terça-feira, 1 de julho de 2014

O Mata-Sete (rev.)

São certas guerras e as cenas da caça, numas e noutras há sempre um mata-sete. Personagem de estatura abaixo da mediana, um grosso tacão a compensar, vasta panóplia de tiques amalandrados, e galhardia, muita galhardia, e façanhas que não são para qualquer um.
O João era também assim, e nesta guerra que agora nos ocupa ia em mais de meia comissão. E como tinha uma fama a cultivar, descompunha-se com frequência a comentar o tiro dos companheiros, ou os fracos resultados do reconhecimento aéreo. Uma vez entrara ele num passe de bombardeamento, descobrira, pelo meio, qualquer coisa a mexer noventa graus ao lado, mudou de alvo, aniquilou-o, e recuperou em triunfo.
Era assim, e ninguém se zangava, o João que um dia saiu numa missão a chefe. Tratava-se do que as Neps designavam como missão de soberania, um patrulhamento de fronteira sobre um estranho rio que corria para norte. Ao contrário de todos os outros, que só descansam à vista do mar, este corria para o centro da terra, desafiando as normas da sua condição. E lá ia, caudaloso, ora saltando cascatas turbulentas, ora a espreguiçar-se em meandros vagarosos que eram uma beleza de se ver, e onde os pescadores lançavam as artes em rombudas pirogas pré-históricas.
A viagem era uma rotina. Nunca se previam sobressaltos, nunca havia semelhanças entre um qualquer negro à pesca e um terrorista temível, a executar uma invasão a partir do Congo. Havia combustível em Malanje. E o resto era uma jornada de passeio às deslumbrantes paisagens do norte de Angola.
Lá iam os dois bombardeiros, à distância do regulamento, semeando na límpida manhã o rataplã dos seus nove cilindros. Eram bombardeiros porque a tropa assim os nomeava, para os distinguir dos outros, que não levavam bombas. Esses eram frágeis e silenciosos, quando se ouviam era para trazer correio, ou comestíveis frescos, um raro passageiro, se não era para evacuar um felizardo que se tomou de febres, ou algum acidentado. Os bombardeiros não, faziam-se ouvir à légua. E o ribombar dos pistões, a encorpada silhueta e os artilhanços que arrastavam nas asas justificavam-lhes a designação.
Para os aviadores eram uma excelente arma de arremesso, e havia quem lhes chamasse o 110. Subiam a 110 milhas, cruzavam a 110 milhas, picavam a 110 milhas, pouco mais. Era uma caricatura. Mas a robustez daqueles aços, depois das atracações que já tinham suportado na mão de sucessivas gerações de candidatos a pilotos, garantia o total esmagamento de tudo o que apanhassem pela frente.
Mas vamos nós ao João, que já deixou à espalda Sanza Pombo, já deu o seu bom-dia aos amigos da Quicua, e que agora, à vista da fronteira, mandou formação de combate e vozes de armar. O asa terá, ou não, ligado já o circuito das metralhadoras. E o João, impante e agressivo, disposto a levar a coisa a sério, liga, sem olhar, os foguetes que traz. São dois enormes trambolhos franceses que o bombardeiro arrasta sob as asas, pendurados nos mesmos ganchos que também servem as bombas. O sistema de armamento permite a escolha adequada: ou dispara os canudos dos foguetes, ou liga espoletas e larga tudo, quando for seleccionado o circuito das bombas.
O João ajustou o passo e mandou ao asa que lhe cobrisse a manobra, lá em cima. O rio, assim visto de mais perto, limpidíssimo na manhã de sol, era uma fascinação quase poética. Mas não era para devaneios que o João ali estava. Resolveu dar uma lição de soberania àquele preto que freneticamente rema para terra, a refugiar-se no palmeiral contra esse grande susto que aí vem, atroando os ares.
João aconchega-lhe o gás, puxa pela esquerda para a altitude de tiro, corrige o visor de que se tinha esquecido e entra no passe. Esmera-se em pequenas correcções e cola o retículo na margem, bem à frente da canoa, já em riscos de ruína sob a remada vigorosa do barqueiro. Lá lhe pareceu que era altura e disparou, num sardónico sorriso.
Estranho sucesso este, que não saíram foguetes, antes parece que foi o bombardeiro a dar um salto em frente. E o João voltou a disparar, que o sacana do preto não tarda a desvanecer-se na sombra do palmeiral! Depois puxou bruscamente, saiu a rasar as copas, pendurou-se na asa direita a ver se percebia aquilo tudo. E lá estavam, nas barbas das palmeiras, as carcaças dos contentores de foguetes.
O pescador não soube o que fazer a tal oferta. O velho bombardeiro, liberto dos trambolhos, deu mesmo um salto em frente e lá seguiu, a 115 milhas. O Mata-Sete, com o dia já envinagrado, esqueceu-se de reduzir o motor. E o asa teve que meter gás à tábua para o acompanhar.