segunda-feira, 22 de julho de 2024

As Aves 2-21

Gaspar também não sabe ao certo, nunca foi criatura de grandes surpresas, intui apenas que ser livre é cumprir, o ponto estará em saber quais são os mandamentos, e neste labirinto de razões nenhuma ariadne salvadora se mostra. Acreditou que a sociedade se compõe de classes com interesses que divergem, e que é preciso descobrir uma fórmula que os harmonize, se será a abolição das mesmas classes. Mas duvida de que os homens sejam todos iguais, pois tantas serão entre eles as diferenças quantos os diferentes lugares e situações de que o mundo se compõe. No íntimo desconfia da massificação, do nivelamento igualitário, que afoga a respiração das utopias na medíocre paisagem das ruelas de bairro. Acredita nos ideais que podem melhorar o mundo, e que é um dever de consciência e de cidadania lutar por eles. Mas pressente o erro das utopias que resvalam da realidade para o desenho e o sonho, e acabam agarradas à jangada náufraga dos dogmas, reproduzindo velhos vícios, semeando vítimas novas. Habituou-se a ouvir endeusar as massas, porém no íntimo desconfia da sua real consciência, e teme que isso não passe de facilidade retórica, cujo eco reboa nas fachadas das grandes praças, para consumo nos comícios. Apercebe-se de que os seus movimentos resultaram sempre de opções da razão, ele nunca foi um proletário, seja lá isso o que for. Fora de mesquinhos interesses a sua contabilidade, e bem diversas teriam sido as suas posições. Por isso isso se sentiu sempre fora do seu lugar. E talvez por isso vacile tantas vezes, e tantas vezes lhe custe compreender o que acontece. Assim é que a sua atitude foi sempre recolhida e discreta. Desafiou, porém, riscos que pressente, e cuja dimensão é incapaz de avaliar. Não pode hoje prever as atribulações que o esperam, e muito menos saberá que vinte anos depois não terá cessado ainda o seu calvário.

Mas Deus dá o frio conforme a roupa, é o povo que o diz, se o seu dizer está certo. No silêncio da noite ouvimos apenas o ronronar deste motor que nos transporta, a estrada é macia e cómoda, sem sobressaltos de molas, passa por nós, às vezes, um camião pesado e a onda de choque estremece-nos, acorda-nos o roncar das engrenagens, e só então nos damos conta do grande silêncio em que vamos, parece geral a tranquilidade, se não for erro da nossa apressada avaliação. De Gaspar já sabemos que neste manto se resguardam apenas desconforto e incerteza, ou alguma pusilanimidade, no ponto em que as coisas estão só a grande força ou a inconsciência da juventude lhe pode servir de alguma ajuda. Dos outros nada sabemos, e a lua já cá não está para nos iluminar, acaso se fartou desta monotonia e foi pregar a freguesia mais animada.

Quem bem prega é frei Tomás, pois, para pregador, essteve Gaspar apenas prometido. Saiu da escola na desgraçada época em que o liceu era ainda um luxo de gente rica, e de novo nos cai nas mãos a questão de saber se o mundo será igual para todos, ou se não é antes para todos diverso, pela simples razão de que para todos igualitariamente não chega. Acabou há alguns anos a guerra que dessangrou a Europa, da qual um sopro divino nos livrou, aoque se vai ouvindo, e afinal é no nosso corpo que as mais fundas feridas se notam, apetece desejar que ela tivesse passado por cá e deixasse tudo arrasado, ao menos entenderíamos o porquê das coisas. E em vez de passarmos a vida a agradecer a paz que nos deram, sem a termos merecido, aproveitávamos para mudr alguma coisa, percorre-se o país inteiro e não há uma escola fora das capitais de distrito, tudo o resto são comendas, alguma paisagem e trabalho de sol a sol. Não tardam muitos anos e havemos de conhecer os invernos de Paris antes de irmos a Lisboa, e falaremos francês antes de sabermos ler a nossa língua, e andaremos de passeio nas margens do Sena, aos domingos, antes de vermos o mar e as dunas da nossa terra, e teremos carreiras expresso para os cantões suíços antes de as termos para ir à cidade, de que nos serviriam elas. (Cont.)

