sábado, 31 de dezembro de 2011

2012

Portugal volta, enfim, ao que sempre foi, desde que há cinco séculos lhe arrancaram as raízes e lhe sangraram a seiva. Um país precário e inviável, a tactear na escudela vazia os mitos e as balelas que uns farsantes lhe estendem para o calar; agrilhoado a um fadário que desde então se repete, mudando os pormenores.
É um país assim, amedrontado e tosco, que satisfaz as elites, para quem o povo geral é gado de exportação.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Ecos da Sonora - XLIII (2)

Há-de ser apenas conjugação astral nefasta.
Mas desde que o Relvas tomou conta disto, o trabalho de gravação da Sonora baixou 60%.
E na verdade, se aos indígenas inteiros tão pouco diz a leitura, por que havemos nós de nos preocupar com uns cabrões que sofrem de cataratas?
Leitores contratados, tudo fora!

Maquinistas

Comboios parados três dias no Natal, páram outros três no Ano Novo.
Não admira.
Se a melhor nata do país há muito que abriu falência, por que não há-de a elite proletária assumir-se em bancarrota?

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Canalhas patriotas

(...)
"O exército é o espelho da nação, e isto era o que se lia nos panfletos colados a esmo nas ruas da cidade, virava-se uma esquina e logo tropeçavam os olhos naqueles rectângulos de cor envergonhada e baça, não tão baixos que pudesse mão herética meter-lhes a unha e silenciá-los, nem tão altos que risco houvesse de perder-se na atmosfera da tarde a jaculatória patriótica, o exército português é tão bom como os melhores. Muito melhor que os melhores, diremos nós para que a verdade se saiba, pois convém a César dar o que de César é, e para o provar vamos ali à foz do Massanza, um destacamento avançado onde um pelotão de atiradores vai defendendo a soberania, do outro lado do rio alastra na paisagem, entre arames farpados, uma sanzala de realojados, que estendem ao sol as misérias da lepra.
Um dia os rústicos soldados saíram dos abrigos e deram-se a construir uma pista de aterragem, tinham-lhes prometido uma avioneta que poisaria ali uma vez por quinzena, não há nada melhor para romper o isolamento, para resistir à loucura ou receber o correio que houver, sempre se tem a ilusão duma ligação ao mundo. À custa de tempo e de suor aplainaram à mão esta faixa com dez metros de largo, esquartejaram umas dúzias de mangueiras bravas que arrastaram para as bermas, a pista começava logo à beira do rio e alongava-se até tropeçar ao fundo na colina, o resto do milagre haviam de fazê-lo os aviadores. E um deles o terá feito, uma vez sem exemplo, aterrou um dia a passarola mas só saiu dali deixando atrás a carga toda e metade da gasolina, que a pista foi celebrada com cerveja mas não ia além de sessenta metros mal medidos, tudo quanto podemos fazer é passar em voo rasante e largar os sacos de biscoitos e massa, é largar as latas da marmelada e do atum, é largar os sacos do chouriço e da carne, se a houver.
E foi a partir daí que toda a canzoada da sanzala passou a regular a vida por um estranho calendário, mal se ouve ao longe o roncar dum avião e logo os bichos se põem a atravessar o rio, espadanando na água as patas frenéticas. Cada um escolhe o seu terreno ao longo da pista, e é vê-los a disputar aos irados soldados os restos dalgum saco rebentado, lá vai este a fugir para o mato com um par de chouriços nos dentes, aquele abocanhou um pão, a princípio ainda se ouviam tiros e rajadas a afugentar os bichos, agora já nem isso, toda a gente afinal concluiu que a vida custa a todos, que todos ficam parecidos no retrato, o exército português é melhor do que os melhores."
(...)

[Veio-me à lembrança a peripécia, ao tropeçar neste vómito dum canalha patriota. Ao tempo dos acontecimentos, andava ele ainda nos primeiros ensaios de paralelas assimétricas, nos tomates do avô.]

Serviço público

Por ser de leitura obrigatória, transcreve-se O Fantasma de Paris, texto de Miguel Sousa Tavares no último Expresso:

"Uma curta e inócua declaração de José Sócrates em Paris, numa palestra informal, foi o suficiente para agitar todo o país político e desenterrar os ódios adormecidos contra o homem que nos governou até Junho passado. Como qualquer pessoa de boa fé percebeu, mesmo truncada e fora de contexto e mesmo antes de explicada pelo seu autor, a frase de Sócrates limitava-se a constatar uma evidência: que nem Portugal nem qualquer outro país pode ser confrontado com a demonstração de que seria capaz de pagar de imediato toda a sua dívida externa; tem apenas de a gerir, mantendo-a sob controlo.
Para quem não saiba, Portugal acabou de pagar, há um par de anos, dívidas que vinham do tempo da implantação da República, e o mesmo fez a Alemanha, por exemplo, com dívidas dos anos vinte do século passado. A razão por que os países acumulam dívida é a mesma razão pela qual a acumulam as empresas e as famílias: para se poderem desenvolver.
Salazar não acumulou dívidas, mas em compensação entregou o país mais pobre da Europa, a seguir à Albânia. Os países não são supostos poder e dever pagar toda a sua dívida de imediato, por intimação dos mercados ou das agências de rating, tal como não são as famílias e as empresas. Aquilo que interessa, e que Sócrates destacou, é saber gerir a dívida: não deixar que o seu custo, o chamado serviço da dívida (amortização mais juros) atinja um ponto em que se torna mais elevado do que os benefícios proporcionados pelos empréstimos contraídos - porque aí o que estamos a fazer é a roubar as gerações seguintes.
Foi isso que nos escapou nos últimos anos - a nós e a toda a Europa e Estados Unidos. Assim, tanto Maastricht como a recente cimeira europeia de Bruxelas, não pretenderam proibir em absoluto o défice e as dívidas, mas estabelecer-lhes limites considerados sustentáveis - 3% do PIB antes e 0,5% agora para o défice, e 60% para a dívida acumulada.
A esta luz, temos de ler nas reacções quase histéricas às palavras de Sócrates (exceptuou-se Passos Coelho) uma explicação de outro tipo: o país, civil e político, procura afanosamente um bode expiatório para os males que o atingiram, e José Sócrates é o alvo talhado à medida. Pouco importa, aliás, que a crise tenha nascido de fora para dentro, e que atinja por igual todo o mundo em que vivemos: encontrar um culpado nosso serve de catarse para nos livrar a todos da culpa colectiva pelos erros que foram exclusivamente nossos. Convém, pois, fazer um exercício que os portugueses detestam: refrescar a memória. (..)

(Continuar a leitura AQUI)

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

De corno em riste


Sempre que ouço o Relvas a referir-se à cultura, à tradição e à história de Portugal (como hoje aconteceu), vem-me à lembrança um rinoceronte de África.
À uma por trazerem os dois, lá dentro do bestunto, a finura de espírito dum sertão remoto.
E às duas porque investem ambos sempre de corno em riste.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Lá a calari!!!

A enxurrada do Natal, mesmo carregado de promessas de penúria, não poupa os escaparates. O mercado, sempre atento e oportuno, desfaz-se mais uma vez em produtos e objectos de consumo. Nos tempos que correm, não é com literatura séria que se faz negócio e que os melões se compram. E os leitores, esses coitados, há muito que só contam enfileirados no rol de consumidores, alienados e acríticos.
Não falta oferta para todos os gostos, o mais dela afiançado pelo prémio Saramago, pobre dele. Lá aparece o Peixoto a pedir colo, como é hábito, e a desfilar dinastias inteiras de Alziras familiares em piqueniques campestres. O hugo mãe reincide no seu requentado neo-realismo, povoado de proletários canhestros, com títulos assarapantados e um estranho fraseado onde ecoam exotismos de quimbos muito remotos. Já o Tordo é de discurso e técnica mais cosmopolitas. Pena é que lá dentro haja tão pouco, no que respeita a densidade e substância. O Tavares sabe o que é a literatura. E põe em prática as suas qualidades quando não perde tempo com enigmas e charadas, à espera que chegue um dia o Nobel que umas pítias já lhe garantiram.
Sobra aos especialistas da matéria, e aos divulgadores domésticos, o estendal dos produtos literários da fábrica anglo-saxã, que nos colonizam e distraem, e nos convencem de que tomamos banho no tanque da cultura. Uns e outros se levam a sério extremamente, o que está longe de ser um bom sinal.
É neste contexto que o leitor muito ganha, e mais ainda poupa, se os deixar a todos em sossego. Ponha a rodar um disco do Erik Satie e recue 30 anos, que foi quando o Mário de Carvalho deu à luz estes Casos do Beco das Sardinheiras que nos levam a uma certa Lisboa, e de que se deixa aqui abaixo um gostinho com O Tombo da Lua. A técnica deste escriba é primitiva, mas clicar talvez ajude a ler.



sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Ecos da Sonora - XLIII (1)

OS DONOS DE PORTUGAL - Cem anos de poder económico (1910-2010)
Jorge Costa.Luís Fazenda.Cecília Honório.Francisco Louçã.Fernando Rosas
Edições Afrontamento, Porto, 2010

Da Introdução:

(...) Se o livro tem uma lição é esta: a burguesia portuguesa foi sempre incapaz de democratizar a modernização do país. Não é que não queira ou que não possa, mas, simplesmente, rejeita a repartição social porque a sua acumulação, garantida e protegida pela força do Estado, lhe permitiu beneficiar da maior desigualdade social do espaço europeu.
O resultado é uma estratégia, não é uma contingência; é um sucesso devastador e mesmo intrigante, mas não é uma inconveniência para os donos de Portugal. Como veremos nas páginas que seguem, essa conclusão é a mais importante do livro: os donos de Portugal são o problema de Portugal.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Gramática

"Nós não estamos ainda em condições de dizer qual terá sido a 31 de Dezembro o défice de 2011".
[Passos Coelho]
E o que é que se faz disto, sem ter à mão a gramática dos orangotangos!...

