Gaspar entretém-se com estes pensamentos enquanto deambula cabisbaixo pelo saibro das ruelas, pergunta-se pela racionalidade do mundo e não sabe ainda que não há, nesta vida dos homens, racionalidade nenhuma. Um dia virá a descobri-lo por força de tntas perguntas lhe ficarem sem resposta, mas não sabe ainda que tudo quanto consegue o comum dos mortais é mover-se por paixões e instintos vagamente primários, às vezes pela força dum sentimento, quase sempre por interesses que é melhor manter privados. Nestes tempos de sonho à solta, acreditou que era possível uma outra forma de viver, e que, essa sim, havia de apurar nos homens uma outra racionalidade. Não sabe ainda que o sonho de transformar o mundo é uma febre de idealistas inquietos, condenados ao fracasso e ao desprezo geral, um dia virá a descobrir que só o poder ou a violência, última forma de poder de quem outro não tem, atraem a atenção e o respeito dos homens.
Mas isso Gaspar não o sabe, por enquanto. Nes tempos de galope desenfreado, acreditou numa verdade que se imporá por si mesma, tanto melhor se alguém lhe for abrindo caminho. E viu na revolução a oportuna ocasião de gritar contra a injustiça e a mentira, como se tais coisas, em absoluto, existissem, a ocasião de chamar a terreiro os poderosos, e vê-los assim, ridículos e frágeis, sem peitorais de alfaiate, assustados, de caças na mão, como qualquer um. Gaspar ainda não descobriu que neste mundo só há injustiça quando uma vítima dela tem consciência. E que o poder só mente quando os seus discursos esbarram no riso geral e provocam o desprezo do povo. Afora isso, o poder exerce-se, e legitima-se a si mesmo, e ninguém se pode queixar dele. A injustiça e a mentira, referendadas pelo silêncio geral, transformam-se em ideologia e em catecismo, são a legalidade. É por isso que a suma essência de todos os poderes está em descobrir a fórmula capaz de alienar os homens, capaz de os privar da liberdade crítica, dando-lhes em troca o sono dos justos. E desde as promessas de boa-ventura no além, a um par de safanões dados a tempo, não contando com outras sofisticações que a seu tempo virão, vasto é o arsenal já inventado, de efeitos comprovados, por atacado e a singelo. Velha de séculos é a escola em que os poderosos aprenderam a conhecer as fragilidades do inimigo, e lento é o processo em que o homem comum ganha consciência dos seus direitos e da força que tem.Gaspar dá-se conta, embora tardiamente, de que averdadeira revolução é um gesto de rebelião estritamente pessoal, que tem que ser elaborado por cada um, e que só um voluntarismo perigoso a pode transformar num acto vanguardista, em que uns se vêem arrastados por outros, e um só iluminado supõe representar a voz de todos. Um dia achar-se-á sozinho, atado ao pelourinho da praça, culpado de todos os males. Por isso, não há-de a revolução gritar contra a injustiça e a mentira, que são relativismos privados. Antes reivindicará a liberdade geral de cada homem, pela qual será, cada homem, responsável. Ver-se-á então o que faz cada um desta caixa de Pandora, das delicadas benesseas que traz, e dos agudos cuidados que exige.
Mas não há, sobre o mote, geral unanimidade, conforme se tem ouvido. Liberdade é o trabalho mais o pão, é levantar os punhos pela revolução, é ter cada um segundo a precisão, liberdade é votar em chegando a sazão, eu prometo-te o céu e tu dás-me a eleição, é não haver poder, é não haver patrão, é não ser proibido escarrarmos no chão, liberdade é cultura, liberdade é saber, é fazer cada um tudo quanto quiser, sobretudo respeitinho pela propriedade, isso é para mim a real liberdade, liberdade é ter cada um seu lugar, é uns a obedecer e outros a mandar, liberdade é poder, liberdade é mantença, um dia saberemos o que isso vem a ser, e se cada cabeça der uma sentença, talvez não haja, afinal, mais nada que aprender. (Cont.)