terça-feira, 2 de julho de 2024

As Aves 2-20

Gaspar entretém-se com estes pensamentos enquanto deambula cabisbaixo pelo saibro das ruelas, pergunta-se pela racionalidade do mundo e não sabe ainda que não há, nesta vida dos homens, racionalidade nenhuma. Um dia virá a descobri-lo por força de tntas perguntas lhe ficarem sem resposta, mas não sabe ainda que tudo quanto consegue o comum dos mortais é mover-se por paixões e instintos vagamente primários, às vezes pela força dum sentimento, quase sempre por interesses que é melhor manter privados. Nestes tempos de sonho à solta, acreditou que era possível uma outra forma de viver, e que, essa sim, havia de apurar nos homens uma outra racionalidade. Não sabe ainda que o sonho de transformar o mundo é uma febre de idealistas inquietos, condenados ao fracasso e ao desprezo geral, um dia virá a descobrir que só o poder ou a violência, última forma de poder de quem outro não tem, atraem a atenção e o respeito dos homens.

Mas isso Gaspar não o sabe, por enquanto. Nes tempos de galope desenfreado, acreditou numa verdade que se imporá por si mesma, tanto melhor se alguém lhe for abrindo caminho. E viu na revolução a oportuna ocasião de gritar contra a injustiça e a mentira, como se tais coisas, em absoluto, existissem, a ocasião de chamar a terreiro os poderosos, e vê-los assim, ridículos e frágeis, sem peitorais de alfaiate, assustados, de caças na mão, como qualquer um. Gaspar ainda não descobriu que neste mundo só há injustiça quando uma vítima dela tem consciência. E que o poder só mente quando os seus discursos esbarram no riso geral e provocam o desprezo do povo. Afora isso, o poder exerce-se, e legitima-se a si mesmo, e ninguém se pode queixar dele. A injustiça e a mentira, referendadas pelo silêncio geral, transformam-se em ideologia e em catecismo, são a legalidade. É por isso que a suma essência de todos os poderes está em descobrir a fórmula capaz de alienar os homens, capaz de os privar da liberdade crítica, dando-lhes em troca o sono dos justos. E desde as promessas de boa-ventura no além, a um par de safanões dados a tempo, não contando com outras sofisticações que a seu tempo virão, vasto é o arsenal já inventado, de efeitos comprovados, por atacado e a singelo. Velha de séculos é a escola em que os poderosos aprenderam a conhecer as fragilidades do inimigo, e lento é o processo em que o homem comum ganha consciência dos seus direitos e da força que tem.Gaspar dá-se conta, embora tardiamente, de que averdadeira revolução é um gesto de rebelião estritamente pessoal, que tem que ser elaborado por cada um, e que só um voluntarismo perigoso a pode transformar num acto vanguardista, em que uns se vêem arrastados por outros, e um só iluminado supõe representar a voz de todos. Um dia achar-se-á sozinho, atado ao pelourinho da praça, culpado de todos os males. Por isso, não há-de a revolução gritar  contra a injustiça e a mentira, que são relativismos privados. Antes reivindicará a liberdade geral de cada homem, pela qual será, cada homem, responsável. Ver-se-á então o que faz cada um desta caixa de Pandora, das delicadas benesseas que traz, e dos agudos cuidados que exige.

Mas não há, sobre o mote, geral unanimidade, conforme se tem ouvido. Liberdade é o trabalho mais o pão, é levantar os punhos pela revolução, é ter cada um segundo a precisão, liberdade é votar em chegando a sazão, eu prometo-te o céu e tu dás-me a eleição, é não haver poder, é não haver patrão, é não ser proibido escarrarmos no chão, liberdade é cultura, liberdade é saber, é fazer cada um tudo quanto quiser, sobretudo respeitinho pela propriedade, isso é para mim a real liberdade, liberdade é ter cada um seu lugar, é uns a obedecer e outros a mandar, liberdade é poder, liberdade é mantença, um dia saberemos o que isso vem a ser, e se cada cabeça der uma sentença, talvez não haja, afinal, mais nada que aprender. (Cont.)