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Desmancha-prazeres

Entrar na biblioteca, ou no Centro Cultural, dum qualquer desertificado concelho do interior, é sempre um exercício de muito proveito e grande inspiração. Pois que se ganha em disponibilidade e atenção das hospedeiras o muito que se perde no vazio de utentes.
Veja-se aqui este Portugal nos Mares Vol. I, de Oliveira Martins, Edit. Ulmeiro, s. d., pág. 111:

"De 1497 a 1612 armou o governo português para a Índia 806 naus que à razão de 125 mil cruzados representam 100 milhões e 750 mil cruzados. Computando o cruzado a 2.057 rs. de hoje, temos um custo dos navios, sem cargas, que atinge a soma de entre 207 e 208 mil contos de réis, o que importa um orçamento anual de cerca de 2.000 contos de réis só para construções.
Basta o enunciado destes algarismos para se fazer ideia das consequências financeiras da aventura da Índia. Incontestavelmente, a pimenta foi um mau negócio para o Tesouro de S. A.; e a Índia, como negócio, foi pior ainda para a economia portuguesa. Esterilizou uma sociedade que no séc. XIV, ainda no séc. XV, se desenvolvia normalmente, como riqueza e população, e corrompeu-a esterilizando-a. A pobreza trouxe consigo os vícios inerentes, e juntou-os aos vícios da vaidade e da dissipação.
Diz um escritor que D. Manuel conquistou na África, na Ásia e na América, o direito de gastar muitos milhões; tudo isto é verdade; mas verdade é também que a nossa ruína foi o preço do maior acto da civilização nos tempos modernos. Valha-nos a consciência dessa glória, perante o espectáculo das nossas misérias.
Com a Índia aparece entre nós pela primeira vez a instituição da dívida consolidada; é D. Manuel que a inicia, criando os padrões de juros reais; é no seu tempo que se esgotam os antigos tesouros soberanos, verdadeiras caixas económicas dos povos; Entra-se no período do capitalismo moderno que, desde então, através de sucessivos jubiléus, ou pontos, vem a parar na dívida monstruosa que actualmente nos esmaga.
Os embaraços financeiros, criados pelo poder marítimo português, existem já no tempo de D. Manuel: prova é o pedir emprestado; mas atingem proporções de crise no tempo de D. João III, quando os padrões, emitidos antes a 5 e a 6 por cento, sobem a 8 e a mais; quando a dívida flutuante, obtida por meio dos câmbios de Flandres, se contratava a tal preço que se dobra o dinheiro em quatro anos, por não haver já quem quisesse comprar os padrões da dívida fundada. (...)
É deplorável: já nesse tempo - nada há novo sob o sol! - se recorria ao sofisma de chamar extraordinárias a despesas que todavia se repetiam constantemente. (...)
Compreende-se pois o estado agudo da crise, que fazia dizer ao conde de Castanheira:
'Quando cuido nas coisas que Vossa Alteza é obrigado a suster e o modo de que está sua fazenda, representam-se-me tantas desesperações que muitas vezes me parece que vêm mais de a minha compleição melancólica que doutra coisa.
Des que se começou a tomar dinheiro a câmbio até agora, nunca se outra coisa fez, e quase se não sustém dal as despesas de Vossa Alteza. E porque ainda isto não bastava para se remediarem, se começaram a vender juros (padrões)... e o pior é que já agora não há quem os compre
'.
A compleição melancólica do conde de Castanheira antevia a sorte do país e o termo da viagem iniciada em 1498. O mar devorou-nos; a Pátria naufragou como essa Marinha que, levando-lhe a bandeira por todos os mares, se pode dizer que levou também consigo o sangue, a virtude e a força das populações vivas que tinham aclamado o Mestre de Aviz.
Antes de morrer em África, D. Sebastião teve um Alcácer-Quibir financeiro, quando foi necessário declarar a bancarrota, reduzindo o capital e os juros aos Padrões e vendendo-os à força, porque já desde o tempo do seu avô ninguém os queria comprar. Só os judeus de Flandres emprestavam a Portugal em condições em que se dobra o dinheiro em quatro anos...
"

domingo, 4 de dezembro de 2011

Os cabrões do Norte

Viciados, desde há séculos, em paraísos artificiais, estamos sempre prontos a voltar a eles.
Os visionários recolheram já um milhão de fundos para a igreja do Restelo, tudo bem. Mas a dolorosa vai em três milhões.
Portantos o problema está nos calvinistas e nos luteranos, essa corja de cabrões do Norte, que se recusam a pagar.

[Imagem e detalhes saqueados AQUI]

sábado, 3 de dezembro de 2011

Mentira e grande pena

1. Nisto da literatura é como em tudo, nos tempos nefastos que aí andam. Se o leitor baixa a guarda, afrouxa a exigência crítica, e se entrega desarmado a publicistas, agentes da opinião literária e editores que oficiam ao mercado, o mais certo é acabar depenado, a acumular a um canto genialidades inúteis, que nunca passam da página vinte.
2. Confessa este leitor o seu parti-pris pelas obras indígenas, as únicas que ousa ler no original. Por causa da desgraça da tradução.
[Na messe que enlourece estremece a quermesse
O sol celestial girassol esmorece
E as cantilenas de serenos sons amenos
Fogem fluindo à fina flor dos fenos.

Claro que na poesia o caso é ainda mais grave. Imagina-se isto traduzido sem perdas fatais?!]
Ele há traduções boas e más. Em todo o caso há sempre uma harmonia, uma toada melódica, um jogo de sonoridades, um ritmo qualquer que se perdeu, na transição da língua.
3. E, olhando em volta, estava este leitor a pontos de encomendar um requiem pela literatura indígena que asila aí pelos escaparates, quando lhe caiu nas mãos O Retorno, de Dulce Maria Cardoso. Ficou tão emocionado que leu o livrinho duas vezes, e andou dois meses sem palavras para o dizer: a encomenda do requiem era precipitada.
4. O livrinho, da Tinta da China, é um objecto fisicamente irrepreensível, daqueles que dá gosto manusear. E tem lá dentro um exercício de muita inteligência e grande encantamento.
O tema é o regresso das caravelas, em 1975, quando os fogos de santelmo do império finalmente se extinguiram. E o assunto é o último dia duma família de colonos em Luanda, e os dolorosos meses que se seguiram num hotel de cinco estrelas do Estoril.
Andam por aí dezenas de trabalhos espúrios sobre o drama dos retornados, o furor cego que os possuiu, e as lamentações da vida que perderam e por lá ficou, por culpa duns traidores ou duns cobardes míticos. Até aparecer este Retorno (frágil título!) que põe o dedo no sangue da ferida e iguala na mesma tragédia os portugueses de África e os da metrópole.
Nenhum outro mostra, como este, a violência que viveram uns e outros. Os de cá não escondem o que pensam dos de lá. E os de lá, com discutíveis razões, não se coíbem de dizer o que pensam dos de cá.
Eleger como narrador um miúdo de 15 anos, num registo narrativo perfeitamente adequado à sua condição, é uma das chaves do sucesso deste romance. Porque ele não se sujeita ao discurso politicamente correcto, nem é tolhido por preconceitos de adultos, nem teme os estigmas dum discurso racista. Limita-se a dar voz a um mundo que é o seu.
Ler e reler este livro é uma emoção de grande utilidade. Porém este facto traz ao leitor a ideia de que o mesmo não terá grande futuro. Aos portugueses interessam pouco as realidades da história.
5. Mas não há rosa que não tenha o seu espinho. Um tal drama colectivo, um tão doloroso impasse da história e um tão fundo sofrimento humano alguma causa hão-de ter, algum deus terão como culpado, algum vilão como agente. Era aqui o momento de os apontar com clareza, ou sequer de os sugerir, para elucidação geral. E isso não é feito.
6. Há um momento, escasso, a páginas 188, em que parece que o abcesso vai ser lancetado, sem o ser:
Estacionamos no princípio do cais e os contentores perdem-se de vista ao longo da margem do rio. O sr. Belchior diz que os contentores são as sobras do império, não deixa de ter piada que estejam a apodrecer no mesmo sítio de onde o império começou, alguma coisa isto quer dizer, alguma coisa devemos aprender com isto, tudo na vida tem os seus porquês.
Seria pedir demais, uma vez que aos portugueses sempre repugnou a crueza da história, quando a realidade lhes foi tantas vezes excessiva.
A atestá-lo vem a citação, com que a autora encerra o seu trabalho:

Las cosas que se mueren
No se deben tocar.

(Dulce María Loynaz)

Neste caso é mentira e grande pena!

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Madona em mausoléu

Na estrada a tabuleta anuncia o Solar dos Brasis, na aldeia chamam-lhe a Casa das Fidalgas. Não sei quem tem razão. Eu fui lá muitas vezes, atraído pela gala das talhas, pela febre das cores a gritar nas madeiras, e a simetria misteriosa das janelas, a fingir horizontes pintados nas paredes. E acabei feito pagão, morto de amores por uma pujante madona de terracota, que escondia promessas carnais num manto azul a esvoaçar. Cheguei a congeminar o caviloso plano de raptar a madona numa noite de inverno.
Nesse tempo era vivo o Gastão, um caseiro que habitava os anexos e olhava pelo conjunto. Fazia bonecos de madeira a canivete, e flautas de cana que vendia aos passantes. Era naquilo tudo a única coisa viva, e queixava-se do IPPAR e das águas no telhado, dos roubos das imagens e da segurança escassa. Levava-me às palmeiras do passal, à mãe-de-água de pedra à beira do ribeiro, numas terras que o fidalgo arrematou, à vinda do Brasil. Tinham sido confiscadas a um marrano qualquer, pela Santa Inquisição.
Subíamos depois ao belvedere e mostrava-me o salão de honra, nos altos do torreão. Pendiam do tecto caixotões de santos, a ameaçar ruína, alguns a desabar por causa das humidades. Finalmente levava-me à capela, onde a santa, à minha frente, se desfraldava num pedestal.
Depois contava-me a história. Que D. Luís se foi ao Brasil, ao ouro, no tempo dele. Que era capitão da armada real, e provedor dos quintos de el-rei em Vila Rica de Ouro Preto, nas minas de Sabará.
- O muito e o pouco passava-lhe pela mão! Era de el-rei, mas quem parte e reparte... - sugeria o Gastão, sem avançar.
- D. Luís tinha em casa uma escrava da Mina, por quem se apaixonou. E trouxe, no regresso a Lisboa, a mulatinha Angélica, que vemos nestes quadros. "Mercê que fez Nossa Senhora, no Instituidor, vendo-se em perigo de morte no sertão do Brasil, em jornada de 900 légoas às Minas do Ouro". E lá estava um dragão pintalgado, a soprar fogo ao fidalgo em terror. "Milagre que fez Nosso Senhor... no mar da Bahía...". E era um barco a adornar, a vela já perdida, o fidalgo no convés a amparar a mulatinha.
- D. Luís era de Santa Marta de Penaguião. E ao ver-se em aflição, prometeu erguer à Senhora da Penha de França esta capela. Ao lado do solar, e dum convento franciscano que não chegou a existir. Onde o meu cavalo parar, aí o santuário hei-de levantar! O cavalo é que escolheu este lugar! - concluía o Gastão.
Mostrava-me depois, num livro dum letrado, que o fidalgo tomara ordens sacras ao fazer sessenta anos, que a mulatinha morreu sem descendência no ano em que assaltaram a Bastilha, e que o Solar dos Brasis é testemunho da boa aplicação em Portugal do ouro de Sabará. Eu sempre vi neste lugar apenas mais um túmulo, entre muitos, onde embalsamaram Portugal. Mas nunca cheguei a dizê-lo ao Gastão.
Não sei se os caixotões acabaram por cair, ou se a madona continua lá, a voar no pedestal. Quando há dias voltei ao Solar dos Brasis o Gastão tinha acabado de morrer. E o IPPAR pôs um telhado novo nos altos do torreão, e trancou as portas e as janelas com grades de ferro chumbadas na ombreira.
Fica-me a pena de não ter assaltado a madona, numa noite de inverno. Mas ainda bem que o Gastão foi embora, sem saber a verdade.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Novas oportunidades

Há sempre uns peralvilhos que delas desdenham. Por indolência endémica entranhada e parasitismo atávico, disfarçados de intelectual superioridade. Recomendar-lhes um pouco de vaselina é um gesto de caridade.Antes do curso!
Durante o curso!
Depois do curso!
Doutoramento honoris causa, à vista das ruínas de Calábria!

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Primavera árabe

Tunísia, Líbia, Egipto, Yémen, Síria...
As patranhas que estes gajos se lembram de nos meter na cabeça!

