. E o ribombar dos pistões, a encorpada silhueta e os artilhanços que arrastavam nas asas justificavam-lhes a designação.
Para os aviadores eram uma excelente arma de arremesso, e havia quem lhes chamasse o 110. Subiam a 110 milhas, cruzavam a 110 milhas, picavam a 110 milhas, pouco mais. Era uma caricatura. Mas a robustez daqueles aços, depois das atracações que já tinham suportado na mão de sucessivas gerações de candidatos a pilotos, garantia o total esmagamento de tudo o que apanhassem pela frente.
Mas vamos nós ao João, que já deixou à espalda Sanza Pombo, já deu o seu bom-dia aos amigos da Quicua, e que agora, à vista da fronteira, mandou formação de combate e vozes de armar. O asa terá, ou não, ligado já o circuito das metralhadoras. E o João, impante e agressivo, disposto a levar a coisa a sério, liga, sem olhar, os foguetes que traz. São dois enormes trambolhos franceses que o bombardeiro arrasta sob as asas, pendurados nos mesmos ganchos que também servem as bombas. O sistema de armamento permite a escolha adequada: ou dispara os canudos dos foguetes, ou liga espoletas e larga tudo, quando for seleccionado o circuito das bombas.
O João ajustou o passo e mandou ao asa que lhe cobrisse a manobra, lá em cima. O rio, assim visto de mais perto, limpidíssimo na manhã de sol, era uma fascinação quase poética. Mas não era para devaneios que o João ali estava. Resolveu dar uma lição de soberania àquele preto que freneticamente rema para terra, a refugiar-se no palmeiral contra esse grande susto que aí vem, atroando os ares.
João aconchega-lhe o gás, puxa pela esquerda para a altitude de tiro, corrige o visor de que se tinha esquecido e entra no passe. Esmera-se em pequenas correcções e cola o retículo na margem, bem à frente da canoa, já em riscos de ruína sob a remada vigorosa do barqueiro. Lá lhe pareceu que era altura e disparou, num sardónico sorriso.
Estranho sucesso este, que não saíram foguetes, antes parece que foi o bombardeiro a dar um salto em frente. E o João voltou a disparar, que o sacana do preto não tarda a desvanecer-se na sombra do palmeiral! Depois puxou bruscamente, saiu a rasar as copas, pendurou-se na asa direita a ver se percebia aquilo tudo. E lá estavam, nas barbas das palmeiras, as carcaças dos contentores de foguetes.
O pescador não soube o que fazer a tal oferta. O velho bombardeiro, liberto dos trambolhos, deu mesmo um salto em frente e lá seguiu, a 115 milhas. O Mata-Sete, com o dia já envinagrado, esqueceu-se de reduzir o motor. E o asa teve que meter gás à tábua para o acompanhar.

Isto é pirataria

Seguramente! Seguramente!