sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Adagiário - 9

Quando a esmola é grande, o pobre desconfia.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Portugalmente - 81


(...)

O viajante chegou à estação de Almendra, demorou um olhar nela, desejou não ter lá ido. Ouviu Camilo falar do que ela foi noutros tempos, da chegada dos comboios que vinham da cidade a silvar vapor e fumaradas, dos cestões de fruta nas balanças para despacho ao domicílio, dos vagões de cereais e de farinhas que rangiam ao partir, das pipas atulhadas dum arroz envergonhado para o rancho dos falangistas, dos barris atestados de volfrâmio clandestino para as forjas dos nazis, das encomendas que vinham endereçadas com etiquetas de pau, da pedra-lipes para as vinhas. O viajante desejou não ter lá ido, porque hoje só ali vão turistas desocupados e ladrões de carris, muitos que já não existem são travejamentos de vivendas patuscas, onde moram portugueses que adormecem em sossego. O viajante desejou não ter lá ido, pois ver assim desprezado um lugar destes é ver a esperança a morrer. E, sendo verdade ou mentira, o viajante não se tem por masoquista.
(...)

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Ar do tempo - III

Em meados do séc. XVIII, o Arcadismo, a 3ª fase clássica, foi um precário interregno de equilíbrio, antes da grande onda romântica. Reagindo aos formalismos ocos do barroco, e reclamando os princípios do racionalismo iluminista, os árcades procuraram ressuscitar as antigas formas e lugares clássicos, seguindo modelos franceses. Em certa medida foi um refúgio falhado, porque a história não avança recuando.
Porém, fazendo eco duma crescente ascensão cultural burguesa e do declinar do antigo regime , há um quotidiano prosaico que entra pela primeira vez na poesia. O louro chá no bule fumegando, de Correia Garção, que usa ainda a forma clássica do soneto com conteúdos inovadores, é um interessante exemplo dessas contradições.
Mas não tarda aí o Romantismo, de raiz inglesa e alemã, a arrumar na prateleira o universo estético clássico, e a reivindicar os direitos da subjectividade, da inspiração, do génio, do individualismo, do "eu": o sentimento, a paixão, a noite, a solidão, o belo-horrível, a tradição popular medieval como origem nacionalista, tornam-se tópicos comuns.
O liberalismo político não faz senão alargar o espaço cultural e social burguês. E a prosa portuguesa, com as Viagens na Minha Terra, de Garrett, solta-se para a modernidade.
A história nunca se repete ipsis verbis, ou ficaria parada. O que se repete é o seu ciclo, integrando elementos novos que a fazem avançar.

Adagiário - 8

Pouco janta, quem tarde se levanta.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Encruzilhada

Aqui.

Barrela, e a falta dela

Os funambulismos malabares a que se vem assistindo no campo da Justiça mostram de forma cruenta o que sempre foi verdade, às vezes obscurecida: por baixo da majestade e do lustro das togas, o que mais há são cuecas mal lavadas.

