sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

As cadelas apressadas...

... ou de como anda cheio o inferno, de excelentes intenções!

Em 1995, ao sentir-se defraudado pela inépcia novo-rica dos governos cavaquistas, Portugal elegeu o primeiro-ministro mais culto, mais humanista e mais cosmopolita que já teve. António Guterres tomou conta do cargo, encheu o peito de ar e de voluntarismo, e tomou duas medidas arrojadas: suspendeu as portagens na CREL, e mandou parar as obras da barragem do Côa. Para salvar uns cavalinhos que não sabiam nadar.
Das portagens conta a história, porém os cavalinhos lá ficaram. E projectou-se um museu (ninguém sabe bem de quê!), a construir numa escarpa que sobrou ali na encosta.
Afinal foram fazê-lo numa colina altaneira, a dominar a paisagem. Cá de longe faz lembrar o palácio dum sultão, só Deus sabe as maravilhas, e os tesouros, e os mistérios que resguarda. Um dia havemos de ver!
O resto para ali ficou, trocado por 20 milhões. Colinas escalavradas...

... desaterros... escombreiras...

... rasgões na terra... pedreiras...

... boqueirões... escandaleiras...

destruições... carreteiras...

... conforme ao habitual. E das gravuras pouco mais se ouviu falar.
Que bom é ser cavalinho em Portugal!

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Portugalmente (28)

(...)
Do alto do Marvão avista-se, para leste, uma coluna de fumo a crescer no céu quente. E quente é um modo de dizer, porque este sol parece fogo. Mas o viajante pela-se por uma boa paisagem, como já confessou. Não quer desperdiçar a ocasião de subir a uns fraguedos que além estão, e saborear o amplo panorama. Aventura-se a pé por uma rodeira que vai para os altos do Cadouço, e para as lonjuras do Vale dos Lobos que aparecem no mapa, disposto a pôr-se à prova.
A carreteira atravessa um vasto plaino, onde começa a juntar águas o tão falado rio de mel, conforme Salvador explicou. Mas o olhar do viajante já perdeu a inocência original, e a disposição estranha do terreno começa a chamar-lhe a atenção. Apesar desta canícula, a fazer lembrar os portais do inferno, mete-se a corta-mato e vai investigar. O solo está rasgado por valas profundas, parece que andou aqui a lavrar um arado gigantesco, que deixou sulcos de um metro de fundura. E foi arada de máquinas potentes, porque arrastaram pesados pedregulhos, destruíram lenteiros do monte, e revolveram cabeços bravios. Além disso há-de ser um trabalho antigo, que muitas valas já estão outra vez arrasadas pelo tempo. O mato e o capim cobriram o plaino inteiro, e o viajante vai andando ao acaso, sem entender que labutas de Hércules houve aqui.
Por fim, após tropeçar no primeiro, tropeça o viajante num segundo. Não se pode chamar a isto castanheiros, pois não passam de arbustos minúsculos, que alguém um dia deixou enforcados no cimo dos camalhões. Sobreviveram aqui por milagre três folhas afogadas no mato, que não durarão muito. E são o que resta dum projecto de florestação a fundo perdido, que se estendeu aqui por dezenas de hectares. Primeiro o viajante não resiste ao espanto, depois abandona-se a um azedume impotente. E não ficará surpreendido, se um dia alguém vier a ter de pagar tudo isto com língua de palmo.
Para lá do horizonte, a coluna de fumo vai tomando a forma dum cogumelo de Hiroshima. O fogo é lá para a terra quente, parece na Cogula, talvez nas Ervas Tenras, o viajante não sabe distinguir. Mesmo do cimo destes fraguedos, onde grimpou a suar em bica. No céu alto, abandonado aos caprichos da brisa, um gavião volteia em círculos, não há mais movimentos na vastidão do mundo.
Depois de consultar novamente os seus mapas, o viajante decide acompanhar a carreteira e subir monte acima. Lá no alto encontra um pastor, que tem um chão aqui, entre a terra e o céu, e onde umas cabras malhadas andam a tasquinhar numa seara de milho. Algumas empinam-se aos ramos duns castanheiros, ainda juvenis, ou cabras não fossem elas. Porém o cabreiro tem voz dura e fácil o praguejar, e a calhoada certeira em sendo necessário, como agora se viu. Ao ver aproximar-se o viajante, romeiro ainda mais perdido que o outro de Rio de Mel, Manuel cabreiro sai-lhe ao caminho.
- Ia recolher as cabras, que não se agradam deste sol. Mas vi-o vir lá ao fundo e fiquei-me a esperar. A que anda por aqui?
- A ver o Vale dos Lobos, pois a quê! Há mais que ver?
Numa serra encontram-se dois homens, não há vivalma em léguas ao redor. Aos poucos se conhecem e dão a conhecer, o mais certo é acabarem a repartir a merenda que houver. Aqui vai para o viajante a vantagem maior, que é um frei João-Sem-Cuidados e saiu de casa sem farnel. Consola-se no pão e no queijo de Manuel, e mais ainda no vinho duma borracha espanhola. Todo o segredo está em acertar com o esguicho nos lábios, não é qualquer um que o faz à primeira. Quanto ao resto, nunca houve colheita melhor.
Manuel vende cabritos, quando os há, e do leite que sobra das mamadas faz a mulher uns queijos. O resto pouco é, e lá vai para a fábrica, misturado com o das duas vacas que lá tem. Agora a mulher teve uma trombose, o queijo vai-se acabar, e Manuel não tem outro remédio senão vender as cabras a alguém que as ature. Mão singela pouco alcança, como é sabido, e um rebanho, mesmo pequeno, é coisa muito cativa. Talvez arranje outra vaca, mais pelo subsídio do que por outra coisa, que o preço do leite não vale nem um chavelho.
- Anda um homem para aqui como os parvos...
Estes relatos de vidas precárias deixam sempre o viajante apoquentado e sem palavras. Põe-se a observar umas melancias redondas, que andam espalhadas pelo campo em grande quantidade. Num chão tão seco e desgarrado, só podem ser frutos da terra santa, parecem um milagre.
- São botelhas francesas! Passa-lhe um homem um cilindro da estrada por cima e não dá conta delas! Lá em casa rebento-as à machadada, só assim as vacas lhe metem o dente!
O viajante traz à conversa a fumarada que tomou conta do céu, e Manuel cabreiro não perde o seu tempo em considerações.
- Era só prender os culpados no meio do fogo e deixá-los a esturricar. Havíamos de ver se isto acabava ou não.
Acaba, não acaba, o viajante não tem tanta certeza. E menos ainda parecem ter as cabras, que já se interrogam, num desassossego. Manuel cabreiro põe-nas a caminho de casa, que este sol é malsão, maré de lhes secar os tetos. Também já não há quem faça o queijo, pensa o viajante, mas guarda o pensamento. Fica sozinho no meio da serra agreste, e uma tão desamparada solidão só podia chamar-se Vale dos Lobos. O viajante reconhece ao longe o teso dos Moragos, onde Manuel disse que vão instalar uns moinhos de vento, alveja além o depósito das águas municipais, na Cabeça do Lagar. Em tempos haveria por aqui invernos frios, e pinhais, e nevões prolongados, não admira que os lobos saíssem aos caminhos, se era este o vale deles. Agora o viajante passeia o olhar pelas vertentes ermas que descem para a Castanheira, que é para onde as cabras vão, e lava as vistas no lençol da barragem da Teja, estendido ali aos pés do castro de Casteição. Desde os cabeços da quinta do Rovisco, e do Outeiro Furado, passando por todo o altiplano das Terras Grandes, até chegar às colinas da quinta do Forcas, já às portas de Trancoso, todo o horizonte ao alcance da vista é um páramo de matos e ervedos ressequidos. Nalgum tempo era esta paisagem uma vastidão de matas e campos de cultivo, os mais deles em sortes baldias que a junta arrematava, como disse o cabreiro. As colheitas eram magras como os solos, mas amenizavam o mundo e faziam parte da vida dos bichos e das gentes. Assim deixada a paisagem ao abandono, e dizimada pelos fogos, ficou esta imagem dum deserto, pontuada de esqueletos de troncos calcinados, um reino de penedias de aspereza selvagem, onde não resta uma árvore e só lagartos condenados habitam.
O viajante, que não vinha à procura do paraíso, sabe muito bem que estas terras não vêm nos mapas do mundo e já o disse. São em demasia agrestes e frugais, são sáfaras e madrastas. Mas grande parte do país é igual, e no pouco vê-se o muito. Ora este pouco é, para o viajante, mais do que suficiente. Passadas décadas de emigração para a Europa, e de fundos que da Europa vieram, nem cem anos de projectos a fundo perdido darão vida a esta solidão, nem salvarão este abandono.
(...)