Cantistas

Fôramos nós um povo ilustrado, conhecedor da história e atento aos seus sinais, e já saberíamos que os tempos actuais de penúria e desespero não têm nada de inédito. Antes foram uma constante, numa história desgraçada.
Desde a inútil aventura de Ceuta, que teve início na temeridade duma rapaziada de corte aventureira, para terminar na catástrofe de Alcácer, só variou a oportunidade dos factores. Na essência, raro saímos da beira do precipício.
Nunca tivemos a sageza, nem o merecimento, de aprendermos com os erros as devidas lições. Porque sempre nos dirigiram, e manusearam, elites de corruptos e traidores, que governaram a vida à custa das nossas misérias. Nesse aspecto os últimos trinta anos são exemplo transparente. Só o não vê quem não quer.
Nos picos mais agudos e aflitivos dessa errância, que mal merece o nome de percurso histórico, sempre as elites dirigentes abasteceram a escudela do povo com mitos, balelas épicas e trovas à la Bandarra. E ainda hoje continuam a fazê-lo, com a ajuda inconsciente duns quantos palermas úteis, que se prestam a adoçar-nos a amarga pílula dum suposto destino histórico e duma imaginária gesta imperial. Bastas vezes donde menos se espera.
É o caso do Fausto (Bordalo Dias), que em tempos, "por este rio acima", nos brindou com um disco de puro génio. Ateve-se, nessa altura, aos ecos da Peregrinação, do Fernão Mendes Pinto.
Agora resolveu dar-lhe continuidade, atento a outras memórias, a diferentes pesquisas, a estranhos depoimentos. No quadro dum império de pura ficção, que desde o início alienou o povo inteiro e agrilhoou o país à decadência e ao subdesenvolvimento, a música de Fausto vem confrontar-nos com quê?!
"Os motivos principais privilegiei-os neste disco. Há os que partiram pelo sonho, pela descoberta, e há os que o fizeram pela conquista de mercados. O Luís Cadamosto, que me inspira a dado momento, partiu para negociar cavalos e trazer ouro, especiarias. Privilegiei os sonhadores, os viajantes da descoberta e as gentes do negócio, que vinham para a troca. Procurei esquecer os expedicionários. (...)
As próprias expedições galvanizavam a população portuguesa até ao séc XIX. As multidões vinham para a rua ovacioná-los no regresso. Tiveram tanto impacto como uma viagem à Lua. Havia esse maravilhamento pelo desconhecido, que vinha já do séc XVI, mas que avançou até ao séc XIX, uma coisa espantosa.
" (do último ATUAL)
Não sei de que literaturas épicas se alimenta a trova do cantista. Sei só que o seu efeito é mais tóxico e mais alienante que o dos que fazem vida a promover o fado como património geral da humanidade. Essa cantiga doente, (está bem, pronto, plangente e fatalista!) que uma fidalguia viciosa apadrinhou.

domingo, 20 de novembro de 2011

Ele há coisas...

Nem sabendo que é verdade se acredita!

Cores

Ai lua fútil, lua dúctil, lua inútil!
Até tu te puseste laranja!

sábado, 19 de novembro de 2011

A primeira vez

Nessa altura não trabalhavam em Angola inteira mais que cinquenta portugueses. E a imprensa de Lisboa, já então povoada de marafonas míopes, chamava-lhes mercenários. Hoje são centenas de milhar, e a imprensa deixou de os insultar.
Nas ruas de Luanda, todas as manhãs, via-se passar o autocarro espanhol, que levava os meninos para a escola. E passava o autocarro ialiano, e o brasileiro, e o francês, a levarem para a escola os seus meninos. Não se via o autocarro português por não haver meninos para levar, nem uma escola para eles.
Um dia entrou-me no corpo um paludismo selvagem, que voltara aos charcos da cidade. Chamavam-lhe cerebral, e era fatal. E o Diógenes, um médico cubano com quem eu repartia garrafas de vinho do Douro, levou-me para o hospital. Após três dias nos cuidados intensivos fui parar à mesma enfermaria que vinte anos antes me acolhera.
Lembrei-me então do enfermeiro solícito, e das maxilas que deixaram de abrir. E estranhei o ambiente, que já não era o mesmo. Mas o pior de tudo era a dieta intragável.
Na cama ao lado estava um velho negro, a convalescer não sei de que mazela. E a família lá vinha todos os dias, mimá-lo com vitualhas, à hora do almoço.
Não sei o que ele viu no meu olhar. Sei só que um dia me estendeu um prato de comida, e me obrigou a aceitá-lo, num gesto que repetiu enquanto lá fiquei.
A mim custou-me um pouco, da primeira vez. Mas quando o cubano me deu alta já me tinha esquecido do enfermeiro antigo.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Vai lá ver!

Dá algum trabalho ao bestunto.
Mas ajuda a ver melhor, nesta fumarada.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Pela tua saúde anímica

Faz uma pausa no fado, essa coisa doente.
E, se fores do Porto, compara o conceito de concert-hall, em que o público rodeia o palco, com o que te impingiram por uma fortuna na sala 1 da Casa da Música. Tudo foi nela sacrificado à forma, atitude comum nos pacóvios que fazem tudo para espantar o mundo.
A coisa passa se estiveres perante uma orquestra. Mas um quinteto de câmara nem o vês, a 50 metros de distância.

domingo, 13 de novembro de 2011

Calinadas

Ao Otelo não lhe agradam sobressaltos militares a desfilar pela rua. Muito embora eles existam por essa Europa fora há muitos anos.
Diz ele que, passados certos limites, só lhes compete destravar as culatras e despachar o governo. E que oitocentos soldados lhe bastariam para isso.
Uma calinada assim vem no seguimento de outras e atiça comentários.
É verdade que os indecisos limites há muito tempo foram ultrapassados.
É verdade que, desde há 25 anos, certas cliques dirigentes a quem o poder caiu um dia no regaço seriam para os portugueses motivo de vergonha, se antes disso já não fossem um exemplo de traição.
É verdade que, não fora a barcaça europeia em que Portugal mal navega, já tinha tido lugar um pronunciamento na segunda metade da década de oitenta.
É verdade que os pouquíssimos soldados bastantes a Otelo para dar ao governo um bom despacho já nem sequer existem, pois nem isso resistiu à nobre gente que nos tem governado.
É verdade que o governo hoje em funções foi eleito por uns quantos portugueses, e foi diligentemente amamentado pelos partidos encartados na revolução.
De forma que, jogando assim tão bem a mocha com a cornuda, o melhor será tirar daí o sentido e esquecer a peripécia.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Equívocos amargos

Um conde obscuro, que hoje ninguém recorda, deixou o nome à quinta. E havia nela, em tempos, um castanheiro velho, onde as cegonhas criavam os filhos. O resto era um sertão, ali no arrabalde, pisoteado por vacas de brinco na orelha.
Um dia chegou à vila a febre do progresso, um dia tinha que ser. E um empreendedor, que viera do mar ainda rapazola, quando as caravelas regressaram todas à praia das nossas lágrimas, encomendou-se a um banqueiro e urbanizou a quinta.
As casas são branquinhas, à mansa luz do poente. São quase todas iguais, e têm bonitos telhados vermelhos. Algumas são habitadas.
Foi assim que a vila passou a cidade, e o empreendedor deixou de andar a pé. Agora alterna entre um blindado BM e um Porsche dos melhores, se está curto de tempo.
Dizem que já mandou vir um Maserati. Só está à espera que diminua a lista dos tantos geradores de equívocos amargos.

Palavra de brigadeiro (4)

(...)
O avião lá caiu, lá se despedaçou, mas eu já não vi como. E a partir de agora é só um filme queimado que lhe posso mostrar, onde poucas sequências se aproveitam.
Na primeira dou comigo dentro dum charco. Sinto o lodo nas pernas enterradas, as ervas podres a enrolarem-se aos joelhos, e um clarão de alerta a explodir-me na cabeça: - Preciso de sair daqui!!!
Já a meio da encosta dum morro. Estou parado, voltei-me para trás, pergunto, a quem: - Como é que vou daqui para o Toto?!
Cheguei, parece-me, ao cimo do morro. Difusos, entrevejo vultos baços, vermelhos, lá em baixo, e grito: - Quem são vocês?! Que horas são?!
Agora já vou picada fora, no jipe da tropa. As pontas do capim, debruçadas na berma, vêm lamber-me a cara ensanguentada, deixam-me ferroadas na pasta amassada dos olhos. Um soldado cobre-me com o peito, parece a minha mãe.
A partir daqui, a história adquire maior constância. As sequências aproveitáveis tornam-se mais longas, aparecem encadeados de pensamentos, começam a jorrar tempestades emotivas. Reaparece o desconforto do medo, aqui e ali sinto-me vulnerável.
Agora estou já no quartel do exército, estendido na maca baixa, inundado pela euforia de me encontrar a salvo. Agito as pernas no ar, experimento músculos e dobradiças, lanço anátemas contra a guerra e todos os seus chefes, obtenho do brigadeiro a palavra de honra de que não fico cego. Chega-me pela primeira vez o gosto da fraude, sinto-me violado por dentro.
E estou já no aeródromo, rodeado da minha gente da força aérea. Aguardo o avião que vem buscar-me, deitado no chão duma ambulância verde. A ventoinha do tecto rodopia teimosa, agita um pouco a atmosfera quente. Apercebo-me do tempo, do sol, dou conta de que a tarde já vai longa. Num desespero que não entendo, agarro a mão dum amigo. Respiro a angústia contida dos meus camaradas, enterrado num cataclismo de emoções que não sei descrever. Aparece-me clara a ideia de que os comandos da base aérea não vão perder a oportunidade de fazer contas comigo. Pagar-lhes-ei, desta vez, a insubmissão, as resistências passivas, as heresias velhas e as novas. Os bonzos não me deixarão escapar. Este pensamento atormenta-me, dói-me, exposto assim e indefeso, como se tivesse acabado de sair do útero da minha mãe.
Estou já no chão dum avião, imagino-me sobre os Dembos. Em viagem para Luanda, mergulhado num agressivo bater de ferragens e latas, que me provocam dores insuportáveis. Queixo-me ao médico, que me cobre os ouvidos com algodão em rama. Sem nenhum efeito.
Já no aeroporto, transferem-me para uma ambulância. É claramente noite. Alguém recomenda aos enfermeiros muita pressa e muito cuidado.
Eis-me enfim na urgência do hospital militar. Há outras macas no chão, à minha volta. Vultos perpassam, com fardas de gente importante. Um padre aproxima-se, debruça-se sobre a minha cabeça. Lembra-me que sou filho de Deus, e que como tal devo encarar todas as provações. E que devo estar preparado para o sacrifício supremo, se tal for a sua vontade omnipotente.
Surpreendeu-me, com franqueza, a presença do padre. Vi-lhe claramente o significado mas considerei-a descabida, avaliando o meu próprio estado. A bem dizer assustou-me. Abriu brechas na minha segurança íntima, no último reduto em que me achava. Não sei se lhe devolvi uma palavra.
As últimas imagens são da sala de raios X. Estendido numa grande mesa, cercam-me tubos e olhos de máquinas. Sinto um vómito violento. Peço ajuda a um enfermeiro, que me ampara, debruçado sobre um balde de plástico verde. Vomito do fundo das entranhas, e oiço o enfermeiro comentar: - Este vem bonito! Só já vomita sangue! – Foi o mais macabro cumprimento que já me dirigiram. Deixou-me desamparado e aflito. Introduziu na minha fortaleza uma dúvida inimiga e perversa.
Valeu-me, de novo, este repetido baixar do pano, este gelar-se-me por dentro a ideia e a lembrança. E ainda não sei, talvez estas horas todas que eu vivi mas que não foram minhas… O que são estes lampejos de consciência que aparecem, furtivos, em que eu penso, e ajo, e sinto, e tudo o resto que não passou por mim, e que eu não guardo, e que nem ao de leve me arranhou, mas onde eu também actuo, e avanço, e recuo?!
Comecei a sentir pesada a língua, a invadir-me o peito aquela opressão de incapacidade e esgotamento que voltava sempre, mais forte do que eu. Soergui-me nos cotovelos, resisti, dei pelo pijama inundado de suor nas axilas.
Enfim, fiquei aqui, e dos primeiros tempos não guardo lembrança. Dias e dias que não foram meus, sabe o que é, até começar a acordar.
Vieram então pesadelos fantásticos, febris, escuros como fundos de poços. Olhava-me num espelho de corpo inteiro e desvendava uma barriga transparente, com pele de celofane, assim como um manequim de sala de anatomia. Deslizava sobre mim as mãos e não achava pernas, e ficava atordoado, a mim mesmo estranho, na penumbra surreal duma atmosfera de homens-cestos. Tinha uma coluna reconstruída, descarnada a espaços, com vértebras lisas e brilhantes talhadas em chifre cinzento. O pescoço alto, desproporcionadamente longo e fino. A minha cabeça tinha partes restauradas, com entalhamentos de baquelite castanha. Tudo funcionava, porém, na perfeição, obra-prima dum macabro Frankenstein.
Venho, assim, regressando desta viagem ao fundo das trevas, aos magmas de fim do mundo, onde já não há medos nem há emoções. Onde o sol e a paixão, o verde das florestas e o falar das gentes se dissolvem num vasto lago escuro, opaco, mineral.
E mais não me disse a língua naquela circunstância. Mais diria se o torpor não tivesse chegado, definitivo, urgente, fóssil.
A quarentona não cheguei a vê-la, sentia apenas latejarem-me os pontos nas pálpebras cosidas, por baixo dos esfregões de palha-de-aço. Enquanto iam renascendo, mais vivos, os olhos que não perdi, palavra de brigadeiro.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Palavra de brigadeiro (3)

