Ódios velhos
Chegavam sempre no
começo do Outono, quando os corvos passavam ao fim da tarde, a grasnar às
frialdades que vinham de Além-Doiro. Interrompiam-nos a bola no terreiro, saltavam
das carripanas escuras, abriam as gaiolas das matilhas. E caíam nos braços dum
lavrador lá do povo, inchado por ter amigos na cidade. Soltavam palavrões que
eu julgava proibidos, numa língua esquisita de pagãos, e escarravam muito pelo
chão.
Manhã cedo faziam-se
aos caminhos, de espingarda na ombreira, a açular a canzoada. E não havia brejo
em todo o vale inteiro que escapasse à invasão. O cainçar dos podengos ouvia-se
nas quebradas, e os ecos da fuzilada faziam ricochete nas encostas do vale,
monte cá, monte lá, até ao cair da noite.
Retiravam-se ao
terceiro dia, com as grelhas de metal enfeitadas de perdizes a largar nuvens de
penas, e rosários de coelhos a pendular nos telhados das carripanas escuras.
Hoje vivemos
paredes-meias. Os palavrões já me são familiares, e ao sotaque de pagãos
acostumei-me aos poucos. Mas não sei como indultá-los do olhar morto das
lebres, enforcadas nas janelas, a mandarem-me corrê-los à pedrada.