Ecos da Sonora - XXXII

É raro, mas acontece, tropeçar a gente num pedaço de ficção que se lê com prazer e proveito. Este vem da América, da mão do senhor J. D. Salinger, e chamaram-lhe À Espera no Centeio.
É editado pela Difel, mas viu a luz do dia no ano longínquo de 1945. E isso explica muita coisa.
O narrador, um adolescente de 16 anos, é despedido do colégio que frequenta, pelos resultados medíocres. E regressar a casa nessas circunstâncias não é um gesto pacífico. Durante cinco dias, de sábado a quarta-feira, desfilam emoções, errâncias, peripécias, aventuras, lembranças e sonhos, numa sucessão de pequenos gestos que à nossa frente compõem o quadro afectivo, social, cultural e mental dum adolescente americano da época.
A linguagem utilizada é a surpresa maior, marcada por uma irreverência que se adequa perfeitamente à condição do narrador. Num registo que chamaremos mínimo, anda perto da pura oralidade. Faz uso dum calão adolescente que às vezes roça o vernáculo, sem nunca atingir o despudor nem fazer disso bandeira. A mostrar que, com mestria e muito pouco, é possível fazer muito.
Junte-se a isso uma tradução de luxo, o que é raríssima coisa, e o rebuçado é perfeito.
(...) Quando estava em Pencey, morava na ala Ossenburger nos dormitórios novos. Era só para os do penúltimo ano e para finalistas. Eu era do penúltimo ano. O meu colega de quarto era finalista. Tinham posto àquilo o nome de Ossenburger, por causa de um tipo que tinha andado em Pencey. Tinha feito uma data de massa no negócio das agências funerárias depois de ter saído de Pencey. (...) Seja como for, doou a Pencey um monte de massa e então eles deram o nome dele àquela ala.
No primeiro jogo de futebol do ano, apareceu no colégio na merda daquele Cadillac enorme, e nós tivemos todos de nos levantar na bancada e dar-lhe uma "locomotiva", que é uma aclamação. Depois, na manhã seguinte, na capela, fez um discurso que durou umas dez horas. Arrancou uma cinquenta piadas foleiras, só para nos mostrar o tipo porreiro que ele era. Uma coisa que só visto. Depois desatou a contar-nos porque é que nunca se envergonhava, quando se via metido em qualquer problema ou assim, de ajoelhar e de rezar a Deus. (...) Aquela deu cabo de mim. Estou mesmo a ver o armante daquele cabrão a meter a primeira e a pedir a Jesus que arranjasse maneira de mais uns quantos esticarem o pernil.
A única parte gira do discurso foi quando ele ia mesmo a meio. Estava a contar-nos o gajo bestial que ele era, o manda-chuva que era e tudo, qundo de repente o tipo sentado na fila à frente de mim, o Edgar Marsalla, mandou um peido do caraças. Foi uma coisa bastante grosseira, na capela e tudo, mas também bastante divertida. G'ande Marsalla. Ia mandando o telhado pelos ares. (...)

Portugalmente - 80

(...)
Camilo foi desenhando os lances destas tragédias nas curvas e contra-curvas do caminho para a estação. E ao viajante foram escassos estes dois olhos que tem, para os perder nos encantos da paisagem. Nas vinhas do benefício encabritadas nos montes, nos olivais que pontilham as colinas, nos campos de amendoeiras a marinhar nas encostas.
Mas nem tudo é o que parece, na opinião de Camilo. E o viajante, que de amêndoas só conhece esta paisagem, não sabe que as mais delas os donos as não apanham, apesar da qualidade excepcional. Ele há subsídios à lavragem e aos cuidados do maneio. Mas o declive das encostas e o tipo de plantio impossibilitam a apanha mecânica, e as despesas de mão-de-obra transformam a colheita em pura perda. O viajante não sabe que na praça do Tablado as cotações se definem pela amêndoa da Califórnia, um produto de segunda a preços que ninguém bate. E que os poucos compradores, quase todos de Escalhão, só lhe pegam ao desbarato para a vender aos espanhóis. É assim que a casanova e a célebre fura-saco se limitam a esbranquiçar a paisagem, para excursões de reformados e animação das fábulas mouriscas. Deixaram simplesmente de existir, diluídas no mercado espanhol.
À margem da ribeira de Aguiar encontrou o viajante a dormitar na capela uma Senhora do Campo, enquanto o rebanho de António Digo-lhe-mais retoiçava numas hortas. Mais louçãs vão as ovelhas que o pastor, com este ar tão consumido, notou logo o viajante. Ao António não lhe agradam as notícias sobre o leite, que uns espanhóis lhe recebem. Querem-lhe baixar os preços e a ele não lhe convém. Bem queria evitar vender o gado, que já lhe criou amor há muitos anos. Mas assim…digo-lhe mais! Além disso anda gente por aí a derrotar os zimbros à socapa, por causa duns óleos da medicina. Os espanhóis dizimaram os que lá tinham, e agora vêm buscar os portugueses ao preço da uva mijona. Digo-lhe mais, outra vez!
(...)