(...)
- Imagino que a senhora dispõe de pouco tempo para estas conversas, que tem uma vida enervantemente carregada de compromissos, que isto é para si apenas um descargo de consciência, uma injecção de morfina no cancro da existência. Sei que gosta de passar por aqui para que se saiba que esteve cá, armada em Santa Isabel da tropa, abrindo o regaço generoso aos massacrados da guerra, distribuindo larachas ridículas, ou livrinhos de cordel já surrados de tanto peregrinarem de mão em mão. Sei que gosta de passar por aqui como cão por vinha que foi vindimada, envolta nas liturgias beatas duma visitinha pascal – breve, breve, que a malta é muita! – e deixar atrás de si um rasto de perfume de fêmea.
Senti-me cáustico, injusto, infame. Uma cobardia de novato ameaçou-me a garganta. Mas ainda assim me saiu a voz como se não fosse minha.
- Aqui estou há três semanas. Julgo que não me engano, muito embora os rigores do tempo me tenham escapado. Conheço os meus companheiros pelo ouvido, e comecei a ver as horas na voz do enfermeiro que me traz o almoço. Já tenho tentado, nos momentos em que estou desperto, ligar as vozes destes colegas de camarata às suas histórias pessoais, captar-lhes as inflexões, os maneirismos, e pintar-lhes o retrato robot, como fazem os polícias enganados pelos ladrões. Aquele além do meio, por exemplo, há-de ser um macaco de focinho quadrangular e obtuso. Raciocina linearmente, agarrado ao sentido imediato das coisas, tem a casca dura e o pêlo hirsuto, faltam-lhe na ascendência gerações de banho morno quotidiano. Aquele lá do fundo chegou há um par de dias, traz umas lascas de caveira a menos por certos maus encontros que teve, ao que me consta. Não fala, não o conheço. Há um aí para a direita que não se cansa de engolir noticiários. Homem paciente, liga o transístor à hora certa, como quem peneira leitos de rios à espera de ouro. Nem chega a excitar-se, pois nem reflexos de mica lhe aparecem no fundo do crivo. E desliga sempre o aparelho no fim das notícias. Deve ser um tipo de olhar ansioso, eu vejo-o ruminante, pouco falador, a guardar no peito uma esperança não sei de quê.
Pouco falamos, enterrado cada um na sua fortaleza. As nossas conversas são como folhas amarelas de Outono, limitam-se a cair umas atrás das outras. Somos uma armada de barcos naufragados, cada um a tratos com a sua procela pessoal, aferrado às suas bóias interiores.
Eu entrei aqui feito num bolo, mais morto que vivo. Vim dos matos do norte, onde me espetei com um avião pelo chão adentro. A ganância do alvo a fugir, sabe o que é, aquele fascínio de o ter no visor e as putas das balas perdidas não se sabe por onde. Não custa nada prolongar o passe mais uns décimos de segundo, pode ser, enfim, que o pundonor se salve, e o alto conceito em que nos temos a nós próprios, se formos imbecis até tal ponto, como é frequente, sabe como é?
Imagine pois que o meu alvo era um bicho do mato, um pacação, não sei se já tem visto. Apanhou com o avião ao longo do espinhaço, lá ficou ele e eu, pelos vistos eu em bem melhor estado! Bem sei, mas não me interrompa para me recriminar. Já sei que, se foi mal, o mal está feito. Já tive aqui uns visitantes pressurosos a recolher-me o depoimento, prontinhos a alindar-me a folha de serviços com algum floreado do regulamento infringido. Mas sempre lhe direi que o fiz para evitar a fome e o mau passadio, o meu e o dos companheiros. Por isso, bem ou mal, depende só da moral.
Quando senti o avião a esfregar a barriga no capim, puxei-o, e ele recuperou. Mas já não vinha inteiro, metade duma asa saltara no choque violento que me projectou a têmpora direita contra os ferros da carlinga. Partiu-se o capacete que me rasgou os olhos, e o choque deixou-se num estado de sonambulismo inconsciente, em que o fio da memória se me cortou. Não foi porém tão rápido que eu não tivesse visto avançar direito a mim, distinto e inevitável, o manto escuro do aniquilamento. Passou-me na cabeça um clarão de raiva. Mas logo me inundou um tranquilo sentimento de entrega, de renúncia pacata, de submissão quase doce.
(...)

sábado, 5 de novembro de 2011

Palavra de brigadeiro (2)

(...)
Ela chegou perto de mim, trouxe-me às narinas uma nuvem subtil de Cabochard. E eu senti-a tão perto que levei, por instinto, a mão aos olhos, a proteger os esfregões de palha-de-aço que me ocultavam as órbitas.
Cresciam-me as sobrancelhas, pensava eu, enleadas nas cordas dos pontos que sentia arrepanharem-me as pálpebras. Picavam-me, por vezes, do suor, e eu deliciava-me a sentir vivos também os olhos, onde se concentrara enfim o aguilhão do medo, a aflição da cegueira. Traziam-me os soldados no jipe da tropa, picada fora, desajeitados e inseguros como um tio solteirão a quem caiu nas mãos um sobrinho acabado de nascer. Tratavam-me com a solicitude aflita que se dispensa aos casos perdidos, e ter-se-iam estendido no chão, para eu lhes dançar sobre as barrigas. Não eram homens para recusar um último desejo a um qualquer. Um deles empinou-se à frente do jipe, encavalitado sobre mim. Com o dorso ia varrendo as pontas do capim alto que vinham afligir-me a bola de sangue da cara, abandonada no encosto do lugar do morto.
Depois, no quartel, a morfina. Subtil primeiro, em torrentes depois, a euforia da ressurreição. As minhas pernas vivas, os braços a saltar sobre a maca rasteira, a consciência clara e agitada de poder mexer-me, se quisesse.
Não sei onde se me gravou tudo, nem com que olhos acompanhei o que se passou naquelas horas. Sei apenas que o vivi, que alguma parte obscura de mim o sentiu e o guardou. Sei que pisei o limiar onde se está dum lado morto e doutro vivo. E senti o animal de mim inebriado com a redescoberta da vida. Soltei anátemas de fúria contra as hierarquias, os comandantes, os galões, as guerras e as pátrias. Exigi ao brigadeiro a palavra de honra que não ia perder os olhos. Ele deu-ma, e mandou buscar uma camisa verde que lá tinha, passada a ferro, para me vestir.
Mas não tinha voltado ainda a ver a luz do dia. Os olhos eram o centro de mim, e eu tapei-os quando ela chegou. Senti-lhe a mão pousar de leve sobre a minha, tão leve como se ela pudesse viver a minha aflição de cego.
- Mas a ti não te tinha visto ainda! Há quanto tempo estás aqui? Conta-me lá a tua história!
Vi-me transformado num canhão no estaleiro. Eu não era eu, era uma peça do cenário, era um banquinho para as verdadeiras personagens. A intimidade forçada deste contacto fez-me lembrar que eu teria, espetado no alto da carantonha de pau, o ferro de manejo dos bonecos de Santo Aleixo.
Voltei para ela os tubos entrapados das pupilas. A língua pulou-me da garganta como se tivesse deixado de ser minha, como se por trás do seu contorcionismo verbal já não estivesse eu, nem o meu cérebro amarrado nas ligaduras do respeito pelas instituições, afeito ao molde das hierarquias. Senti-me dar um passo para a frente sem o ter sequer imaginado. Fiquei a ouvir-me falar.
(...)

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Um olho no burro...


... e outro no cigano!

Palavra de brigadeiro (1)

Eu estava há três semanas no hospital, estendido na cama articulada do fundo da enfermaria. Nos primeiros quinze dias dormira sem intervalos, ideia vaga tinha apenas de algumas vezes o enfermeiro me acordar, atrás do seu carrinho de vitualhas. Alçava-me nas manivelas o corpo dobrado em dois, sentava-me na beira da cama para mudar de posição, e alimentava-me a fornalha dos dentes com pequenos pedaços de comida. Eu trazia avariadas as maxilas, apenas abria alguns milímetros os queixais. Mas devorava como um lobo a ração do almoço, num estado de fome que eu nunca assim pudera observar tão irmã da vida. Vinha não sei de que remoto local de mim aquela fome. De um local por certo esvaziado, mas que só os mortos terão vazio. E eu, afinal vivo, sofria aquela fome de o preencher.
Uma vez alimentado, baixava-me o enfermeiro de novo à horizontal. E eu ficava, hibernando, num sono sem limite, como um corpo avarento que amontoa energias. Sem um gesto, sem um pensamento consciente, sem um sinal sequer de comunicação. Rugiam-me tempestades no mais fundo da pele, escalavravam o mais ignorado de mim. Mas na minha cara, que fora sempre um verdadeiro espelho, não perpassava um tremor.
Nos últimos dias comecei a acordar, por lapsos curtos de tempo. Comecei a atentar, silencioso, na voz dos companheiros, até se me diluírem no ouvido as suas deambulações de língua. O nariz, a tempos, ia reconhecendo cheiros de hospital. Cheguei a estar desperto durante uma hora. E lá voltava outra vez aquele sono, que não era bem sono. Era uma prostração, era um limite físico. Além dele nem um passo. Chegava ele e eu ficava aprisionado, naquela ratoeira dum corpo incapaz. Enquanto o sol, entrando na vidraça, ia queimando, intenso de vida, a minha pele.
Um dia à tarde, não sei já por que labirintos se me aventurava o pensamento, salpicou o silêncio de metais brancos da enfermaria o trote bailado de uns sapatos de salto, atacando o soalho fresco de ladrilhos. Alguém tinha visitas.
Rodei a cabeça na direcção da porta. Habituado durante vinte e quatro anos a ver as coisas com os olhos, esqueci-me de que mos tinham obturado.
Ela entrou, desenvolta, espargindo alegrias acrílicas sobre a rapaziada. Éramos nós, os internados, a sua frente de batalha. E estava ela, pois, no seu teatro de operações. A cada um ia distribuindo sorrisos de grafonola, livrinhos policiais e bugigangas, no meio de aspersões de reconforto beato.
Eu seguia-lhe, de ouvido, o deambular. Imaginava-a nos quarenta anos pelo cetim envolvente das cordas vocais, ainda macias. Talvez menos, pelo cirandar seguro dos saltos dos sapatos. Talvez um pouco mais, pela eficácia quase maternal com que distribuía a cada um o seu pacotinho de coragem sintética. Tinha na voz requebros de bairro elegante, e eu imaginei-lhe a silhueta quarentona, cada cabelo no sítio certo do penteado cuidadosamente armado, o peito, ainda altivo, suspenso por elásticos, a harmonia das coxas marcada, a compasso, pelo esteticista, o leito das rugas a aflorar, assoreado pelo macadame das loções hidratantes. Imaginei-lhe o ar sacripanta e farisaico dos naufragados na falsa temência a Deus, no falso amor à Pátria, no serviço falso da Família.
- Só me faltava esta agora! – berrou a minha paciência.
(...)