da capo - 26

HOMENAGEM
A Thomas Ehrling, operário no Lausitz, ao tempo em que os havia!

O homem está sentado debaixo da macieira que dá maçãs vermelhas, no pequeno quintal. Vagueiam-lhe os olhos, silenciosos, na paisagem breve, a terra é plana e o bosque de bétulas fecha logo ali o horizonte, atrás dele só a pesada silhueta da fábrica de briquetes. As últimas folhas do outono passam levadas na frialdade da brisa, por isso o homem tem este ar arrepiado na face, e tem húmidos os olhos inquietos. Não sabemos decifrar-lhe a expressão nem contar-lhe os anos do rosto, vemos é que tem na fronte rugas pronunciadas, há-de ser a gravidade do momento que as torna mais fundas.
Hoje não foi trabalhar, nem sequer se aproximou do portão da fábrica. Rebelaram-se nele rotinas muito antigas mas ficou aqui, debaixo da macieira que dá maçãs vermelhas, os olhos incapazes de furar para lá das bétulas, incapazes de passar além da silhueta da fábrica velha, onde a altíssima chaminé deixou de fumegar.
Divagam-lhe no ar frio recordações distantes, neste céu que subitamente ficou vazio. Ele sabe, por ouvir contar, que há muitos anos reinava aqui uma grande quietude plácida e verde, com bosques de abetos, e faias, e carvalhos, vinham os homens com lanças e dardos e corriam atrás dos gamos que se aventuravam nos prados. Então eram os rios claros e bucólicos, desciam das montanhas distantes e passavam tranquilamente, e traziam nas águas peixes prateados que os homens apresavam em armadilhas de cana, nas margens baixas. Para lá da floresta semeava-se o trigo com arados antigos, e nas hortas, por trás das casas de madeira, as galinhas guardavam os filhos das ameaças do gavião, abrigadas aos caules de ruibarbo e de funcho.
Um dia, quando as cidades começaram a crescer e a vida dos homens apareceu com exigências novas, um artesão que passava no antigo vale glaciar encontrou sinais de minério de ferro à superfície. E não demorou a chegar o inferno vivo dos regatos de gusa a arder nas fundições, e a fumarada dos altos-fornos, e o cantar matutino do martelo no ferro quente das forjas. Encontraram-se na orla da floresta depósitos de linhite, e logo se rasgou a barriga da terra para os explorar. E construíram-se fábricas para albergar as máquinas de volantes aterradores, que engoliam o carvão e vomitavam pequenos briquetes negros, logo levados por vagões apressados a incendiar as caldeiras das máquinas a vapor. E surgiram na paisagem, riscando o céu e perturbando os deuses que habitavam nos bosques, grossos cabos negros que levavam para longe uma energia nova e misteriosa.
Os homens dormiram cansados mas contentes, por acreditarem no progresso. E a terra foi-se cobrindo desta poeirada escura, gerada no ventre das fábricas, tão fina e tão subtil como areia de ampulhetas, a marcar a galopada frenética das máquinas.
O homem olha, em sua volta, o manto negro, regurgitado pelas chaminés ao longo de séculos, dispersado pelo vento sobre as terras e os caminhos, sobre os jardins e os telhados das casas, e as sepulturas dos mortos. Debaixo deste manto viveram gerações que produziram riquezas, modelaram o mundo e alargaram o saber dos homens. Nesta mesma fábrica trabalhou o seu pai, logo a seguir à guerra. Foi uma canseira pôr tudo a funcionar depois de tanta destruição, contava ele. Mas havia os direitos da vida depois de tanta morte, faziam falta o calor e a energia que as cidades engolem para serem habitáveis, à custa de privações e sacrifícios a vida recompôs-se e a produção recomeçou a sair.
Mais tarde chegou a sua vez, o homem entrou na fábrica e nunca trabalhou noutro lugar. Moldaram-se-lhe os gestos ao ranger das gruas, ao matraquear incessante das válvulas, e acabou por lhe adoptar o corpo a respiração das velhas máquinas, devorando o carvão que chegava em vagões cobertos de fuligem. De dia ou de noite a sua própria cara era tão escura e cheia de majestade como a das locomotivas que vinham da mina a céu aberto, a galopar na paisagem violentada.
Habituado a cumprir metas de produção, planos quinquenais, emulações proletárias, o homem construiu a sua vida ao compasso infatigável da fábrica. E era para ele um orgulho e uma esperança ver chegar, dia a dia, os camiões que vinham da fronteira, de cidades e países distantes, e faziam fila à espera dos briquetes que deslizavam nos tapetes rolantes.
Mas quem poderá desvendar os caprichos da roda do mundo, ou do interesse dos poderosos? Um dia a fábrica parou e todas as chaminés da paisagem deixaram de fumegar, como coisas inúteis. E o trabalho deste homem é agora arrancar dos alicerces aquilo tudo que foi a sua vida. Deixaram de ter préstimo, ele e as velhas chaminés, foi o que lhe disseram.
Tudo perdeu, de repente, o sentido, por isso o homem ficou aqui sentado, todo o dia, no pequeno quintal. Amanhã há-de ir de novo à fábrica, vencerá o desespero que lhe treme nas mãos, e desmontará, peça a peça, as máquinas antigas, encharcadas em óleo, como quem se desmonta a si próprio. Depois há-de vir o camartelo encarregar-se do resto. E ele talvez receba uma pensão para deixar de viver.
No céu cinzento, por trás da espessura das nuvens, o velho Cronos, o ancião barbudo, vai devorando pacientemente os filhos. E espreita, quem sabe, as maçãs vermelhas que pendem dos ramos, indiferentes ao chuviscar do Outono. São carnudas e frias.