domingo, 24 de outubro de 2010

Ecos da Sonora - XXXI

Portaria do Ministério do Reino
Tendo chegado ao conhecimento de Sua Majestade El-Rei, por informação do governador civil de Lisboa, e publicações dos jornais, que no Casino Lisbonense, no Largo da Abegoaria desta capital, se celebram reuniões públicas com a denominação de "conferências" nas quais se tem feito uma série de prelecções em que se expõem e procuram sustentar doutrinas e proposições que atacam a religião e as instituições políticas do estado ... (...) ... que o governador civil de Lisboa não consinta as referidas reuniões e conferências... (...) ... sob pena de se proceder contra os transgressores na conformidade das leis.
Paço, em 26 de Junho de 1871 - Marquês d'Ávila e de Bolama

NOTA: Estas Conferências do Casino tiveram lugar há 150 anos. Enfim, as que se realizaram. Particularmente esta, de Antero de Quental, teve a lucidez e a ousadia de nos colocar diante dos olhos uma série de questões decerto polémicas, porém fundamentais para uma útil compreensão da nossa história e da nossa vida colectiva.
E no entanto, ao nível da nossa elaboração mental, é como se não tivesse existido.
Não é a primeira vez que ela é editada. Mas creio não andar longe da verdade, se pensar que 10% dos portugueses já a leram, mais 20% ouviram falar dela, e os restantes a desconhecem em absoluto. Em qualquer nível do ensino, ela não é objecto de atenção. Aqui ou ali, alguma fugidia e inócua referência.
Já a certeza de que, ao nível do poder, os marqueses d'Ávila e Bolama destes anos todos de bom grado assinariam a portaria da sua interdição, perante a nossa indiferença colectiva, é coisa que me causa nojo íntimo. Lá no fundo merecemos o que temos.

Ecos da Sonora - XXX

[ibidem]
(...)
A estas duas causas principais de decadência, uma moral e outra política, junta-se uma terceira, de carácter sobretudo económico: as Conquistas.
Há dois séculos que os livros, as tradições, e a memória dos homens, andam cheios dessa epopeia guerreira, que os povos peninsulares, atravessando oceanos desconhecidos, deixaram escrita por todas as partes do mundo. Embalaram-nos com essas histórias; atacá-las é quase um sacrilégio. E todavia esse brilhante poema em acção foi uma das maiores causas da nossa decadência. É necessário dizê-lo, em que pese aos nossos sentimentos mais caros de patriotismo tradicional.
(...)
No ponto de vista heróico, quem pode negá-lo, foi esse movimento das conquistas espanholas e portuguesas um relâmpago brilhante, e por certos lados sublime, da alma intrépida peninsular. (...) A desgraça é que esse espírito guerreiro estava deslocado nos tempos modernos. As nações modernas estão condenadas a não fazerem poesia, mas ciência. (...)
Ora é à luz da Economia Política que eu condeno as Conquistas e o espírito guerreiro. Quisemos refazer os tempos heróicos na idade moderna: enganámo-nos. Não era possível: caímos. Qual é, com efeito, o espírito da idade moderna? É o espírito de trabalho e de indústria: a riqueza e a vida das nações têm de se tirar da actividade produtora, e não já da guerra esterilizadora.
(...)

Ecos da Sonora - XXIX

[ibidem]
(...) estarei autorizado a concluir que é nesses novos fenómenos que se devem buscar e encontrar as causas da decadência da Península.
Ora esses fenómenos capitais são três, e de três espécies: um moral, outro político, outro económico.
O primeiro é a transformação do Catolicismo, pelo concílio de Trento.
O segundo, o estabelecimento do Absolutismo, pela ruína das liberdades locais.
O terceiro, o desenvolvimento das Conquistas longínquas.
Estes fenómenos assim agrupados, compreendendo os três grandes aspectos da vida social, o pensamento, a política e o trabalho, indicam-nos claramente que uma profunda e universal revolução se operou, durante o século XVI, nas sociedades peninsulares. Essa revolução foi funesta, funestíssima. (...)
Esses três fenómenos eram exactamente o oposto dos três factos capitais, que se davam nas nações que lá fora cresciam, se moralizavam, se faziam inteligentes, ricas, poderosas, e tomavam a dianteira da civilização.
(...)

