segunda-feira, 28 de julho de 2014

Um pitéu que encontrei no correio, vindo de algum alfarrabista!

Dia 9

O bartolomeu não sabe explicar por que tomou a decisão de subir ao chiado, naquele dia à tarde. Certo está apenas de já não guardar esperanças no peito, à medida que ia subindo a rua nova do almada. Dormia há três meses nas arcadas do ministério das finanças, encostado a um pilar que os pombos ainda respeitavam. Esmolava no sul e sueste, quotidianamente posto em risco pelas avalanches de pernas que desaguavam de Cacilhas, e aventurava-se a um almoço na económica dos anjos, quando as forças lhe deixavam subir a avenida, o que era raro. Nesse dia trepou ao chiado como quem vai de férias.
Olhai as aves do céu, que não semeiam nem colhem! Soletrou o cartaz pendurado ao cimo das escadas da igreja dos mártires, que no íntimo sentiu como sua, porém sem cogitar o milagre que ali estava à espera. Atravessou o guarda-vento, tacteou ao longo da parede e lançou os dedos à pia da água benta, num gesto que desenterrou duma memória antiga. E foi quando a mão direita lhe transitava, canhestra, entre o pai e o espírito santo, que os olhos se afizeram à obscuridade e decifraram o peixe picotado no lioz da coluna, mesmo por cima do tanque.
Pouco dado a leituras cabalísticas, o bartolomeu ficou surpreendido. Mas logo saltou da surpresa para o espanto, quando viu o peixe desprender-se da pedra e mergulhar na água benta, num encarpado perfeito.
Arqueou as sobrancelhas, roçou um punho nos olhos, não queria acreditar. Procurou assento num dos bancos corridos, e ali ficou, de queixo nas mãos, enquanto a fresca atmosfera da nave central lhe assentava lentamente na cumeada dos ombros. À saída foi espreitar a concha da água benta. O pequeno dorso do peixe evolucionava lá dentro, a lavrar, cuidadoso, as lodagens do fundo.
Oito dias depois regressou à igreja, e lá encontrou o vulto escuro a remexer as águas. Mas o que via agora eram dois palmos de lombada sólida e carnuda, de barbatana inchada, abrindo as guelras ávidas ao maná da água benta. Logo ali capturou o robalo a mãos ambas, fê-lo desaparecer no bolso e foi tratar do jantar.
No dia seguinte foi à igreja de são roque e saiu-lhe uma carpa enorme. Na sé teve direito a salmão. Nos jerónimos ia-se empanturrando de besugos, de linguados, de azevias. O bartolomeu tem o futuro assegurado. Levará muitos anos a percorrer as pias de água benta de lisboa. Depois há-de vir o porto, santarém, a idolátrica braga… E o bartolomeu olhará, sem cobiça, os pássaros do céu, enquanto for correndo as capelas do minho, à espera duma lampreia.
(O Mensário do Corvo, Quasi Edições, 2002)