Castelos no ar

Rica ou pobre, plebeia ou senhorial, a casa antiga era uma síntese de formas e materiais integrados num ambiente.
A construção moderna rompe essa característica, sem introduzir um padrão novo. Cada um faz o que quer, onde melhor lhe parece.
É destruir construindo, modo novo de viver.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Intoxicação

Primeiro há os factos e as peripécias do mundo. A seguir a nossa busca de informação sobre eles. Depois vêm as notícias, a produção e a venda delas. Mas, não fossem os acontecimentos já tóxicos bastante, a prática dos media aumenta a intoxicação.
No jornal de hoje, e a esse propósito, Mário Vieira de Carvalho publica um texto exemplar, de exactidão e clareza. Transcreve-se, com vénia.

Jornalismo de casino
"Velocidade de desvalorização": o motor da economia neoliberal. Passar rapidamente de um design para outro, de uma função para uma pluralidade de funções, de um factor de competitividade para uma multiplicidade de factores. A corrida permanente à inovação. Uma corrida sem fim por quotas de mercado: produto velho, empresa falida. Era preciso ultrapassar a velocidade de desvalorização dos produtos e dos serviços. Mas, quanto mais se inovava, mais veloz era a desvalorização do já conhecido. E mais veloz a necessidade de inovação, para sobreviver na corrida. (...)
O pior é que o tempo da economia não marcava o tempo dos relógios normais. Era um tempo exponencialmente acelerado. Os ponteiros andavam sempre mais depressa. A fasquia da velocidade subia sem parar, na vertigem de mais ganhos, em menos tempo, e com menor esforço. A urgência de lucro dos investidores revelava-se insaciável. Nada parecia bastante, e suficientemente rápido, para satisfazer a "ganância" - como vários líderes políticos lhe chamaram: nem mesmo deslocalizar empresas, espoliar o terceiro mundo de matérias-primas, ou acumular mais-valias à custa de salários de fome e trabalho infantil.
Em pleno delírio, a febre inovadora estendeu-se aos títulos de crédito e a outros produtos financeiros. Alguém se lembrou de transformar hipotecas em títulos. (...) O resultado desse "capitalismo de casino" está à vista: o caos na economia mundial, uma crise nunca vista.
Mas, na ideologia neoliberal, a "velocidade de desvalorização" não poupa nada nem ninguém. A comunicação social também não lhe escapa. É preciso competir sem cessar pelas quotas de audiência nas televisões e pelas tiragens na imprensa - senão lá vão as receitas de publicidade, a sustentabilidade das empresas e o emprego. Há que inventar novas histórias - sobretudo daquelas que podem ter uma sequência de telenovela, com pormenores picantes e sórdidos - para vender mais. (...)
Com a tendência da imprensa, não só para o formato tablóide mas também para o estilo tablóide (...) o material de telenovela torna-se uma questão de sobrevivência.
O Estado de Direito inventou as leis processuais para se produzir prova. Mas a comunicação social não larga o osso dos linchamentos públicos. Não é jornalismo de investigação. É jornalismo de casino. Na corrida contra a "velocidade de desvalorização", joga tudo, ou quase tudo, em "produtos tóxicos"... até que, no país, não reste pedra sobre pedra.
Professor universitário