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

A boiada

E a poeira que ela deixa!

Pois é!

«Um "não", de resto inteiramente provável, terá efeitos catastróficos sobre a economia grega. Levará à bancarrota, ao cancelamento da assistência externa, a uma terrível suspensão de salários e pagamentos.
Para os gregos, seria um suicídio colectivo. Têm agora a arma nas mãos
».
[Lomba, in PÚBLICO de hoje]

E ainda...
E ainda mais...

Pode ser que sim...

... que assim seja.
Mas não é garantido.

A retoma

Em Almendra a azeitona está madura, e as recentes chuvas vieram a tempo de salvar alguma.
Recolhê-la é a única retoma de que é lícito falar. E, mais urgente ainda, de levar à prática.
Qualquer outra não passa de palavreado duns bonecos aventureiros e sem vergonha, que à má fila chegaram ao governo, sem saberem muito bem o que fazer com ele, salvo acumular trapaças e malfeitorias.
Salvo repetir as mesmas fórmulas, já velhas de cinco séculos: reduzir o rebanho à indigência e à penúria, ao grau zero da cidadania, ao medo da fome e à submissão, à emigração, ao despaisamento e à precaridade.
Com o interregno ilusório dos últimos trinta anos, esta pátria tristonha nunca foi a mãe dos portugueses todos. Antes foi a madrasta de gerações infindáveis dos muitos enteados, para benefício duns poucos ínclitos filhos que lhe mamaram sofregamente as tetas. E que ensaiam de novo as fórmulas antigas.
Cá em casa, nos próximos tempos, a retoma é de galochas e luvas. Porque os dedos não são de pechisbeque.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Matilhas

Eles revezam-se em palco, agora tu, logo eu!
Mas têm todos o instinto do saque.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Para lá de todos os limites

Não acreditas?!
Vem ver aqui!!!

[ADENDA: O delíquio experimentado pela Secretária de Estado da maior potência do planeta ganha outra intensidade quando se ouve:
- que, nos últimos momentos de vida, Kadhafi pode ter sido sodomizado com um pau, pelos rebeldes que o capturaram;
- que a nova constituição líbia terá por base a sharia (lei islâmica), que recupera a poligamia.]

Vamos lá...

... tentar perceber melhor!

domingo, 23 de outubro de 2011

Irina

Em Luanda, em 1986, num velho arranha-céus colonial morava Irina, uma mulher redonda e muito branca, que dava lições de Física na universidade. Perto dela vivia Ngo-Diem, que era professor de Matemática e cozia os feijõezitos da soja num fogareiro a petróleo.
Logo à entrada da Ilha, voltada para o oceano, havia uma praia privativa das famílias dos técnicos russos, patrulhada por fuzileiros-navais de kalash engatilhada.
Reclamados pela guerra aos kwachas nos sertões do Kuando-Kubango, tinham vindo de Moscovo quinhentos blindados, que uns barcos descarregaram no porto. Mas a guerra continuava, e os mais deles desfizeram-se em ferrugem nas valetas de picadas infinitas. Eram os ninhos da surucucu, e ninguém veio a saber quem os pagou.
Nessa altura, no Afeganistão, os talibãs abatiam os helicópteros de combate russos com mísseis vindos da América. E cortavam às postas os pilotos que apanhavam vivos, com moto-serras eléctricas.
Irina não podia receber-me em casa, que o comissário do partido não autorizava, por razões misteriosas. Mas um dia eu fui lá visitá-la, e ela ofereceu-me uma fita com baladas de protesto do Vladimir Visotsky. Eram canções escondidas, que ela tinha copiado do gravador duma búlgara, que morava no patamar de baixo.
Eu não conhecia a língua do Vladimir. Mas a voz dele era uma mistura rouca de fumo de cigarros e vodka de batata, que arrepanhava a garganta. Era a voz da estepe russa, decifrava-se com facilidade e eu gastei horas inteiras a ouvi-la.
Mais tarde perdi a cassete de Irina, se antes ma não roubaram. Mas não levaram as canções do Visotsky.

sábado, 22 de outubro de 2011

Coca marada

Bem gostava eu de ter um link para isto! Mas não tenho, nem sei onde o arranjar. Por isso transcrevo, em parte, António Guerreiro, no ATUAL de hoje.

«(...) Por exemplo, quando se decide aumentar o IVA dos bilhetes de cinema de 6 para 23%, poupando os livros a essa subida, o princípio que determina esta medida é o de que há um valor cultural - de índole humanista, como sabemos - no ato de ler com o qual o cinema, filho da indústria do entretenimento, não tem o mesmo grau de compromisso. (...)
E, no entanto, há aqui algo de profundamente injusto e inadequado ao que se passa efetivamente. Os livros, quase na mesma proporção do cinema (isto é, a larga maioria) são meios de produção da imbecilidade e, se fosse possível introduzir aqui alguma justiça, deviam ser taxados como o tabaco. (...)
É preciso perceber que o amor universal pelo livro, a ideia de que o livro é, em si, uma coisa boa, encerra uma mentira: a de que muitos deles são nefastos e não deviam gozar de nenhuma prerrogativa. Como nefasto é este contrato público que prescreve a bondade dos livros e permite aos seus 'agentes' (autores, editores, difusores, livreiros) prosseguirem uma tarefa de destruição em nome de um grande amor por eles
».

Não caberá, ao crítico, dizer-nos o que ler e o que não ler.
Mas é sua estrita obrigação avisar claramente a nossa iliteracia que anda aí muita coca marada, com selo de garantia.
Que nunca lhe doa a pena, ao Guerreiro! É que os papagaios avençados nunca o fazem. Em proveito da vidinha, a deles, e em prejuízo da nossa!

A choldra


Já duas vezes aqui foi dito, e hoje se volta a dizer, por ser ainda oportuno, verdadeiro e pertinente: o PSD é actor primeiro no palco da tragédia nacional, que não ocupa sozinho.
Desde o final dos anos setenta, em que o país precisava de romper com a medievalidade e definir rumos novos, a história do exercício do poder pelo PSD, e a sua contribuição para as soluções nacionais é uma sucessão de equívocos ou malfeitorias.
O primeiro legado substancial que nos deixou foi a reedição do mito de D. Sebastião, com Sá Carneiro. O tal que ficou na história, não pelo pouco que fez, mas pelo muito que havia de fazer, se não tivesse desaparecido tão cedo. Tudo o que deixou atrás foi a exigência do regresso urgente dos militares aos quartéis, e o desejo de conquistar, como forma de salvar a pátria, uma maioria, um governo e um presidente. Mas as suas cumplicidades políticas foram sempre com abencerragens democráticas do género de Spínola ou Soares Carneiro.
O segundo legado do PSD foi um olimpo de barões, que se foram servindo dum poder que lhe caiu nas mãos e com o qual sedimentaram carreiras, mas não deixaram a sombra dum pensamento útil. Euricos de Melo, Balsemões, Penedas, Ângelos Correias e outros quejandos pimpões inomináveis, uma plêiade de governantes e gestores de empresas, participadas e des-participadas, em que sobretudo governaram as vidinhas.
O terceiro legado foi a enxurrada dos oportunistas e dos gangsters, que floresceu à sombra do impoluto Cavaco, a partir da Figueira da Foz. Era a década dourada, em que o dinheiro europeu chegava com as marés, e em que era vital definir um futuro novo. Mas não ficou dessa gente uma ideia consistente, um rumo a seguir, uma estratégia de vida. Na Educação, na Saúde, na Economia, na Administração, na Defesa, na Cultura, na vida do país não ficou a memória duma luz. O que ficou desse tempo vital foram os escândalos da formação, paga a peso de ouro sendo um faz-de-conta. Foi um fartar vilanagem. Foram as universidades privadas de João de Deus Pinheiro, as Independentes, as Internacionais, as Modernas, as Portucalenses, as Lusíadas… essas instituições de pura caça à propina com cursos de papel e lápis, que defraudaram o país e levaram à certa a juventude. E ficou a herança que nos legaram os Dias Loureiros, os Oliveira Costas, os Isaltinos, os Arlindos, os Valentins, os Duartes Limas, os Sanches, os Coimbras, os Albertos Joões, os Rendeiros que eram às centenas. Tantos eram eles, e tão maus, que o próprio Cavaco os enjeitou. Aplicou-lhes o tabu de um ano inteiro, e no fim abandonou-os na orfandade.
O quarto legado foi o dos maoístas reciclados, dos quais Durão Barroso foi o herói maior. Depois dos serviços prestados à CIA, em tempos antigos, quando era preciso construir o caos e a anarquia,deixou ao país uma célebre frase: enquanto houver uma criança com fome, não haverá um novo aeroporto! Depois escapou-se para Bruxelas, a prestar outro serviço a novos donos.
O quinto legado é o dos aventureiros actuais. Criaram-se os mais deles à lei da natureza nos sertões africanos, onde a vida era servida já feita. Não dominam a língua nem a gramática dela, não têm mais leituras que a da sebenta duma licenciatura em Relações Internacionais numa escola manhosa. Não se lhes conhece outra experiência que não seja a tarimba e a movida nocturna na Jota do partido. Não conhecem o país, nem querem o trabalho de o conhecer, nem precisam de o conhecer para as suas aventuras.
Um dia um dos rapazolas, o Marco António Costa, chegou à Rua São Caetano. Espetou um dedo ao nariz do outro, o Passos Coelho, e disparou:
- Ou tens eleições no país ou no partido!
Lançou os dados e ufanou-se disso, porque o resto foi simples e ficou conhecido. Chumbou-se o PEC4, delapidou-se em eleições um tempo que era precioso. E com o beneplácito dum povo com o poder de análise e a capacidade crítica dum rebanho que passa de focinho rente ao chão, fez-se um governo novo que dura há quatro meses. Contam finalmente com um governo, uma maioria, um presidente, e até com o bónus duma oposição, para pôr finalmente o país na velha ordem antiga. A da penúria geral e da carência, a do desamparo, a da precariedade, a da emigração, a da canga, a dos chico-espertismo, a dos empreendedores parasitas, a das eminências pardas, a dos banqueiros rapaces, a ordem velha de quem manda e a de quem obedece.
Aos aventureiros mercenários do governo novo já resta pouco tempo para as aventuras, ao que se vai observando. Mas ao país ainda menos.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

A ignomínia duns fariseus

A NATO foi à Líbia, à procura dum cano de esgoto. Destruiu o país mas encontrou-o.
Tirou de lá o Kadhafi e matou-o. Porque o gajo não podia ficar vivo, tinha uma língua comprida, ia pôr-se a contar o impensável.
Já segura de que o tipo estava morto, deixou uns papagaios a contar a sua história, e foi para casa tratar duns negócios.
Daqui por uns tempos vai ter que lá voltar, a apagar uns incêndios. Por causa do terrorismo, à conta do qual nos tem andado a dar cabo da vida.

