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Saudoso já de alguma realidade, vai acabar o seu dia na feira, onde anda tudo numa roda-viva em azáfamas de última hora. Já está montada a tômbola das rifas, à entrada, para distribuir ursinhos de peluche e batedeiras eléctricas a quem acertar na lotaria. Logo depois vem o poço da morte, andam a acabar-lhe a escadaria. Entre braços de carrocéis voadores, pistas de engenhos de choque e as diversões costumeiras, sente o viajante a falta dos espelhos aldrabões, e do comboio fantasma, e da rampa do canhão. Terão passado de moda, que já estão aqui as quinquilharias de plástico, e as barracas das bonecas matrafonas que vieram das fábricas chinesas, e os colares e os couros e as missangas que chegaram do Magrebe. Há balcões ambulantes de churros e farturas, e está pronta a exposição dos automóveis, tanto novos como usados. E também a das máquinas industriais e agrícolas, que tanta falta faziam nesses campos.
O viajante deixa atrás o arraial e passou ao multi-usos, onde lhe prometeram actividades económicas e artesanais. Mas para elas ainda é cedo, que o pavilhão está fechado. E assim chega finalmente ao terreiro das esplanadas, e das tasquinhas típicas que vinham anunciadas. Já estão prontas à espera de clientes, mesmo em frente da boca negra do palco monumental, que lá vai derramando pelo rossio inteiro trovões experimentais.
É aqui que há-de bater o coração da feira, a acreditar no programa que uma brochura divulga abundantemente. Antigamente durava ela três dias e pagava-se a si mesma. E não tinha programa nenhum, além daquele imposto pelos negócios a fazer, pelas precisões da vida e os sonhos do ano inteiro. Agora alargaram-na para doze, e criaram-lhe um programa oficial. A este viajante mais parece que, em vez duma feira com um programa, o que tem lugar aqui é um programa a precisar duma feira. Tudo nele se resume ao desfile dos artistas que em cada noite irão subir ao palco.
O viajante resiste à tentação de ficar em Trancoso à espera da abertura. Posta de lado pelas mudanças do mundo, a feira de São Bartolomeu já não existe, morreram as condições que durante séculos a fizeram viver. Agora é um arraial de fim do verão, e traz apenas um vago sobressalto aos comércios da vila. É um frívolo evento, que só se mantém de pé à custa do orçamento camarário. Uma teimosia de publicistas que a usam como bandeira, e tomam erradamente o seu ruído por sinal de vitalidade e de progresso.
Neste mundo de ilusões do marketing moderno, não é indispensável que uma coisa exista para a tornar realidade. Basta que se fale dela. O viajante ouviu há dias no rádio a mesma filosofia a um esforçado cidadão de Alcochete. Quis entrar no livro dos recordes com a sua fila de jipes, para pôr a terra no mapa e obrigar o mundo inteiro a falar dela. É a versão mais moderna das trovas do Bandarra. Há séculos que Portugal vive delas.
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