sábado, 21 de fevereiro de 2009

da capo - 25

MADONA EM MAUSOLÉU
Na estrada a tabuleta anuncia o Solar dos Brasis, na aldeia chamam-lhe a Casa das Fidalgas. Não sei quem tem razão. Eu fui lá muitas vezes, atraído pela gala das talhas, pela febre das cores a gritar nas madeiras, e a simetria misteriosa das janelas, a fingir horizontes pintados nas paredes. E acabei feito pagão, morto de amores por uma pujante madona de terracota, que escondia promessas carnais num manto azul a esvoaçar. Cheguei a congeminar o caviloso plano de raptar a madona numa noite de inverno.
Nesse tempo era vivo o Gastão, um caseiro que habitava os anexos e olhava pelo conjunto. Fazia bonecos de madeira a canivete, e flautas de cana que vendia aos passantes. Era naquilo tudo a única coisa viva, e queixava-se do IPPAR, e das águas no telhado, dos roubos das imagens e da segurança escassa. Levava-me às palmeiras do passal, à mãe-de-água de pedra à beira do ribeiro, numas terras que o fidalgo arrematou, à vinda do Brasil. Tinham sido confiscadas a um marrano qualquer, pela Santa Inquisição.
Subíamos depois ao belvedere e mostrava-me o salão de honra, nos altos do torreão. Pendiam do tecto caixotões de santos, a ameaçar ruína, alguns a desabar por causa das humidades. Finalmente levava-me à capela, onde a santa, à minha frente, se desfraldava num pedestal.
Depois contava-me a história. Que D. Luís se foi ao Brasil, ao ouro, no tempo dele. Que era capitão da armada real, e provedor dos quintos de el-rei em Vila Rica de Ouro Preto, nas minas de Sabará.
- O muito e o pouco passava-lhe pela mão! Era de el-rei, mas quem parte e reparte... - sugeria o Gastão, sem avançar.
- D. Luís tinha em casa uma escrava da Mina, por quem se apaixonou. E trouxe, no regresso a Lisboa, a mulatinha Angélica, que vemos nestes quadros. "Mercê que fez Nossa Senhora, no Instituidor, vendo-se em perigo de morte no sertão do Brasil, em jornada de 900 légoas às Minas do Ouro". E lá estava um dragão pintalgado, a soprar fogo ao fidalgo em terror. "Milagre que fez Nosso Senhor... no mar da Bahía...". E era um barco a adornar, a vela já perdida, o fidalgo no convés a amparar a mulatinha.
- D. Luís era de Santa Marta de Penaguião. E ao ver-se em aflição, prometeu erguer à Senhora da Penha de França esta capela. Ao lado do solar, e dum convento franciscano que não chegou a existir. Onde o meu cavalo parar, aí o santuário hei-de levantar! O cavalo é que escolheu este lugar! - concluía o Gastão.
E mostrava-me, num livro dum letrado, que o fidalgo tomara ordens sacras ao fazer sessenta anos, que a mulatinha morreu sem descendência no ano em que assaltaram a Bastilha, e que o Solar dos Brasis é testemunho da boa aplicação em Portugal do ouro de Sabará. Eu sempre vi neste lugar um túmulo, entre muitos, onde embalsamaram Portugal. Mas nunca cheguei a dizê-lo ao Gastão.
Não sei se os caixotões acabaram por cair, ou se a madona continua lá, a voar no pedestal. Quando há dias voltei ao Solar dos Brasis o Gastão tinha acabado de morrer. E o IPPAR pôs um telhado novo nos altos do torreão, e trancou as portas e as janelas com grades de ferro chumbadas na ombreira.
Fica-me a pena de não ter assaltado a madona, numa noite de inverno. Mas ainda bem que o Gastão foi embora, sem saber a verdade.

Portugalmente (27)

(...)
O viajante fica duplamente compensado. A um lado porque desfez o seu enigma, e a outro por ter achado em Salvador uma fantasia que pede meças à sua. Embora já tenha o dia ganho, decide explorar o filão. Salvador há-de conhecer a história do assalto à quinta do Ferro, o viajante ouviu versões desencontradas, gostava de tirar uma prova real.
- Real ou não, temos a prova perto! Quer ir lá ver?
Sem dar parte de fraco, Salvador acelera a passada, que a violência deste sol já não é para os seus costados. Apoiado no bordão conduz o viajante até ao cemitério, onde sobressai o mausoléu das famílias da quinta do Ferro, encostado a uma parede. É uma imponente mastaba de pedra, em proporção do que se vê, guardada por uma grade de ferro antigo, e tem à volta um canteiro onde devia haver flores. Um fuste central sustenta, lá em cima, um anjo velador.
- Aconteceram esses casos nos tempos do rei dom Miguel, que outra coisa não deixou senão a descendência, ainda hoje à espera de se sentar no trono. E tem aqui os olhos que assistiram a tudo!
O viajante não vê olhos nenhuns, mas deixa-se ir na fantasia. E o que julga entrever, num quadro de fumo e trevas, é uma fuça estarrecida, de pânico e de espanto, a do antigo Ferro marrano, quando o levaram à fogueira.