Ainda a Júlia da Farmácia!

Já aqui se falou dela. Mas é irrecusável voltar à vaca fria, honni soit...
As histórias que José Rentes de Carvalho através dela nos conta, ou nos comovem, ou nos edificam, ou ainda melhor nos sobressaltam. Pela ironia, a vivacidade e o sarcasmo com que nos desvendam o mundo.
Saboreie o leitor Uns lotes à beira-mar, O Joalheiro, A Quinta do Mobutu, O Milhão, Scoop, Salon Gina, O Caderno de Hakim, O hospital militar, O sub... e depois fale!
Ficam agora também disponíveis, através da Sonora de S. Lázaro, para utentes invisuais, amblíopes, ou gente impossibilitada de ler.
Porque é preciso distinguir entre as cegueiras dos olhos e a cegueira real e programada, que é a das cabecinhas. Andam por aí a encher-no-las de areia, e de vazia genialidade, com Peixotos, e Tordos, e hugos mães de papel de cenário.
Eles lá sabem porquê. Mas isso é questão para o seu momento.

Amuse-bouche:
(...) depois de não nos vermos há muito encontrámo-nos uma manhã numa padaria, ele a entrar, eu a sair. Rimo-nos do acaso, abraçámo-nos, dei um passo atrás para admirar aquele Adô metamorfoseado, gordo e próspero, vestido com o esmero antigo:
- Houve milagre!
- De facto consegui salvar-me - disse ele. - Ou melhor: fui salvo pela merda. Literalmente. A merda salvou-me.
Num café a dois passos dali contou-me como ele e Janine, mesmo nos momentos de menos precisão, se tinham visto reduzidos a só comprar as entranhas dos frangos, e a sua surpresa ao notar um dia que os intestinos transparentes e finos, onde as cagalhetas se enfileiravam como contas de um rosário, possuíam uma curiosa trama e se dispunham num estranho desenho.
Foi a inspiração! Colando as tripas, com cagalhetas e tudo, sobre pequenas telas, colorindo-as e envernizando-as, tinha criado desse modo figurações tridimensionais de um estilo muito pessoal.
O êxito fora instantâneo. A galeria anunciava constantemente novas e maiores vendas. Chegavam pedidos da Suíça, do Japão, Itália e Estados Unidos. Directores de grandes museus intrigavam para que fosse dada prioridade às suas encomendas.
Com os primeiros fundos tinha podido comprar um apartamento na Rue du Bac, onde andava agora a fazer obras, e porque era perto fomos ver, não me custando a imaginar o luxo que seria quando estivesse pronto. (...)

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Mafia

Os mafiosos são muitos.
Mas o Corleone é este.
Bem nos foderam!

O Chile?!

De há 40 anos?!
Bailha-nos Deus!

Na dúvida...

Paus por baixo!

Mercenários

O orçamento de estado para 2012 corta nas despesas da escola pública três vezes mais que o imposto pela troika. Oiço falar em 864M€***.
Isto enquanto o financiamento do ensino privado sobe de 80 para 85 mil Euros por turma, com diminuição do número de alunos.
Serviço nacional de saúde, escola pública, funções sociais do estado, demolidas por aventureiros mercenários?
Não deve ser verdade! Isto é malta a dizer mal do governo!

***Adenda: Há quem diga que é o dobro!

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Manilha de trunfo

"P'ró preto" e muito bem, claro!
Para que tivemos nós um Gama, porra, um Albuquerque?!
Para que submetemos nós o Indostão?!
Não somos, afinal, um povo eleito, predestinado para não sei o quê?!
E novecentos anos de história, gloriosa e fidelíssima, não são ainda a manilha de trunfo?!
Isso da moral, do respeito, da justiça e da igualdade são mesmo coisas de hereges lá de fora!

Sala cheia

Alarmado com a crise, prisioneiro dos conceitos do custo e do benefício, limitado, o pobre, à estética aristotélica, o novo director-geral foi definitivo e terminante: nas artes de palco em geral, e nas performativas em particular, só a sala cheia garante o subsídio. Fora disso nem pensar!
Ficámos ali à nora. Com dois milhões por ano garantidos pelo erário íamo-nos aguentando, sempre gotejava o génio criativo. É certo que o público andava muita vez de candeias às avessas, serões havia em que se estava tintas para a performance. Mas a vida ia bem. Agora assim, logo do pé para a mão...
Fomos à bruxa, falámos com gurus, lá consultámos um programador.
-Há espectáculos para cinco, para um, para dez ou para centenas de espectadores. E exemplos não faltam de obras que foram feitas para públicos que haviam de vir. Como Os Lusíadas, para não irmos mais longe. Naquela altura mal se deu por eles e hoje em dia é o que se vê, a malta pela-se por glórias de papel.
Quem assim fala são os populistas e os ignorantes, que tudo desconhecem sobre os mecanismos da produção artística, da liberdade criativa, da formação dos públicos e da história das artes. E são discursos de ressabiado: como é que uma reles minoria entende o que eu não entendo, e ainda por cima pode tirar prazer disso?
O complexo do labrego, e a subliminaridade da síndrome da impotência, tais a ver?!
Bendita hora aquela! Melhor do que isto só a pítia original, nas cavernas em que imperava Apolo!
Em menos duma semana montámos uma cena para espectador único, inaugurámos um ciclo de sessões contínuas com lotação esgotada. O público, esse, ninguém pegava nele, foi preciso dobrar a assistência à bilheteira. E com uma ajudinha da crítica esclarecida, até o director-geral se deixou convencer.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

O mata-sete (2)

(...)
Mas vamos à história do João, que já deixou à espalda Sanza Pombo, já deu o seu bom-dia aos amigos da Quicua, e que agora, à vista da fronteira, mandou formação de combate e vozes de armar. O asa terá, ou não, ligado já o circuito das metralhadoras. E o João, impante e agressivo, disposto a levar a sério a sua missão de soberania, liga, sem olhar, os foguetes que traz. São dois enormes trambolhos que o bombardeiro vai arrastando sob as asas, pendurados nos mesmos ganchos das bombas. E o sofisticadíssimo sistema de armamento permite a escolha conveniente: ou larga tudo, quando é seleccionado o circuito das bombas, ou dispara os foguetes se tal foi a opção.
Ajustou o João o motor, e mandou ao asa que lhe cobrisse a manobra, lá em cima. O rio, assim visto de mais perto, límpido na manhã de sol, era uma fascinação para poetas. Mas não era para devaneios que o João ali estava. Por isso resolveu dar uma lição de soberania àquele preto, que freneticamente rema para terra, buscando no palmeiral um refúgio contra esse grande susto que aí vem, atroando os ares.
Dá um toque no rádio, aconchega-lhe o gás, puxa pela esquerda para a altitude de tiro, corrige o visor de que se tinha esquecido e entra no passe. Esmera-se com pequenas correcções, (o tempo dá para isso e ele não quer abater o homem!) e aponta à frente da canoa, em riscos de ruína sob a remada vigorosa do negro aflito. Lá lhe pareceu que era altura, e não conseguiu evitar um sardónico riso ao premir o botão de disparo.
Estranho sucedido este, que não viu sair os foguetes, antes parece que foi o raio do avião que deu um salto em frente! Carregou outra vez no botão, e o sacana do preto a desaparecer no palmeiral!
O João puxou bruscamente, pendurou-se na asa direita, o que ele queria era ver se ainda se podia fazer alguma coisa. E ficou esmagado quando descobriu, nas barbas das palmeiras, as carcaças dos contentores de foguetes.
- Ah cabrão, que falhaste a ligação!
E alinhou um comboio de imprecações a que não se pode aqui dar voz.
O pescador não soube o que fazer a tal oferta. O velho bombardeiro, liberto dos trambolhos a cortar-lhe o passo fatigado, deu mesmo um arranco em frente e lá seguiu, a 115 milhas. O João, com o dia todo estragado, esqueceu-se de reduzir o motor. E o asa teve que meter gás à tábua para o acompanhar.

domingo, 16 de outubro de 2011

O mata-sete (1)

Nada se parece mais com certas guerras do que as rapaziadas de taberna ou as cenas da caça. Mantidas as distâncias, claro está, já que também as diferenças são grandes. Mas numas e noutras há sempre um mata-sete.
Personagem de estatura menos que mediana, com tendência para o tacão grossíssimo, larga panóplia de trejeitos amalandrados, e galhardia, muita galhardia, e façanhas inultrapassáveis. O João era assim, jovem piloto numa esquadra do norte de Angola nos idos de sessenta e tal.
O João estava com a sua gente, porque os pilotos menos jovens e menos milicianos tinham desde cedo começado a rarear. E lá se convenceu de que tinha uma fama qualquer a manter, entre a rapaziada. Descompunha-se com frequência em comentários ao tiro dos companheiros, em sarcasmos aos fracos resultados do reconhecimento. E já uma vez cometera a proeza de entrar num passe de bombardeamento, descobrir, pelo meio, alguma coisa que mexia noventa graus ao lado, mudar de alvo, dar cabo dele, e recuperar triunfante, com vivas interjeições soltas no rádio.
Era assim, e ninguém se zangava, o João que um dia saiu numa missão a chefe. Tratava-se do que as neps designavam como “missão de soberania”, um patrulhamento de fronteira, sobre um estranho rio que corria para norte. Ao contrário de todos os outros rios, que não descansam enquanto não vêem o mar, este corria para o centro da terra, desafiando as normas da sua condição. Lá ia, caudaloso, ora saltando cascatas apressadas, ora espreguiçando-se em meandros vagarosos que eram uma beleza de se ver, e onde os pescadores, em pirogas rombudas, aproveitavam para lançar as suas artes pré-históricas.
A viagem era longa e rotineira. Nunca se previam sobressaltos, nunca havia semelhanças entre um qualquer negro à pesca e um terrorista temível, a executar uma invasão a partir do Congo. E, para o combustível, lá estava a escala de reabastecimento prevista em Malanje. Era um passeio agradável, de um dia inteiro, à deslumbrante paisagem do norte angolano.
Os dois bombardeiros lá seguiam, à distância do regulamento, semeando na limpíssima atmosfera da manhã o arfante rataplã dos nove cilindros americanos de mais de vinte anos. Eram bombardeiros porque a tropa assim os nomeava, talvez para os distinguir dos outros, que não levavam bombas. Esses eram mais frágeis, mais silenciosos, quando apareciam era para trazer correio ou comestíveis frescos, um raro passageiro, quando não era para levar um cidadão felizardo que se tomou de febres, ou algum acidentado. Os bombardeiros não. Ouviam-se à légua, e a agressividade do seu roncar, a silhueta mais corpulenta e os artilhanços que arrastavam pendurados nas asas mereciam a designação.
Para os aviadores eram uma excelente arma de arremesso, e havia quem lhes chamasse o 110. Subiam a 110 milhas, cruzavam a 110 milhas, picavam a 110 milhas, pouco mais. Era uma caricatura. Mas a robustez que mantinham aqueles aços, depois das atracações que já tinham suportado na mão de sucessivas gerações de candidatos a pilotos, garantia o esmagamento completo do que apanhassem pela frente.
(...)

sábado, 15 de outubro de 2011

Queres saber a melhor?!

