segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Portugalmente (55)

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O viajante compreende mas é um bisbilhoteiro, e por isso transpõe o guarda-vento. E dá consigo num amplo vestíbulo, onde um jovem equipado à atleta puxa o lustro aos tacos do mini-golfe, com ar de quem domina o seu ofício. Desagrada-lhe a presença deste curioso exótico, que não tem ares desportistas e quer apenas dar uma mirada nas instalações. Só o chefe poderá autorizá-la.
O viajante esperou e foi recompensado. Subiu uma escadaria e andou por corredores e galerias, e chegou a um amplo bar onde logo foi servido por um par de camareiras, e viu, entre bancadas a preceito, a doca seca da piscina interior às voltas com o aquecimento, e foi levado a um amplíssimo terraço que sobreleva o conjunto, e apreciou a paisagem a alargar-se para Além-Douro, e ficou a saber que naquele corpo ao lado se vai abrir em breve um restaurante. O viajante aproveita a agradável companhia para saber o que há mais a visitar, e logo lhe recomendam o centro cultural.
É um viajante amedrontado que entrou agora no centro, porque o espavento dele pede meças ao complexo das piscinas. Uma hospedeira de uniforme mostra-lhe o auditório do cinema, que exibe a Casa Assombrada sempre que há espectadores; e um salão social de pavimentos flutuantes onde parece ninguém entrar há muito, e tem mesas de jogo e poltronas de couro negro, e pesados móveis espelhados onde dormita um plasma gigantesco, e sofás de desenho de autor, e alfaias de exóticas madeiras, a lembrar um paço de brasileiro antigo; e uma sala de exposições que o viajante há-de ver com mais vagar; e uma nave polivalente onde cabe a Meda inteira, com um palco monumental que já encenou comédias, exibiu ranchos folclóricos, e onde se cantaram fados; e um bar onde o viajante voltou a ser atendido por uma dupla de assistentes disponíveis.
Depois subiu uma escada e mostraram-lhe um salão para encontros e colóquios - de figurões importantes, segredaram-lhe em voz baixa - com cadeiral de espaldar à charlemagne em redor duma távola, que a ser redonda era a do Rei Artur, e onde as camareiras mudam as garrafas de água que à falta de uso ficaram fora de prazo. No resto há gabinetes de trabalho, e salas de formação, numa delas um grupo de mulheres aprende a trabalhar no centro cultural.
O viajante voltou ao rés-do-chão e vem atordoado. Agradece à hospedeira a simpatia e vai ver a exposição pós-modernista, em busca de refrigério. A primeira peça era um guarda-chuva preto, antes de o artista lhe despejar em cima um chapaçal de imundícies avulsas, e o promover a obra de arte. Está ali aberto a um canto da sala, como fonte de emoções estéticas. Mas este ingrato viajante, que não foi à escola de artes, sente apenas uma tosca repugnância. Vai ver outro guarda-chuva além ao fundo, que é prateado e brilhante, salvo um degenerado gomo de cor preta. E não há na exposição mais guarda-chuvas, embora pudesse haver, já que o bom tempo lá fora os dispensa do serviço natural.
Nas paredes há rectângulos pendentes, de acrílico sobre metal, com equações esotéricas, e interrogações fatais, e uma fantástica mão a irromper do alumínio, que o viajante já viu noutros locais a emergir da parede. Andam cardumes de peixes a saltitar nos painéis. Mas o viajante está curto de tempo e prefere ver a peça principal, erguida numa peanha ali no meio da sala. É um galho de azinheira descascado, que pintaram de amarelo, salpicado de luzentes lantejoulas. Enterraram-no num vaso cheio de gogas do rio, como convém às plantas de interior. O artista pôs-lhe o nome de Narcissus, juntou-lhe o bom augúrio dum trevo de quatro folhas, e entrega-o ao licitante por quaisquer trezentos euros.
Aqui chegado, está por tudo o viajante. Já aprendeu que nas artes pós-modernas conta menos aquilo que os olhos vêem e mais o que nos dizem que lá está. Porém suspeita de que a artística comédia encenada nesta sala não difere da farsa politiqueira que lá fora está em palco. Mas a contenda só respeita às exigências do público da Meda. O viajante sai do centro cultural, mal povoado pelo tédio das camareiras, e tropeça numas obras a que não dera atenção. Volta atrás e ouve da hospedeira que andam a construir a biblioteca municipal. O viajante mete-se no carro, abrevia a retirada. E só pára num estanco da avenida principal, à procura duma garrafa de água para ver se afoga esta sede. Está sozinho, o locandeiro. E à pergunta do cliente, responde que o complexo das piscinas é uma coisa extraordinária. Todos os dias recebe, de utentes, meio milhar, e mais no pino do verão, quando chegam os emigrantes. Embaraçado no seu próprio pudor, o viajante vai à sua vida. E despede-se da Meda verdadeira, que anda a lavar as tinas para a vindima, e a preparar o estendal do fim do verão, que já pouco vai durar.
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