- Eram tempos danados, esses, com o país dividido em dois partidos, que se chacinavam com furor igual. Mal comparados, e mudando as maneiras, fazem lembrar os dias de hoje. O que reinava por estas províncias eram os bandos de guerrilhas e as quadrilhas de ladrões, qual deles o mais raivoso e justiceiro, se o do Espadagão, ou o dos Marçais, ou o do Traquina, ou o dos Brandões, ou o dos Leais, ou o do Trancaria, ou o do Cachapuz. Havia mesmo um batalhão sagrado, feito só de sotainas e ódios ao jacobino, que usava a cruz para fazer pontaria, mas disparava zagalotes de mosquete.
O viajante centra a sua atenção numa placa de metal onde ficou registada a linhagem de Domingos Saraiva, a quem vieram a caber os despojos do desgraçado Ferro. Toda ela aqui jaz, debaixo destas pedras. Há nela morgados e viscondes, e entre eles está Maria José, a dona dos olhos de que Salvador falava.
- A fidalguia inteira por aqui apoiava os miguelistas, pois natural, ainda hoje ninguém mexe em equipa que prometa ganhos. E de todas a mais assomadiça era a gente da quinta, descontando agora o velho patriarca, que há poucos dias entregara a alma ao criador. Lá em casa tudo era tristeza e lutos, e visitas só de condolência. Mas nem isso amoleceu o peito aos quadrilheiros.
- Caía a tarde e as crianças desceram ao jardim, era o António Saraiva e a Maria dos Prazeres, que o senhor aqui vê. À boca da noite, foram eles os primeiros a dar conta da numerosa cavalgada, e da restante peonagem que descia a carreteira e foi tomando posições de cerco.
- Mais tarde não faltou quem pusesse a boca nos Marçais de Foz-Côa, mas nunca se tirou a coisa a limpo. Eles eram malhados até à quinta casa e tinham as costas largas, não custava nada guardar o proveito e passar-lhes as culpas. Para tornar tudo mais convencedor, até lhes desenharam um trajecto no mapa, e acusaram-nos de terem varejado a Canameira, e a quinta da Veiga, e o solar do morgado do Rabaçal, no caminho para cá.
- Mas a meu ver não houve no assunto políticas nenhumas. Os tempos eram de rebaldaria, e quem se apresentou na quinta, nessa noite, vinha apenas ao cheiro das pratas e das baixelas. Assim mesmo foi dito que havia gentalha de Trancoso misturada na quadrilha. E a partir de então, com justiça ou sem ela, de algumas casas se começou a dizer que cheiravam a ferro. Claro que se desconfiou da criadagem, houve mesmo quem pusesse a boca no padre capelão, um desaforo. Fosse ele como fosse, quem ali se mostrou não só conhecia bem o cheiro às pratarias, mas também lhes sabia o covil.
- Primeiro arrancaram o badal à sineta. E depois de forçarem as portas, veio ter ao salão um mascarado, todo salamaleques e atenções. Fez o sermão da ordem a apaziguar o adjunto, e a todos recomendou sossego para salvarem a pele, e a conformidade requerida pelos alvoroços do mundo. Entretanto a peonagem vasculhava baús e gavetões, foram-se ao bragal do falecido e puseram-lhe a cote os camisotes e as ceroulas de finíssimo linho.
- O mascarado foi pedindo à dona da casa as chaves dos contadores, dos cofres de jóias e valores, dos arcazes de sedas e damascos. E entregava cada uma ao ajudante, mascarado igualmente, a quem despachava lá para dentro, com instruções precisas. Afora isso os quadrilheiros não molestaram ninguém, nem patrões nem criadagem. E andaram nisto até à madrugada, a máscara a dar ordens, dona Maria José a obedecê-las, e a peonagem a vasculhá-las. Só quando chegou a altura de abrir o segredo das pratas da família é que a dama não cumpriu. Nunca lá tinha entrado, nem lá iria agora! Mas o mascarado não perdeu o concerto. Escolheu ele próprio a chave e mandou violar o esconderijo.
- No fim a retirada foi mais atabalhoada. Não que houvesse ali um qualquer perigo, toda a quinta é um ermo. Mas só bestas de carga eram várias dezenas, a carrejar o espólio de muitas gerações. A partilha do saque foram fazê-la num pinhal, para lá do Távora, numa mata das Arnas, e consta que houve então certo alarido. Mas tudo se apaziguou, e nunca houve denúncias nem acusações.
- Foram casos que deram brado durante muito tempo, ainda hoje estamos aqui a falar neles. Mas a dona Maria José, que o senhor aqui vê, é que nunca se resignou. Dizem que só esqueceu quando finalmente aqui veio parar.
O viajante dá-se por feliz com a sua sorte, já ouviu o que queria, e mais bem explicado do que imaginava. Dá uma volta ao redor do mausoléu, e fica a pensar na paixão que tanto afligiu a dama da quinta do Ferro, e só em Rio de Mel achou descanso.
- Dos tesouros da quinta, e do nome desta terra, é bem caso para dizer, água os deu!
A risada de Salvador atesta a sua concordância. E ao viajante, que já está de partida e não quer ser indelicado, falta-lhe o descaro para juntar ao rol a garrafa dos diamantes, que aqui tinha lugar, porque também água a levou. Deixa Salvador entregue às lembranças antigas e despede-se de Rio de Mel, com a vaga impressão de o não ter encontrado. Para tudo ficar dito, desconfia mesmo que este lugar lhe escondeu alguma coisa. Hesita entre o Vasques Coutinho e o romeiro afortunado, e não atina o viajante por que lado arrematar.
(...)

