São
certas guerras e as cenas da caça, numas e noutras há sempre um mata-sete.
Personagem de estatura abaixo da mediana, um grosso tacão a compensar, vasta
panóplia de tiques amalandrados, e galhardia, muita galhardia, e façanhas que
não são para qualquer um.
O
João era também assim, e nesta guerra que agora nos ocupa ia em mais de meia
comissão. E como tinha uma fama a cultivar, descompunha-se com frequência a
comentar o tiro dos companheiros, ou os fracos resultados do reconhecimento
aéreo. Uma vez entrara ele num passe de bombardeamento, descobrira, pelo meio, qualquer
coisa a mexer noventa graus ao lado, mudou de alvo, aniquilou-o, e recuperou em
triunfo.
Era
assim, e ninguém se zangava, o João que um dia saiu numa missão a chefe.
Tratava-se do que as Neps designavam
como missão de soberania, um patrulhamento de fronteira sobre um estranho rio
que corria para norte. Ao contrário de todos os outros, que só descansam à
vista do mar, este corria para o centro da terra, desafiando as normas da sua
condição. E lá ia, caudaloso, ora saltando cascatas turbulentas, ora a espreguiçar-se
em meandros vagarosos que eram uma beleza de se ver, e onde os pescadores
lançavam as artes em rombudas pirogas pré-históricas.
A
viagem era uma rotina. Nunca se previam sobressaltos, nunca havia semelhanças
entre um qualquer negro à pesca e um terrorista temível, a executar uma invasão
a partir do Congo. Havia combustível em Malanje. E o resto era uma jornada de
passeio às deslumbrantes paisagens do norte de Angola.
Lá
iam os dois bombardeiros, à distância do regulamento, semeando na límpida manhã
o rataplã dos seus nove cilindros. Eram bombardeiros porque a tropa assim os
nomeava, para os distinguir dos outros, que não levavam bombas. Esses eram
frágeis e silenciosos, quando se ouviam era para trazer correio, ou comestíveis
frescos, um raro passageiro, se não era para evacuar um felizardo que se tomou
de febres, ou algum acidentado. Os bombardeiros não, faziam-se ouvir à légua. E
o ribombar dos pistões, a encorpada silhueta e os artilhanços que arrastavam
nas asas justificavam-lhes a designação.
Para
os aviadores eram uma excelente arma de arremesso, e havia quem lhes chamasse o
110. Subiam a 110 milhas, cruzavam a 110 milhas, picavam a 110 milhas, pouco
mais. Era uma caricatura. Mas a robustez daqueles aços, depois das atracações
que já tinham suportado na mão de sucessivas gerações de candidatos a pilotos,
garantia o total esmagamento de tudo o que apanhassem pela frente.
Mas
vamos nós ao João, que já deixou à espalda Sanza Pombo, já deu o seu bom-dia
aos amigos da Quicua, e que agora, à vista da fronteira, mandou formação de
combate e vozes de armar. O asa terá, ou não, ligado já o circuito das metralhadoras.
E o João, impante e agressivo, disposto a levar a coisa a sério, liga, sem
olhar, os foguetes que traz. São dois enormes trambolhos franceses que o
bombardeiro arrasta sob as asas, pendurados nos mesmos ganchos que também
servem as bombas. O sistema de armamento permite a escolha adequada: ou dispara
os canudos dos foguetes, ou liga espoletas e larga tudo, quando for
seleccionado o circuito das bombas.
O
João ajustou o passo e mandou ao asa que lhe cobrisse a manobra, lá em cima. O
rio, assim visto de mais perto, limpidíssimo na manhã de sol, era uma
fascinação quase poética. Mas não era para devaneios que o João ali estava.
Resolveu dar uma lição de soberania àquele preto que freneticamente rema para
terra, a refugiar-se no palmeiral contra esse grande susto que aí vem, atroando
os ares.
João
aconchega-lhe o gás, puxa pela esquerda para a altitude de tiro, corrige o
visor de que se tinha esquecido e entra no passe. Esmera-se em pequenas
correcções e cola o retículo na margem, bem à frente da canoa, já em riscos de
ruína sob a remada vigorosa do barqueiro. Lá lhe pareceu que era altura e
disparou, num sardónico sorriso.
Estranho
sucesso este, que não saíram foguetes, antes parece que foi o bombardeiro a dar
um salto em frente. E o João voltou a disparar, que o sacana do preto não tarda
a desvanecer-se na sombra do palmeiral! Depois puxou bruscamente, saiu a rasar
as copas, pendurou-se na asa direita a ver se percebia aquilo tudo. E lá
estavam, nas barbas das palmeiras, as carcaças dos contentores de foguetes.
O
pescador não soube o que fazer a tal oferta. O velho bombardeiro, liberto dos
trambolhos, deu mesmo um salto em frente e lá seguiu, a 115 milhas. O Mata-Sete,
com o dia já envinagrado, esqueceu-se de reduzir o motor. E o asa teve que
meter gás à tábua para o acompanhar.