Ecos da Sonora - XXVIII

[ibidem]
(...)
Nos últimos dois séculos não produziu a Península um único homem superior, que se possa pôr ao lado dos grandes criadores da ciência moderna; não saiu da Península uma só das grandes descobertas intelectuais, que são a maior obra e a maior honra do espírito moderno.
Durante 200 anos de fecunda elaboração, reforma a Europa culta as ciências antigas, cria seis ou sete ciências novas, a anatomia, a fisiologia, a química, a mecânica celeste, o cálculo diferencial, a crítica histórica, a geologia.
(...)
Que nome espanhol ou português se liga à descoberta duma grande lei científica, dum sistema, dum facto capital?
A Europa culta engrandeceu-se, nobilitou-se, subiu sobretudo pela ciência; foi sobretudo pela falta de ciência que nós descemos, que nos degradámos, que nos anulámos. A alma moderna morrera em nós completamente.
(...)

Ecos da Sonora - XXVII

Causas da Decadência dos Povos Peninsulares
Discurso pronunciado na noite de 27 de Maio de 1871, na Sala do Casino Lisbonense, por Antero de Quental

A Decadência dos Povos da Península nos três últimos séculos é um dos factos mais incontestáveis, mais evidentes da nossa história. Pode até dizer-se que essa decadência, seguindo-se quase sem transição a um período de força gloriosa e de rica originalidade, é o único facto evidente e incontestável (...).
(...)
A história dos últimos três séculos perpetua-se ainda hoje entre nós em opiniões, em crenças, em interesses, em tradições, que a representam na nossa sociedade, e a tornam de algum modo actual. Há em todos nós uma voz íntima que protesta em favor do passado, quando alguém o ataca; a razão pode condená-lo, o coração tenta ainda absolvê-lo. É que nada há no homem mais delicado, mais melindroso do que as ilusões; e são as nossas ilusões o que a razão crítica, discutindo o passado, ofende sobretudo em nós. (...)

Ecos da Sonora - XXVI

Programa das Conferências Democráticas do Casino
(...)
Não pode viver e desenvolver-se um povo, isolado das grandes preocupações intelectuais do seu tempo; o que todos os dias a humanidade vai trabalhando deve ser também o assunto das nossas constantes meditações.
Abrir uma tribuna onde tenham voz as ideias e os trabalhos que caracterizam este momento do século (...);
Ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim nutrir-se dos elementos vitais de que vive a humanidade civilizada;
Procurar adquirir a consciência dos factos que nos rodeiam na Europa;
Agitar na opinião pública as grandes questões da Filosofia e da Ciência moderna;
Estudar as condições da transformação política, económica e religiosa da sociedade portuguesa;
Tal é o fim das Conferências Democráticas.
(..)
Posto isto, pedimos o concurso de todos os partidos, de todas as escolas, de todas aquelas pessoas que, ainda que não partilhem as nossas opiniões, não recusam a sua atenção aos que pretendem ter uma acção - embora mínima - nos destinos do seu país (...).
Lisboa, 16 de Maio de 1871 - Adolfo Coelho - Antero de Quental - Augusto Soromenho - Augusto Fuschini - Eça de Queirós - Germano Vieira de Meireles - Guilherme de Azevedo - Jaime Batalha Reis - J.P.Oliveira Martins - Manuel de Arriaga - Salomão Sáraga - Teófilo Braga.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