À beira do rio

O moleiro ergueu o seu moinho à beira do rio, debaixo dum salgueiro. Um dia o rio cresceu, envolveu-o nos braços e levou-o. Ao moinho. E tudo voltou ao princípio.
O moleiro refez o seu moinho à beira do rio, debaixo do salgueiro. Quando o rio cresceu outra vez, enrolou-o nos braços e levou-o. Ao moinho. E tudo se repetiu.
O moleiro reconstruiu o moinho à beira do rio, debaixo do salgueiro. Mas o rio voltou a crescer, pôs-lhe os braços em volta e levou-o. Ao moinho.
Ora o moleiro tinha mais que fazer do que aturar os caprichos do rio. Tinha à espera, ansiosa, a freguesia. Em lugar do moinho fez um barco e varou-o à beira do rio, debaixo do salgueiro. E pôs-se a moer o grão.
Desde então, sempre que o rio crescia, roçava o dorso crespo na quilha do barco e passava de lado. E o moinho lá ficou a moer, a moer, até se gastar a mó.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Portugalmente (26)

(...)
Dizem os roteiros que esteve este lugar, em seu devido tempo, na posse dos Coutinhos. E que em certo momento, sabe-se lá porquê, se achou despovoado. Ora como terras ermas não vencem corveias, Gonçalo Vasques, o tal Coutinho que era alcaide de Trancoso, e teve o seu papel nas contendas com os castelhanos que tinham ido a saquear Viseu, pediu a el-rei uma estrada que, de Trancoso a Lamego, passasse por aqui. Era uma forma de atrair povoadores que ainda hoje faz escola, pensa isto o viajante, ao lembrar-se do empenho com que os autarcas de agora vêm reclamando vias rápidas e comboios de alta velocidade que lhes parem à porta.
Por alguma forte razão concedeu el-rei muito mais do que lhe foi pedido. E oito léguas em redor fez-se ouvir o pregão a convocar moradores, muitos deles terão acorrido, em vista das pesadas multas. O viajante não quer acreditar na moscambilha que agora mesmo lhe veio à cabeça. Mas na verdade, por trás de tão incerto rio de mel, podia muito bem andar a mão do tal Coutinho, que pôs a correr o fastoso topónimo, só para tornar o pregão mais atractivo.
Está o viajante abandonado a tais cogitações, sem solução para o enigma, quando lhe passa ao lado um salvador. É um homem alentado de carnes, já entrado na idade, que veio a dar o seu passeio apoiado num bastão de pau preto. Lá lhe pareceu perdido este viajante, a olhar para os seus papéis, não custa nada dar-lhe uma mãozinha. Este agradeceu, e achou por bem apresentar-se.
- Pois eu chamo-me Salvador, e já passei dos setenta! Há quase trinta cheguei eu de Angola!
Salvador era funcionário judicial e regressou de África na debandada de 75, quando as caravelas voltaram todas ao cais.
- Quinhentos anos de história para no fim entregarem tudo aquilo a troco de nada, uma vergonha! Bom era o Galvão de Melo, mas não o deixaram falar! Eu deixei lá um terreno tirado à barriga! E ainda hoje sei muito bem onde está enterrada uma garrafa cheia de diamantes!
Esteja lá onde estiver, o mais certo é vir essa garrafa a mudar um dia a vida de alguém. Quanto ao resto, ninguém poderá ver daqui o monte do Almansor, se lhe mantiver voltas as costas. E o viajante sempre ouviu dizer que o maior cego é o que não quer ver. Se o seu amigo Salvador, passados trinta anos de frustração e raivas, ainda não descobriu onde estão as causas da tragédia que o fez enterrar na areia a garrafa dos diamantes, não serão duas palavras singelas que vão agora fazê-lo perceber.
Aqui chegado, ao viajante compete-lhe mover-se com pezinhos de lã, pois sabe muito bem que lhe caiu de repente nas mãos uma grande ferida de alma, se a alma da nação as não tiver maiores. Também nele deixaram tão vastos impérios cicatrizes e memórias bastantes, porém muito diferente é o seu modo de lamber umas, e interpretar as outras. Não quer abrir agora um conflito mais que certo, e propõe-se acompanhar Salvador no seu passeio, enquanto conversam os dois.
Salvador possui um novo terreno para os lados da ribeira. Plantou-o de castanheiros, mas já o pôs à venda. Amanhá-lo é coisa que ele já não pode, e, por mais que um homem pague, não se encontra ninguém para trabalhar na terra. O viajante, que já traz de cor o relatório ouvido em conversas passadas, faz a pergunta que o tem intrigado toda a manhã, como foi que Rio de Mel granjeou um tal nome.
- O rio de mel está aqui à sua frente! É esta ribeira que começa a juntar águas além no Cadouço, desce a deslado do Marvão, passa ali à Mina, e havia de correr aqui aos nossos pés, se não estivéssemos no verão e a seca não fosse esta fatalidade que se vê.
O viajante, que muito se compraz com imagens de estilo e tropos de linguagem, não fica satisfeito. Porque apenas viu deslizar o enigma do lugar para o rio que o banha, com perdão do exagero. Mas Salvador também não acredita na moscambilha do Gonçalo Vasques, que o viajante sugeriu. Salvador prefere o seu próprio enredo.
- Muito antes desse tal Coutinho, e muito antes de haver esta terra e uma estrada, passava por aqui uma via antiga, daquelas que duravam vidas. Descia da Guarda pelas ladeiras do Tintinolho, atravessava o Mondego ao fundo da Ramalhosa e tornava a cruzá-lo na ponte do Ladrão, passava a ribeira dos Carnicães no sítio das olas, muito perto da estação dos comboios, alongava-se até Freches onde saltava o ribeiro numa ponte que ainda lá está, subia dali a Trancoso e rumava para as terras do demo. Então não existia ainda este lugar, mas foi por esta rota que passou um dia um romeiro fidalgo a caminho de Santiago, e aqui matou as sedes que trazia acumuladas, as suas e as da cavalgadura. Tão bem lhe caíram as águas, que logo à ribeirinha crismou de rio de mel. Ora aí tem o senhor!
(...)

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Portugalmente (25)

(...)
4
Bem queria o viajante satisfazer sem demora o bicho da curiosidade, mas não é verdade que Deus ajuda quem mais madruga. O viajante madrugou, e a meio da manhã já percorreu a rua Longa, e a da Carreira, e a do Gorgolão, e a do Combarrinho, e a do Pendão, e as outras todas. Foi mesmo meter o nariz na rua das Laijinhas, betesga minúscula entre velhos tugúrios onde hoje ninguém passa, e que não tem mais préstimo senão estar ali. É uma testemunha dos tempos, e já não é pouco.
Encantado com os nomes das ruas, que guardam o sabor de falares muito antigos, o viajante ia à procura dum rio de mel e não deu com ele. Não lobrigou sequer um rio. Num pequeno largo encontrou a taberna velha, com os seus postigos de batente, hoje parados, há muito que não dão passagem a ninguém. Quem sabe se ruminando em convívios antigos, ou passadas alegrias, estavam dois paisanos sentados num maçadoiro de pedra, mal lhe devolveram os bons-dias. Mas acabaram a dar-lhe notícia da casa do padre santo, além desabitada, ao fundo daquela rua. Um padre santo! O viajante fica a pensar nestes exagerados modos de falar. Olha a casa de pedra, sem ninguém lá dentro, que os santos acabaram. Ou acabou-se o mundo em que eles tinham lugar.
E é nestes indecisos pensamentos que o viajante encontra a dona Glória a traquinar num pequeno quinteiro, enquanto apazigua um cadelito, que insiste em empinar-se às pernas do intruso. Este pediu-lhe inculcas sobre o nome da terra, assim tão pouco visto e tão cheio de promessas.
- Sempre lhe ouvi chamar assim, dês que tenho lembrança, a gente sabe lá!
O viajante pensa que o mesmo responderia o cadelito, se não estivesse tão zangado. E conclui que o topónimo há-de ser muito antigo, a avaliar pela idade da dona Glória.
Desarmado e perplexo, fica o viajante sem saber por onde prosseguir. Esperava encontrar uma curiosidade interessante, mas agora vê-se de mãos vazias e não sabe o que fazer. Já viu a igreja matriz, com três ventanas sineiras e uma torre que lhe pareceu inacabada. É uma fábrica ampla, de imponência bastante, embora sufocada pelo casario. Mas não pôde ver o que está lá dentro, porque não descobriu maneira de entrar. Já viu que as ondas da emigração não provocaram no corpo desta aldeia as mudanças radicais que o viajante já tem visto. A geografia dela é a que sempre foi, e não se alterou o desenho antigo das ruas, cuidadosamente empedradas. Pelas marcas dos esgotos, descobre o viajante que esta obra foi feita antes de ter chegado a enxurrada dos fundos. É um caso notável e muito pouco visto, ele haverá uma razão para isso, quem sabe se um zeloso presidente da junta, um compadrio político, o viajante não o sabe. No mais, a aldeia conserva o núcleo original, e as construções havidas, que são muitas, fizeram-se no seu interior. Apenas além, ao fundo da rua do Ribeirinho, cresceu uma zona moderna, com chalés que não escandalizam, e um centro social a merecer aplauso, assim visto de fora.
Desarmado como ficou, e à falta de informação mais viva, o viajante resolve ir consultar os seus cadernos, que é onde devia ter começado. Decide voltar ao princípio e dirige-se ao carro, que ficou à espera estacionado ali no largo, em frente da capela de Nossa Senhora do Bom Sucesso.
Este é o terreiro mais ancho e dilatado da aldeia, e dum adro assim desafogado é que a igreja matriz lhe pareceu muito precisada. O viajante não sabe quando ela foi construída, nem conhece a idade desta capela. Diz-lhe a imaginação, e não sem lógica, que nalgum tempo já foi aqui o adro da aldeia, talvez o campo santo, em volta da capela. O cemitério moderno ainda hoje fica ali ao lado. E a matriz, que terá vindo mais tarde, acolheu-se onde pôde, e lá ficou a respirar a custo, afogada entre as casas. O viajante põe-se a cogitar, e conclui que só é um bom pastor o que mantém debaixo da mirada o seu rebanho inteiro.
(...)