Por mais extraordinário que te possa parecer, foi este o guardanapo que os portugueses escolheram para limpar as beiçolas!

Carpideiras de ofício

Será ladrar por ladrar. Mas só ladrando se entende a canzoada. E a questão é a seguinte.
Em lugar de se ocupar a sondar a realidade para poder fazer-lhe frente, o comité central prefere gastar o tempo a fac-similar livros antigos. Foi assim que decorou, e ainda sustenta, que um qualquer governo do PS, (na teoria, na prática, no sentimento, nas intenções e nos seus efeitos), é exactamente igual, se não pior, aos governos do PSD e seus acólitos. Os quais são feitos de aventureiros ou de predadores, de manobristas ou de parasitas, de demagogos ou gangsters. Em partes iguais misturam ignorância, decadência e gula. É a história que o diz.
Foi assim que o comité central estendeu, meses atrás, a passadeira vermelha ao governo que aí está. O que já seria uma vergonha, se antes não fosse o entrecho duma catástrofe trágica.
Quando a tempestade chega, como agora, o comité central ameaça motins. Lança granadas de pólvora seca contra as políticas de direita. Faz lembrar esgares de crocodilo, ou lamentos de carpideira de ofício.

Enquanto ainda

Enquanto persiste o Verão, e ainda saboreias uma mini, toma lá!

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Kapital para cães

Vivem às dúzias em prisões de arame, montadas num descampado, para fugir a vizinhanças. E são mal alimentados, para lhes acender nas tripas o mau instinto da presa.
Se acontece um viandante ali na vereda, não se queixam. Arremetem e exibem os caninos. E esperam que chegue o tempo das batidas, quando o dono os aluga aos caçadores. Só então lhes chega a liberdade.
O que estes donos mereciam bem eu sei. E não o digo. Mas um Das Kapital para cães, mesmo em vulgata aligeirada, já seria um bom começo.

O que sucede agora

Em lugar dos carvalhos e azinheiras, e outras espécies locais, os técnicos da Agricultura impõem a Riba-Côa exóticos cupressus. Não se compreende bem, já que são estranhos e canhestros, são sáfaros e maninhos. Mas garantem os projectos de floresta.
É como a amêndoa do Douro. A verdial, a casanova, a fura-saco, que fizeram as famas de Foz-Côa, vão sendo postas de lado, por causa da casca dura. Ganham as da casca mole, um refugo que vem da Califórnia.
Aventura por aventura, pena é que estes aventureiros não tenham em tempos embarcado todos na folia de Alcácer. Tinham ficado por lá e entravam também na história, sem ser o país forçado a pagar-lhes um resgate. Bem ao contrário do que sucede agora!

Caminhada

Ainda falta uma hora e parece logo ali.
Mas os calcâneos não cedem.

A um amigo da Madeira

Se ainda te faltavam decadentes, marginais, trogloditas e bandalhos, aqui os tens.
E são só pano de amostra, que isto anda tudo ligado!

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Prenda de casamento

- Maldita a hora e o dia em que te saltou da cama assim de madrugada, ó Reta! Bem melhor andaras tu…
Foi assim que falou uma sibila vizinha, quando chegou à Mata de Lobos a sentença do tribunal de Figueira. Que o cabo João Moutinho já nem às despedidas o deixaram vir.
O nevoeiro do rio foi o principal culpado. Os homens do contrabando passavam a Espanha rebanhos inteiros, de Poiares, dos Urros, de Ligares. E até de muito mais longe, no planalto. Desciam de madrugada a calçada de Alpajares, sempre com pastor à frente para manter iludidas as borregas e levá-las ao engano. Atrás vinham os passadores, uma tropa. Seguiam a ribeira do Mosteiro por veredas de há mil anos, amalhavam no escuro debaixo duns negrilhos logo que aparecia o Douro, o resto era trabalho do barqueiro. Era um rebuliço que durava a noite inteira.
Toda a gente o sabia em Barca de Alva, chegaram ordens do administrador do concelho, só restava à guarda armar-lhes a esparrela e dar-lhes as boas-vindas.
Haveria guardas locais de mãos untadas, quem o sabe?! E foi essa a má sorte do Moutinho, a quem veio a calhar descer da Mata à frente duma patrulha.
Maldita hora aquela! A barca abicava ali num varadouro, e os homens viram logo que os fariseus eram madrugadores. Já havia gado posto a bom recato debaixo das azinheiras. Mas quando a barca voltou, tudo foi precipitado. A patrulha soltou vozes de prisão na altura do desembarque. Inesperadamente um dos meliantes respondeu a tiro, tresmalhando os bichos todos pelo areal.
O ladrão do nevoeiro fez o resto. Num capricho da aragem a cerração aumentou, quando o Moutinho disparou a sarrasqueta foi o barqueiro a cair. Mal se pode imaginar ali a babilónia. E, bem ou mal, degredaram-no para Angola.
Meterem-no num porão ali na boca do Douro, numa manhã cinzenta, foi para a família toda uma calamidade. Mas a Maria Dolorosa Reta, com três ganapos na mão, tratou de engolir as lágrimas, farta ela de saber que a rodeira do destino anda para cima e para baixo. Enrijou-se nos costados e aguardou.
Quando em 1906 se pôs a caminho de Benguela para se juntar ao marido, também foi embarcar à foz do Douro. E levava pela mão a filha Laura, ainda uma criancita. Antes disso fez uma venda fantástica de quanto possuía em Riba-Côa. O mais eram courelas em S. Pedro, a dois passos da fortaleza de Almeida, já a fugir para Castela. Que a pena de João Moutinho não cobria a vida inteira, não era ainda a sentença da eternidade. Fosse amiga a padroeira, a Virgem dos Bons Sucessos, e um dia lhe voltariam à mão.
O Porfírio e o Laureano, ao tempo já espigadotes, lá tinham seguido a rota das aves de arribação. Custou-lhe os olhos da cara, mas lá foram. Desceram Castela abaixo, cruzaram a Estremadura, foram embarcar em Cádiz. O primeiro veio a finar-se no Congo, tomado dumas febres. O segundo deu à costa na Argentina, foi encontrar melhores ventos em Santa Rosa, Las Pampas, onde gozou vida longa.
Do outro lado do mar congraçou-se um dia Laura com Sebastião, funcionário da alfândega de Benguela. E se a comunhão de idades cauciona boas-venturas nos casamentos fidalgos, muito cedo se mostrou, neste correntio caso, que homem velho e mulher nova dão filhos até à cova. Bem depressa eram já três, e quem mais neles mandava era o compasso das luas. Mas não desandara ainda o alcatruz da fortuna. E não faltando motivos para se apelidar Benguela de cemitério dos brancos, um dia o homem morreu. Mal tinha vinte e seis anos e já Laura era viúva. E assim ficou, até ver.
Quinze anos cumpriu Moutinho a excomungada pena. Foi então a vez de Laura arrebanhar a família e tocá-la para S. Pedro, onde estavam à espera umas courelas. E trazia pela mão a filha Aida, ainda uma criancita. Será dela que eu um dia hei-de nascer, quando me chegar a vez.
Por enquanto ainda é cedo. Porque agora vai casar-se o Laureano com a Maria Schneider, em Santa Rosa, Las Pampas. Em breve se fará dona a rapariga, e bem precisada vem, que tem só dezasseis anos. Mas é bonita e fecunda, conforme se verá, dando-lhe o tempo. É um fruto exótico dos alemães do Volga, uns teutões que entram aqui na história porque a Grande Catarina os levou a desbravar as estepes do Cáspio, há-de haver duzentos anos. Mas os atalhos da vida tresmalharam-nos, e o mundo não era ainda a pequenez que é hoje. Lá foram parar à América, ao Brasil… no nosso caso às Pampas da Argentina, para o Laureano encontrar a cama feita.
Tão bem feita a cama estava, que nela fizeram ambos vinte e quatro filhos. E foi um neto deles a surpreender-me há tempos, embuçado nas névoas da Internet. Andava ele à procura de inculcas de S. Pedro.
Um bisneto do Moutinho, fruto cruzado da Mata de Lobos e das estepes do Volga, que o ladrão dum nevoeiro no Douro juntou em hora aziaga! Um dia destes, nas neblinas da Irlanda, vai ele casar-se em Belfast.
Já comprei um fato novo. E guardo ali, no saco de viagem, a prenda de casamento.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Tão difícil

Só o amor (que vive de milagres), e a arte (hoje aí na mão de proxenetas), justificam a vida.
Outras coisas há que a alimentarão (como o dinheiro), ou a facilitam (como a ignorância).
Mas todas juntas não a justificam.
Por isso anda ela tão difícil.

Lá chegaremos!

A contemporaneidade é um motim: político, financeiro, económico, energético, filosófico, estético, social, ético, ambiental. O motim é só um e é global.
Raramente, como hoje, foi tão espinhoso entender o mundo e viver nele.
O único remédio é transitar para outra forma de civilização que ninguém sabe qual é. Um dia lá chegaremos.

Isto anda tudo ligado (3)


Não basta fotografar um púbis feminino, rabiscar-lhe por baixo o nome do artista, e despejá-lo no saco das artes plásticas, para termos à nossa frente um objecto estético, um fruto da criatividade.
Não basta riscar uns hieroglifos em quinze metros quadrados de papel costaneira, rubricá-los por um qualquer Sarmento, e vendê-los à colecção da FLAD que os colará no betão da parede dum museu, como formas de expressão artística.
Não basta encher um triciclo de carga com santinhas de Fátima fosforescentes, impingi-lo aos olheiros do comendador Berardo, e chamar-lhe arte contemporânea.
Não basta juntar um triângulo de pedras, ao lado dum quadrado de pedras, ao lado dum círculo de pedras, dizer que são obra dum criativo inglês, e estendê-los numa sala da Casa de Serralves, para edificação estética de novos públicos.
Não basta erguer um manipanso com fardos de palha, com tubos de plástico, ou com varas de salgueiro, chamar-lhe instalação e servi-la ao natural.
Não basta isto, nem aquilo, para eliminar a condição de farsante. Mas não se pode dizê-lo em voz alta, porque não rende e é perigoso. Por considerandos de estatuto, ou de carreira, ou de simples direito ao trabalho.

Parabéns, pá!

Estamos de parabéns, tu e eu!
A nossa NATO, incansável a proteger o povo líbio, não se poupa aos grandes sacrifícios que os bons princípios exigem. Despeja bombas inteligentes, guiadas a laser, sobre os hospitais.
Há criancinhas torradas, já são mais de mil. Mas é tão consolador discerni-las no ecran, enquanto vamos jantando o frango de churrasco!

domingo, 9 de outubro de 2011

Isto anda tudo ligado (2)


Ripostando a uma catilinária de Pacheco Pereira, sobre um certo regabofe parasitário em que se movem os produtores das artes contemporâneas, disse António Pinto Ribeiro, ensaísta e programador cultural, no PÚBLICO de 13AGO:

«O dr. José Pacheco Pereira estranha que se conceba e realize um espectáculo para cinco pessoas. Há espectáculos para cinco, para um, para dez, ou para centenas de espectadores, e não é pela quantidade de público que se determina a sua qualidade (...).»
[Por simples contraste, isso já as audiências da TVI nos tinham demonstrado. Era agora altura de explicar o que é que determina realmente a qualidade do espectáculo!]

