sábado, 5 de novembro de 2011

Palavra de brigadeiro (2)

(...)
Ela chegou perto de mim, trouxe-me às narinas uma nuvem subtil de Cabochard. E eu senti-a tão perto que levei, por instinto, a mão aos olhos, a proteger os esfregões de palha-de-aço que me ocultavam as órbitas.
Cresciam-me as sobrancelhas, pensava eu, enleadas nas cordas dos pontos que sentia arrepanharem-me as pálpebras. Picavam-me, por vezes, do suor, e eu deliciava-me a sentir vivos também os olhos, onde se concentrara enfim o aguilhão do medo, a aflição da cegueira. Traziam-me os soldados no jipe da tropa, picada fora, desajeitados e inseguros como um tio solteirão a quem caiu nas mãos um sobrinho acabado de nascer. Tratavam-me com a solicitude aflita que se dispensa aos casos perdidos, e ter-se-iam estendido no chão, para eu lhes dançar sobre as barrigas. Não eram homens para recusar um último desejo a um qualquer. Um deles empinou-se à frente do jipe, encavalitado sobre mim. Com o dorso ia varrendo as pontas do capim alto que vinham afligir-me a bola de sangue da cara, abandonada no encosto do lugar do morto.
Depois, no quartel, a morfina. Subtil primeiro, em torrentes depois, a euforia da ressurreição. As minhas pernas vivas, os braços a saltar sobre a maca rasteira, a consciência clara e agitada de poder mexer-me, se quisesse.
Não sei onde se me gravou tudo, nem com que olhos acompanhei o que se passou naquelas horas. Sei apenas que o vivi, que alguma parte obscura de mim o sentiu e o guardou. Sei que pisei o limiar onde se está dum lado morto e doutro vivo. E senti o animal de mim inebriado com a redescoberta da vida. Soltei anátemas de fúria contra as hierarquias, os comandantes, os galões, as guerras e as pátrias. Exigi ao brigadeiro a palavra de honra que não ia perder os olhos. Ele deu-ma, e mandou buscar uma camisa verde que lá tinha, passada a ferro, para me vestir.
Mas não tinha voltado ainda a ver a luz do dia. Os olhos eram o centro de mim, e eu tapei-os quando ela chegou. Senti-lhe a mão pousar de leve sobre a minha, tão leve como se ela pudesse viver a minha aflição de cego.
- Mas a ti não te tinha visto ainda! Há quanto tempo estás aqui? Conta-me lá a tua história!
Vi-me transformado num canhão no estaleiro. Eu não era eu, era uma peça do cenário, era um banquinho para as verdadeiras personagens. A intimidade forçada deste contacto fez-me lembrar que eu teria, espetado no alto da carantonha de pau, o ferro de manejo dos bonecos de Santo Aleixo.
Voltei para ela os tubos entrapados das pupilas. A língua pulou-me da garganta como se tivesse deixado de ser minha, como se por trás do seu contorcionismo verbal já não estivesse eu, nem o meu cérebro amarrado nas ligaduras do respeito pelas instituições, afeito ao molde das hierarquias. Senti-me dar um passo para a frente sem o ter sequer imaginado. Fiquei a ouvir-me falar.
(...)