quarta-feira, 2 de julho de 2014

Gabi

Nessa altura Gabi era arquitecta. Morava nuns prédios novos, em frente dum logradouro onde os autocarros húngaros invertiam a marcha, abrindo sulcos na neve. Do outro lado da avenida, por trás da paragem dos eléctricos, havia um jardim zoológico. E nas manhãs mais agrestes o urso desertava do fosso da entrada, sumindo-se na caverna. Os bisontes, que moravam perto, apontavam à brisa a cornadura hirta e ruminavam. Pareciam estátuas de pedra, indiferentes à invernia que lhes desabava nos costados.
Foi numa dessas manhãs que me atrevi a saudá-la. Ela ficou a saber que eu chegara do Sul, das terras quentes onde os limões florescem. E só um provinciano limitado podia desconhecer o poder de sedução desse argumento.
Um dia foi mostrar-me o Sanssouci, onde Frederico-o-Grande pastoreava o tédio e os cuidados. Tinha escadarias a perder de vista, platibandas e terraços, e as estufas duma Orangerie. Mas não tinha laranjas de Setúbal, conforme já se tem visto, nem uma ribeira a atravessá-lo antes de chegar à Cruz Quebrada, nem um açude onde a Rainha Louca entrava na barcarola e dava banho aos fantasmas de ninfómana, verdadeira sarça a arder em labaredas sacrílegas.
Tempos depois Gabi fez-se fotógrafa. Enganchar umas nas outras as placas pré-fabricadas que chegavam das fábricas cumpriria o plano quinquenal, mas não era exercício estimulante. E ela gastava noites inteiras na câmara escura, a ensaiar revelações. Deixou-me sulcos na alma e sonhos inverosímeis, que o avião do regresso mais tarde interromperia.
Mas a história de Gabi vinha de muito mais longe, e eu conheci-a melhor anos depois, quando o muro antifascista desabou. Bogdan fazia dezassete anos nos arredores de Belgrado, em 1942. E um dia caiu nas unhas duma tropa da Gestapo, em horas de recolher obrigatório. Marcaram-lhe lugar num vagão J e despacharam-no para Eichsfeld, onde haveria muito que fazer.
A avó de Gabi, cuja não era nascida, regia a vida na quinta, qual Junker improvisado. E não sobejava nela um único homem válido, já que todos eram poucos para domesticar o mundo e as gentes que nele havia. Diz-se que não faltou muito.
Bogdan passava as noites na tarimba da estrebaria, mas durante o dia inteiro andava uma fona. E quando à noite se estendia nas palhas, mal tinha tempo de fechar os olhos. Mas dispõe a juventude de argumentos que não convém aqui menosprezar. Guiados por um instinto mais poderoso do que as insânias em voga, Bogdan e uma das filhas da Junker tomaram-se de amores fatais. Quando a guerra terminou, foi o mesmo vagão J que resgatou o Bogdan, devolvido a Belgrado depois de muitos trabalhos. E pouco tempo depois nasceu Gabi.
A mãe viria a casar-se com um mutilado de guerra, que tinha andado na Itália. E Gabi passou a infância no meio de ruínas, e viveu a meninice num internato gelado.
Cinquenta anos depois, montada no seu Trabant, cavalgou até Belgrado à procura de Bogdan. E regressou de lá pacificada.
Foi então que a encontrei pela segunda vez, num mundo em que os operários estavam a desaparecer. E Gabi acumulava na câmara escura imagens das velhas fábricas dos briquetes de linhite, e implosões de chaminés, que o camartelo dum ilusório progresso estava a desmantelar.
Quando apanhei o comboio na estação do Zoo, quedou-se desamparada na vastidão do cais, tomada dum medo antigo. Soube depois que o ilusório progresso lhe fixou um estipêndio para deixar de viver. Ela também.