«O dr. JPP deveria saber que a arte exige um pensamento sofisticado, e que, a pronunciar-se sobre ela, deveria ter estudado, visto, investigado».
[Pensamento sofisticado?! Duma elite ilustrada? Duma seita arrogante e autista?]

«Há alguns (artistas portugueses) muito pouco interessantes, e há obras que muitas vezes nos levam a lamentar o tempo passado a contemplá-las».
[E sobre a diferença que define essa perda de tempo, e aquilo que o não é, ficamos eternamente em branco?]

«(Os artistas portugueses) deveriam saber escrever bom português (...) mas não é isso que se espera deles: espera-se mais, espera-se que sejam capazes de transmitir a singularidade da sua obra, e para isso há especialistas que o fazem e bem... mas custa dinheiro. E portanto são eles (próprios) que o fazem (...)».
[Então e a obra não fala por si? Não tem vida e existência própria? Precisa da voz dum demiurgo, dum especialista que a explique? Que a justifique? Será que ela não existe? Ou é o público destinatário que não tem um pensamento suficientemente sofisticado para lhe captar a singularidade?]

«(O dr. JPP) deveria admitir a sua enorme ignorância em muitas matérias, e em arte em especial, e então talvez começar por estudar, ler, e voltar a estudar (...)».
[A seita da criação contemporânea bebe do fino. Não se chega lá com um copo na taberna, se é isso que estavam a pensar.]

"Uma escuridão que não levanta"

(...)
«As notícias sobre a Grécia matam a Grécia, os alemães ajudaram a matar a Grécia. Como querem que um devedor pague a dívida depois de estar morto? Quando nos emprestaram dinheiro ninguém quis saber se o íamos pagar. Ninguém. Toda a gente fingiu que não viu o que se estava a passar, a corrupção, os partidos a contratar as clientelas, as contas aldrabadas. Vir dizer que foram apanhados de surpresa, os devedores, é uma colossal mentira. Os gregos sabiam, os bancos sabiam, toda a gente sabia, e toda a gente ganhava dinheiro à custa disso. Esperar que um povo se reforme de um dia para o outro é um erro. Tempo é do que precisamos mais, e ninguém nos dá». E o pior de tudo? O que é que a crise faz às pessoas? «O pior é a tristeza. Depois da indignação e da raiva desce a tristeza. Em Atenas a tristeza é uma coisa espessa, uma escuridão que não levanta. As famílias zangam-se, os casais separam-se, os amigos desconversam, a existência torna-se impossível quando nada funciona, quando não há dinheiro. Atenas vive em estado de terror e protesto. Era uma cidade alegre, é uma cidade desavinda. É como se a vida tivesse sido sugada das ruas e as ruas servem para a batalha campal. Pessoas que viviam bem agora contam os tostões para comer amanhã. As pessoas estão a perder as casas, a comida, as escolas dos filhos. Nem a emigração nos ajuda, porque ser-se grego nos tempos que correm é uma maldição. O grego tornou-se a escória da humanidade, o símbolo de tudo o que está errado como mundo financeiro e a Europa. Ninguém nos quer, só querem as nossas ilhas e a posição no Mediterrâneo. E cresce o sentimento antialemão. Coisas do tempo da guerra vêm ao de cima, rancores, ódios, vinganças. Nunca mais vamos recuperar dos danos morais desta crise. Nunca. Uma parte de nós já morreu. Estamos num comboio descontrolado. A Grécia era a última estação. Já passámos».
(Clara Ferreira Alves, in PÚBLICA, hoje)

Iconostase

Nesse tempo havia crenças, havia o santo dos santos, havia esperanças balsâmicas.
Não teriam fundamento. Mas alguma fé o tem?!
Hoje resta a razão pura.
E ainda bem.

Isto anda tudo ligado (1)

Os recitais de vanguarda, com que a Antena 2 nos brinda a horas mortas, martelam horas a fio e podiam durar a eternidade. Seguem muito bem o ar do tempo.
A estética complexa, que os insufla e lhes dá forma, é feita de lamentos do camelo que perdeu a caravana, de risadas histéricas de hiena, do choro de cabritos desmamados, das estridências de cordas amotinadas, dos trinados de castrato que baralhou as pautas, dos uivos dum lobo à lua, do troar das cachoeiras no inverno, dos silvos de serpente enfurecida, do protesto de bichos no açougue, do tropear das cargas de cavalaria, da explosão dos cabos de aço que ultrapassam a tensão, do arrotar dum bêbado descomposto, do caos das discussões dos ciganos, do esbracejar de orquestras sem maestro, do rumorejo das folhas numa brisa, das ressonâncias de órgãos esquizofrénicos ou tímbales que enlouqueceram.
Seguem muito bem o ar do tempo. E mal por mal eu prefiro as estéticas do outro, que batutou quatro minutos de silêncio, até jorrarem aplausos do deslumbrado auditório.

sábado, 8 de outubro de 2011

Pigas

Por ser dono deste espírito assim desassossegado é que o Tó acorda cedo. Hoje em dia, que já goza da reforma, bem podia ficar até mais tarde, abandonado ao choco dos lençóis. Mas não senhor! Ainda a manhã passeia por Castela e já ele vai charneca fora, à sua caminhada.
Um tal génio de galo madrugador vem-lhe desde a meninice, no tempo em que se criou numa ninhada de nove. E à medida que a vida passou por ele não fez senão agravar-se. Anos e anos andou atrás das ovelhas, era o pastor da família desde que saiu da escola. E quando se enfastiou dos recantos da charneca, e dos segredos que há nela, passou a trazer livros no alforge. Emprestavam-lhos no enxido, todas as quintas-feiras, na carrinha itinerante. Leu tantos livros de histórias, de aventuras e de reis, que até se esqueceu de alguns. Mas outros houve que lhe ficaram gravados.
Quando fez dezoito anos foi para o colégio da vila, por teimosias do padre. E num ano fez logo os primeiros dois, duma simples assentada. No segundo fez as Ciências do quinto, segundo a fórmula antiga.
Um dia partiu para França, queria desbravar o mundo. E viveu por lá um ano, a plantar árvores ao longo de auto-estradas.
Quando a pátria lhe sentiu a falta, e o chamou para as inspecções da tropa, assentou praça nas Caldas da Rainha. E seria, em Luanda, o primeiro classificado no curso de comandos, num regimento famoso que lá havia. Depressa o despacharam para Montepuez, para proteger dos macondes o distrito de Cabo Delgado.
Um dia deixou abandonada uma lata de sardinhas na picada e foi expulso. Era uma traição ao grupo. Passou à tropa macaca, mandaram-no a defender as obras duma barragem que andavam a construir numa garganta dum rio.
Passou, enfim, à peluda, quando a revolução chegou. E uma vez que regressara à aldeia, e deixara de passar a carrinha itinerante, voltou outra vez à vila. A ver se apanhava as Letras que tinham ficado atrás.
Assim foi cabo da guarda-fiscal, até que um dia lhe pediram cem contos para concorrer a sargento. Lá foi parar a Cacilhas, integrado na GNR. E já era graduado quando chegou a reforma, esta em que agora se encontra.
Tinha um filho, já crescido, um dia divorciou-se, voltou à aldeia outra vez. E há quem diga que era o dele, este espírito assim desassossegado que o faz acordar tão cedo. Mas não é de ir na conversa.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Ai dos simples!

A confusão que reina pelas cabeças de certos achadores de talentos literários só é ultrapassada pela cegueira contentinha que desgoverna as cabecitas dos achados talentos.

Na impossibilidade de obter um link, e num arriscado exercício de salvamento da Literatura, transcreve-se o crítico António Guerreiro, no último ATUAL:

"Sigamos Walter Hugo Mãe, se quisermos ver em funcionamento, sem hesitações nem alibis, a máquina de destruir escritores. A engrenagem subiu ao palco, sob a forma de tragicomédia, no festival de Paraty, de onde saiu uma personagem grotesca que se oferece em espectáculo numa representação de cabaré, amplificada por aplausos emocionados de espectadores que gostam do teatro das emoções, e acham que um escritor é tanto melhor quanto mais escreve como respira, isto é, como mente. (...)
Finalmente, a grande engenhoca do lançamento, para a qual se convocou o mais respeitável construtor da nossa democracia para a tarefa da mobilização nacional em torno do escritor, coroou este percurso pelo qual um romance passa a ter um destino extraliterário. (...)
Terminada a festa da destruição do escritor, fica o objecto desamparado do romance, no meio dos destroços. Quem, por dever de ofício, por curiosidade ou porque não se pode subtrair à 'atualidade', assistiu aos actos preparatórios da implosão, só tem um desejo, que, a cumprir-se, proporcionaria o júbilo pérfido da vingança: que o romance se erga acima do seu autor, apesar dele, ignorando os seus desvarios e as engenhocas promocionais de destruir escritores.
Infelizmente o desejo não se cumpre, o júbilo perverso fica adiado e o dito romance, tão patético como a engrenagem destrutiva que preparou o seu aparecimento, faz-nos passar por aquela experiência muito embaraçosa de sentir a vergonha que caberia ao outro. Nem um deus, quanto mais um filho, o pode salvar".

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Angelina

Angelina tem 73 anos e vive em Dine, que é o lugar onde nasceu. É uma aldeia com fornos de cal abandonados há muito. E fica para lá do derradeiro monte que limita os fins do mundo. Chega-se lá depois de passar muitas encruzilhadas, e é um lugar tão bonito que nem apetece deixá-lo. É aqui que Angelina vive, com uma cadela que se chama Luna. Ouve uma pessoa um nome assim e põe-se logo a fazer perguntas ao instinto.
A seu tempo foi Angelina mãe solteira, duma filha que vive na cidade. Trabalha no comércio, a rapariga, e Angelina está toda contente. Gosta mais de a ver longe neste ofício, do que perto a labutar no campo. Isto ressalvando a tristeza comum de ambas se encontrarem só de horas em quando. Mas um dia há-de-lhe dar uma netinha.
Angelina vive perto da fontana, ao lado duma represa que também serve de tanque de lavar. E, quando chega o Natal, faz todos os anos um presépio ali no jardinzito, para animação do povo. A casa fica além, debaixo da parreira, e vivem hoje nela a dona e a cadela, conforme antigamente lá viviam a filha e a mãe já velha. Sempre que voltava a casa, Angelina punha-se a fingir a voz duma vizinha, às punhaladas na porta com recados urgentes, para lhe fazer picardia.
– Oh que assim és tontinha, minha filha! - E riam ambas no fim.
Ao contrário do resto da aldeia Angelina não anda de preto, porque não é viúva. E por sobre ser uma mulher alegre, tem um espírito aberto, dado e solto. O melhor será chamar-lhe livre, porque o é. Ninguém lho amansou, que é o que sucede as mais das vezes, quando passa por cima das mulheres o rolo compressor da conjugalidade. Não é provável que Angelina tenha consciência disso. E foi com um largo sorriso que nos convidou para almoçar, um frango caseiro que já lá tinha ao lume.
À despedida ofereceu-nos um tantinho de nozes e castanhas. E confessou que, por esse mundo além, só lhe agradava ver a árvore de Natal numa praça do Porto. Disseram na televisão que não há outra maior, e ela acredita.