A jogatina lusa

Entre tantos europeus, são os portugueses quem mais gasta, por cabeça, no jogo do Euromilhões. E não é por serem ricos, que esses só investem pelo seguro, no Madoff, ou no Rendeiro. Ou no Oliveira e Costa, nos casos menos afoitos.
Aclaram os sociólogos que os portugueses apostam porque são os mais infelizes, os mais pobres, e os mais ignorantes. Pois o que faz disparar a tineta da jogatina indígena, outra coisa não é que o índice de ignorância, o índice de pobreza e o índice de crendice. É dito assim por quem sabe, e é consabido por quem não anda distraído.
Sendo assim, os portugueses cumprem bem o seu papel. Há séculos que as elites dirigentes lhes talharam o fadário, e raramente deixaram de lhes impor o rumo.
Não faço ideia nenhuma do que pensam sobre isso os trinta portugueses que o Euromilhões tornou milionários nos últimos quatro anos. Sei apenas o que faz aquele camponês do planalto de Miranda, que há uns tempos atinou com os algarismos todos. Passeia-se num Ferrari pela estrada municipal. E guarda no telheiro um Porsche de reserva, que um banco sacrificou, para lhe caçar as poupanças. Campónio será ele, mas não parvo. Já anda a jogar no totoloto, para acertar num jackpot e garantir o futuro. O mundo não está para brincadeiras, e ele não quer perder nível de vida.

O financeiro bêbado

O ministro das finanças do Japão apresentou-se um pouco descomposto num palco de financeiros. E bem culpou um remédio da gripe, que o andava a atormentar, mas a voz do povo não engoliu a pílula. Acusou-o de estar bêbado, e o pobre homem pediu a demissão.
Está visto que a voz do povo não é sempre a voz de Deus. Pois bêbados andam há muito os financeiros todos. E este bem merecia uma condecoração. Nenhum outro mostra assim a face verdadeira.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Diz o jornal, e eu não quero acreditar...

... naquilo que o jornal diz. Que há um país, com séculos de existência, mais ou menos integrado na Europa moderna e culta, com as botas enterradas na civilização cristã, herdeiro, bem ou mal, dos valores renascentistas, e do racionalismo iluminista, e das barricadas da modernidade, e dos ideais liberais, e das leis republicanas, e tem escolas aos milhares, e auto-estradas rápidas, e águas canalizadas, e bares nocturnos, e livros nem todos maus, e cães domésticos, e putas loiras, e alfa-romeos, e mesadas, e dívidas por pagar, e maus patrões, e péssimos senhores, e prestações ao banco, e viagens tropicais, e tudo o mais. Pois acrescenta o jornal o que veio revelar o estudo duma universidade: que 25% dos jovens (desse país) já experimentaram violência no namoro; e sobretudo, que os jovens (desse país) interpretam os actos de violência como sendo provas de amor.
Diz o jornal que esse país é o meu, e eu não quero acreditar. Mas que estupidez a minha! De hoje em diante hei-de ver mais televisão.

Lesa-inteligência, lesa-património, lesa-pátria!

As energias limpas são uma coisa vital, mormente num país que outras não tem. Mas as barragens, sendo inevitáveis, não são criações inofensivas. As águas submergem valores, e em seu entorno afundam patrimónios. Por isso cada uma é um compromisso, com preço muito exacto no jogo do perde-ganha.

Em 1995, um primeiro ministro decidido suspendeu a barragem de Foz-Côa. Os cavalinhos picotados numas pedras, 30 mil anos mais coisa menos coisa, eram património valioso, e haviam de trazer à região a riqueza que doutro lado não vinha. A EDP recebeu 20 milhões para compensar os trabalhos já feitos.

Alguém sugeriu ainda que a tecnologia tornava possível conjugar a construção da barragem e a sobrevivência dos auroques. E até um visionário, se não era o Júlio Verne, falou dumas campânulas de vidro, coisa e tal.
Mas a nossa atávica ligeireza, quando não é fatal incompetência, arrumou rapidamente o assunto. E se descontarmos nós a ruína paisagística que os citados trabalhos deixaram para trás (e lá está como vergonha) o mundo ficaria em equilíbrio.

Mas o tempo é um relógio que não pára, para desassossego nosso. E já mostrou dados novos. O primeiro é que os auroques não trouxeram a revolução apregoada. Tiveram no ano passado 14 mil visitantes, um décimo dos previstos. E são agora as estruturas de apoio que estão a trabalhar a meio tempo.

E são esses os mesmos cavalinhos que a tecnologia permite desmontar, permite salvaguardar, permite deslocalizar, sacrificando, é claro, o contexto geográfico.

O segundo dado novo, verdadeiramente trágico, é que a energia do Côa acaba por ser trocada pela energia do Tua e do Sabor. Onde tudo o que se perde é sem remédio. Sobre esta última não me pronuncio, faltam os dados e as obras já começaram. Mas sobre o Tua não creio que haja dúvidas: o património que ali se afundará inevitavelmente é mais único e muito mais valioso que os ganhos que ela trouxer.

