Dia 9
O bartolomeu não sabe explicar
por que tomou a decisão de subir ao chiado, naquele dia à tarde. Certo está
apenas de já não guardar esperanças no peito, à medida que ia subindo a rua
nova do almada. Dormia há três meses nas arcadas do ministério das finanças,
encostado a um pilar que os pombos ainda respeitavam. Esmolava no sul e sueste,
quotidianamente posto em risco pelas avalanches de pernas que desaguavam de
Cacilhas, e aventurava-se a um almoço na económica dos anjos, quando as forças
lhe deixavam subir a avenida, o que era raro. Nesse dia trepou ao chiado como
quem vai de férias.
Olhai as aves do céu, que não
semeiam nem colhem! Soletrou o cartaz pendurado ao cimo das escadas da igreja
dos mártires, que no íntimo sentiu como sua, porém sem cogitar o milagre que
ali estava à espera. Atravessou o guarda-vento, tacteou ao longo da parede e
lançou os dedos à pia da água benta, num gesto que desenterrou duma memória
antiga. E foi quando a mão direita lhe transitava, canhestra, entre o pai e o
espírito santo, que os olhos se afizeram à obscuridade e decifraram o peixe
picotado no lioz da coluna, mesmo por cima do tanque.
Pouco dado a leituras
cabalísticas, o bartolomeu ficou surpreendido. Mas logo saltou da surpresa para
o espanto, quando viu o peixe desprender-se da pedra e mergulhar na água benta,
num encarpado perfeito.
Arqueou as sobrancelhas, roçou um
punho nos olhos, não queria acreditar. Procurou assento num dos bancos
corridos, e ali ficou, de queixo nas mãos, enquanto a fresca atmosfera da nave
central lhe assentava lentamente na cumeada dos ombros. À saída foi espreitar a
concha da água benta. O pequeno dorso do peixe evolucionava lá dentro, a
lavrar, cuidadoso, as lodagens do fundo.
Oito dias depois regressou à
igreja, e lá encontrou o vulto escuro a remexer as águas. Mas o que via agora
eram dois palmos de lombada sólida e carnuda, de barbatana inchada, abrindo as
guelras ávidas ao maná da água benta. Logo ali capturou o robalo a mãos ambas,
fê-lo desaparecer no bolso e foi tratar do jantar.
No dia seguinte foi à igreja de
são roque e saiu-lhe uma carpa enorme. Na sé teve direito a salmão. Nos
jerónimos ia-se empanturrando de besugos, de linguados, de azevias. O
bartolomeu tem o futuro assegurado. Levará muitos anos a percorrer as pias de
água benta de lisboa. Depois há-de vir o porto, santarém, a idolátrica braga… E
o bartolomeu olhará, sem cobiça, os pássaros do céu, enquanto for correndo as
capelas do minho, à espera duma lampreia.
(O Mensário do Corvo, Quasi Edições, 2002)