A grande farra

Lembro-me deles, há anos, todos juntos, a falar destes assuntos na capela de Santa Luzia. Chovia se Deus a dava! Mas lá estava o presidente da câmara, o delegado regional do IPPAR em Castelo Branco que pagaria a factura, e um renomado arquitecto, responsável pelo plano de valorização do património histórico da vila. Tratava-se da alcáçova do castelo, e de instalar na torre de menagem um miradouro virtual. E eu vi em tudo aquilo um acesso de febre que havia de passar. Um jogo de interesses e poderes em roda livre, deslumbrados todos com vagos conceitos de progresso, de futuro e de tecnologias novas. Isto pensava eu.
Pensava eu que havia de passar e enganei-me, porque a obra já está pronta. E lá fui visitar a alcáçova renovada. Dentro duma gaiola de madeira, duas assistentes esgrimiam contra o tédio, se não contra a solidão. Que podia, sim senhor, subir ao miradouro, ver imagens, ver paisagens, não havia entradas a pagar.
Subi o primeiro lanço da escadaria de ferro, uma espécie de máquina de guerra, daquelas torres de assalto das fortalezas antigas. Subi o segundo e o terceiro, e cheguei finalmente onde nunca tinha estado. O ponto mais elevado, e mais alto, de todo aquele planalto.
Tirei o sobretudo ao miradouro virtual, e achei-me frente a uma figura mista, entre a cadeira dum dentista e um viajante espacial. Em qualquer dos casos, fora de serviço.
Vesti-lhe outra vez o sobretudo e voltei à gaiola da entrada. Lá me disseram que uma vez valorizada, logo a alcáçova tinha sido assaltada.
E agora, que são horas de acabar, não sei se me dá para rir, se hei-de chorar.

Perguntas

Pertinentes e oportunas. Por isso é que não são feitas.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

O cavalo do inglês

Há muito tempo que não ia às compras, porque deixei de comer. E ontem dei com as vitaminas todas no vermelho.
Logo de manhã fui-me à banca da fruta, numa dessas lojas que são vacas leiteiras a oferecer-nos as tetas.
Os diospiros chegam-nos de Espanha, as bananas e os abacaxis vêm do Equador, as mangas e as limas e as papaias do Brasil, os kiwis do Chile, os maracujás da Colômbia, as meloas de Israel, as toranjas da Sul-África. Espanha ainda nos manda os pêssegos, e as batatas, e os limões, e as clementinas, e as ameixas, e as anonas, e as romãs, e as uvas pretas, que as brancas vêm da Itália. As cebolas francesas tinham esgotado, e os alhos da China estavam a chegar. Portuguesíssimas só a pêra rocha, a maçã bravo de esmolfe, o melão branco e a melancia negra.
Será este despautério um antigo tributo, do mundo rendido ainda, e esmagado, pela nobre gesta da nossa cruz de Cristo?
Cada um fique no que lhe parecer. Cá para mim é tanta a esmola, que um pobre desconfia. O mais certo é termos à nossa espera o destino do cavalo do inglês. O tal que se finou no momento mais inoportuno, quando já tinha aprendido a não comer.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Riba-Côa




Juizinho

E bons critérios. Aqui.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Ecos da Sonora - XXV

Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos três últimos séculos, Antero de Quental, Tinta da China.

Do prefácio de Eduardo Lourenço:
(...) Nas circunstâncias presentes da nossa cultura, imersa num contexto planetário tão diverso do, então, ainda histórico e ideologicamente eurocêntrico, talvez alguns esperem que uma releitura da célebre Conferência redunde menos numa reiteração da mitologia cultural inaugurada por Antero sob o signo da Decadência como uma espécie de estigma indelével e recorrente do nosso destino peninsular, do que no da obliteração definitiva desse paradigma fantasmático a que um prosador e um poeta de génio conferiu uma aura mítica. (...)

Ó homem, porra! Já reparou quantos megas são precisos para deslindar frases destas sem sete repetições?

Portugalmente - 79

(...)
Um certo dia a fidalga preparou a diligência, desceu à estação de Almendra e foi visitar os filhos que estudavam em Coimbra. E lá se tomou de amores por uma visita da casa, um estudante de leis que não chegaria a bacharel, dadas as prioridades. E quando ela, à procura doutra vida, deixou para trás a Família, o doutor olhou para as mãos, ficou com Deus e a Pátria.
Não se sabe ao certo por que enredos, o casal foi parar a uma pensão do Porto, ali à rampa da Escola Normal. E um dia embarcou para a África, que sempre foi bom refúgio dos desesperados. Anos mais tarde, abreviando razões, e uma vez que se finara o patriarca, voltaram ambos a Almendra e ao solar dos bonifrates.
Mas um dia há sempre um dia. E o bacharel, que nunca chegara a sê-lo, veio a saber dos sucessos com o Mal-Casado, e dos antigos enredos de tarimba, por denúncia dum criado. O bacharel quebrou e foi-se embora, ela ficou e morreu. E ainda vive em Almendra quem se lembre da fidalga na feira de Trancoso, a comprar ovos de pata, se não antes a vendê-los, quem o saberá dizer.
(...)

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Mina

Já sei duma mina desmazelada onde cabe um Chile inteiro.
Agora só me falta ser industrial da comunicação, para pôr a coisa render e ser um homem feliz.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Cem cães...

... a um osso esburgado! Isto é, uma roda cada vez mais quadrada.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Portugalmente - 78

(...)
A fidalga era uma das muitas filhas da casa dos viscondes, e nasceu em Salamanca. Corriam por então os tempos da República e os ares andavam torvos, dos brados de carbonários e pedreiros-livres. A quem trouxesse a consciência mais pesada, com motivos ou sem eles, só restava uma saída: passar de noite a fronteira e resguardar-se. Foi o que o visconde fez, enquanto se esfumava a poeirada, até poder regressar. E assim nasceu em Castela uma fidalga, que se já vinha dotada de condição e prebendas, mais medrou com as bênçãos da natureza.
Junto dos condes de Almendra encontrara entretanto acolhimento um mocetão de Foz-Côa, filho natural dum Távora remoto. A seu tempo se fez médico, a encargos do patrono. E foi o primeiro passo para vir a ser nomeado delegado de saúde, e administrador do concelho, e mais tarde o homem forte da União Nacional, um feudo de patriotas. Isto tudo muito antes da fundação da fábrica de azeites, cujo destino atrás se antecipou.
Quando lhes chegou a altura, o médico de Foz-Côa e a fidalga dos viscondes deram o nó sacramental. Ela juntava aos predicados naturais o património. E ele acrescentava o ceptro da autoridade, a figura impositiva e o poder. É com tais coligações que se edificam reinados.
Se o homem tinha má fama, o proveito era melhor. E famas leva-as o vento. O terror que infundia às criancinhas, que na consulta lhe mostravam a garganta tomada do garrotilho, só achava paralelo no rancor dos camponeses, que no lagar lhe sofriam o esbulho da funda a cinco. Por cem quilos de azeitona recebiam cinco litros, era pegar ou largar. Pior só assaltantes de estrada.
A fidalga era dez anos mais nova. E tinha uma figura de menina que fazia rir as rosas, quando descia a sentar-se no caramanchão. Os filhos foram chegando, como frutos naturais, conforme Deus os mandava. Só às vezes um reflexo no espelho do toucador, ou uma lágrima furtiva no recesso da alcova, traíam inconfidências que o peito ainda recusava e o tempo foi agravando.
Os encontros da família, ao repasto do jantar, eram momentos de aspérrima doutrina. Ninguém arriscava fala, qualquer simples transacção era através do mordomo. Às fêmeas e aos mais pequenos fê-los Deus para obedecer, era o primeiro mandamento. Por isso o doutor tinha no Porto, para reserva das hormonas, uma amiga de casa e pucarinho.
A fidalga não era senhora de ir à rua, de seu não tinha um tostão. E só a cumplicidade duma ama compassiva lhe permitia vender às escondidas uma medida de azeite, duas fanegas de trigo, para dispor dumas moedas. Fosse ele por ciúme ou por doideira, o doutor era um algoz. Humilhava a fidalguita diante das visitas, mais que uma vez lhe pôs as mãos na cara.
Quando à ama lhe cheirou a história com o Mal-Casado, deu-lhe o coração um baque. A fidalga abria o corpo ao serviçal, estendida na tarimba das cavalariças. E sorvia dele, em ânsias, o fio de humanidade que de outro lado não vinha.
- Muito mal vai à colmeia se a rainha se tresmalha! - gemia a pobre da ama. Mas nem ela imaginava o que estava para chegar.
(...)

sábado, 9 de outubro de 2010

Agendas

Pelo-me por tudo quanto seja folheto municipal. Não há agenda cultural, agenda de eventos, ou agenda de cultura e eventos a que não chame um figo. É por elas que vou tomando o pulso ao meu país, e à febre de cultura que grassa por aí. Em podendo, nunca falto.
Na Meda, é um exemplo, há meia dúzia de anos que vou tomar café ao centro cultural, quando estou perto. Tenho o bar inteiro ao meu dispor, e a atenção das camareiras. Nunca me cruzei lá dentro com a sombra dum concorrente.
Aqui há dias foi tudo bem diferente, encontrei o auditório a abarrotar. Celebravam-se os 500 anos do foral de Longroiva, nem faltavam ali mestres de estudo nem eminências ilustres.
Cá fora, os carros topo de gama já me tinham avisado. É que estava lá dentro, a conversar, um grupo de irmãos templários. Vinham ver o que foi feito do país que eles empurraram para o mar, amarrado à cruz de Cristo.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Ar do tempo - II

Já no 2º período clássico, o barroco, domina o desequilíbrio, a desrazão. E nem a Contra-Reforma nem a Santa Inquisição são alheias ao fenómeno. O homem barroco é um espírito atormentado, precário e inseguro, o Galileo que o diga. Foge do real concreto, refugia-se nas formas.
Os frades atarefavam-se a construir sonetos Ao Menino Jesus em metáfora de doce. E o único rigor que praticavam era o de um formalismo extremo, tão surpreendente quanto vazio. [Nise (tb Lisi), sois mais dura que o muro mais duro que a terra goza;
sois mais cruel que a rocha mais cruel que cerca o mar;
sois mais rigorosa que o cometa mais rigoroso que o céu vê.]

A construção da quadra é geométrica, perfeita. Nem lá faltam os 4 elementos, sendo que o fogo é a Nise. Mas é um puro jogo de palavras, um cultismo de escasso conteúdo.
O Vieira, ícone do conceptismo, elaborado jogo de conceitos, por força tinha que ser o grande mestre que foi, da língua portuguesa. Teve que inventar uma maneira de carrear em linguagem o sarilho em que se meteu.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Portugalmente - 77

(...)
O largo do pelourinho, que era uma praça maior ali no cimo do outeiro, caiu há tempos nas mãos dum urbanista, para beneficiação. Ao pelourinho roubaram-lhe um degrau, lá lhes pareceu que não fazia falta. E acrescentaram ao largo, em cima dum pedestal, um busto do Venturoso, que foi rei de Portugal e do Algarve, da Índia, do Brasil e da Guiné, e visto o foral de Almendra, mandou que pagarão os moradores, em cada ano, no dia de S. Martinho, sete reais… É o mais que fazem, as ordenações d’el-rei.
A igreja matriz de Almendra guarda esplendores antigos e imponência pouco vista. Amparada em contrafortes, parece uma fortaleza. E associa um portal renascentista de 1565, e o rocaille aligeirado da capela-mor, à imponência da traça medieva, que mistura a gravidade do românico e a respiração do gótico. Na vastidão das três amplíssimas naves cabia a devoção dos fiéis todos, mesmo no tempo em que Almendra era rainha.
Nem palácios lhe faltaram, que era dois. Este, o dos condes de Almendra, uma honraria serôdia da mão de el-rei D. Carlos, tem a sisudez ensimesmada da casa grande burguesa. Já aquele, o dos viscondes do Banho, que foi concessão duma rainha antiga, padece as demasias do seu tempo. O espavento dos arabescos de pedra que lhe enfeitam os frontões nas fachadas dá-lhe um ar de teatro de bonifrates. Destoa no aglomerado, ali à beira da estrada. Mas por um qualquer sinal, às vezes uma verruga, se hão-de distinguir os homens.
Os dois solares vieram a ser cenário de dramas do romantismo tardio, se for verdade que o bom do romantismo escolhe idades. Estes dramas ficaram na memória, e eram matéria da pena do Camilo original. Na falta dele, contentou-se o viajante com o relato atamancado do Camilo anfitrião.
(...)

Espionagem galáctica

Ver o relatório aqui.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Tebas

Já foi a mais orgulhosa das sete portas de Tebas. Hoje nem as pombas guarda.