Porém o que entre nós é comum há muitos anos, que é imolar o comboio a ganâncias pouco confessáveis, está no Tua em marcha acelerada. A degradação da linha é apenas um sinal.

Se em Portugal pudesse haver algum dia (tal coisa nunca existiu) um governo a merecer esse nome, corrigia ainda hoje o voluntarismo amador. Salvava do naufrágio os auroques do Côa, recolhia-os no museu que finalmente fizeram, para que não seja ele próprio mais um objecto inútil. E mandava retomar a barragem do Côa.

Punha na ordem uma dúzia de engenheiros e não afogaria o vale do Tua. Para não cometer um crime de lesa-inteligência, um crime de lesa-património, um crime de lesa-pátria.
Claro está que uma tal coisa, só por obra dum milagre!

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Mil anos

[clique para ver]
Entre um ponto e outro ponto vão mil anos. Mas permanece a linha do horizonte, e a horta a pedir um fio de água.

Portugalmente (24)

(...)
Tantos são os atalhos e emoções por onde este viajante se perdeu, que o dia ameaça terminar sem estar à vista o fim da jornada. Por isso deixa para trás a placa a anunciar Vila Novinha, decidido a não parar. Perderá ocasião de ver o S. Brás dos Montes, ali aos pés do Almansor, bom advogado dos males de garganta e afamado protector de gados. Já foi um Senhor da Pedra, antes de ser o que é hoje. E o viajante suspeita de que, em tempos muito antigos, aqui perdido entre os bosques, já foi lugar de cultos pagãos, donde se espavoriam os maus espíritos à força de alaridos, de estrondeios, e de golpes de chuço e de bordão. Hoje é um bom pretexto de farnéis e arruadas de bombos, de gritarias e cenas de varapau entre as maltas de Miguel Choco, do Carapito e outras. Tal é, pelo menos, a fama que lhe ficou.
Vai o viajante a pensar nestas guerras de Tróia, quando lhe esbarram os olhos numa construção ainda mais surpreendente do que algumas que tem visto. Ainda bem que logo à frente surge um local de paragem, diante dum café, o viajante quer apreciar a obra. É um volume de três pisos de pedra, que mantém em respeito o monte do Almansor. Um largo varandim gradeado enlaça toda a construção, que assenta em duas idas de arcaria sobreposta. Do vasto pátio empedrado ergue-se um escadório lateral, orlado de ferros fundidos, que sobem ao andar nobre. E as cristas de cedro exótico, a espreitar lá de cima, deixam adivinhar o jardim nas traseiras, à cota do primeiro andar.
O viajante já fez juramento de não ceder a espantos, e faz questão de manter a promessa. Consola-se num renque de carvalhos antigos, e de freixos que vão à borda da estrada, oxalá tenha o S. Brás dos Montes em bom aconchego as mãos que os plantaram, há cem anos. E aproveita a pausa para beber um café, ali mesmo à mão.
Quem está dentro do estanco é Palmiro, a conversar com um amigo, enquanto bebe a sua cerveja. Acabou de chegar duma courela onde cultiva abóboras. Palmiro esteve muitos anos em Lisboa, a fazer leituras e cobranças na companhia das águas. Reformou-se há uns anos e regressou à aldeia, já perdeu os ares que tinha, de andarilho, por praças e ruelas. Agora é um camponês que se dedica às pequenas terras que os pais deixaram.
Há dois anos teve uma boa colheita de batatas, e alguma esperança de que dessem bom preço. Guardou-as até depois do S. Brás, quando elas começaram a grelar, mas depois tanto mirravam as batatas como os preços. No fim da história, quem mais ganhou foi uma vitela pequena que trouxe para casa. Comeu-as e engordou. Mal fez ele em não a despachar aos vinte e dois meses, que era a altura certa e valia bom dinheiro. Quando a deixou chegar aos trinta, só um favor privado do marchante lha tirou de casa, por metade do preço.
Agora só cultiva abóboras. Ceva dois porquitos, mata-os quando chega o inverno, e nem se importa das leis nem das ordens da Europa. Há leis e fundos para tudo, mas só dão dinheiro a quem o tem. A quem tem terras, às vezes uns cabeços no pico do monte, como esses de Benvende, da Ponte, de Aguiar. Surribam-se umas fragas, enterram-se nelas uns pés logo deixados ao abandono, passados anos nem sinais ficaram. Ou então estendem-se uns arames, mete-se lá o gado ao deus-dará, e enquanto dura, vida doçura. Não há melhor indústria que essa dos projectos, sempre enrolada em muito segredo, que é a alma do negócio. E tanto importa o que se cria, como o que se promete, o mesmo que nada. O ponto está em falar com quem se deve, e deixar o dinheiro correr.
Ao viajante, que muito aprende quando se põe a ouvir, vem-lhe à lembrança o avião que achou estacionado ali numa colina. Havia uns vultos de choupo, ou coisa assim, a negrejar no descampado, afogados no capim. O viajante não sabia que era um projecto de florestação a fundo perdido. Ficou agora a sabê-lo, por acaso, que estas coisas são matéria reservada. E, se não quiser passar a vida a equivocar-se, o melhor é ir afeiçoando os olhos a decifrar na paisagem os projectos da moderna agricultura.
Quando chega a Rio de Mel já a paisagem se dissolveu no lusco-fusco, já se vão cerrando as pálpebras da noite. O viajante vinha cheio de curiosidade em verificar se as graças da terra correspondem aos encantos do nome. Mas já não é hoje que poderá sabê-lo.
(...)

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Foz-Côa, Foz-Tua, Fosga-se!

A maior parte das travessas dos primeiros vinte quilómetros do curso inferior da linha do Tua estão em estado imprestável, quando não completamente podres.
O comboio, coitado, descarrila. E não é que lhe agrade despenhar-se no rio, só não consegue fazer doutra maneira.
Ao comum dos portugueses acontece a mesma coisa há muitos anos.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Vamos por partes! - 1

Consta que a televisão vai promover a selecção de sete maravilhas de origem portuguesa, que existirão no mundo. Para levantar o orgulho nacional, que tão rasteiro anda, é o que dizem! E é mais que certo voltarmos nós outra vez ao mar tenebroso, e aos padrões imperiais semeados nas dunas, e às fachadas de catedrais instáveis, e a ruínas de fortalezas velhas.
O concurso é um exercício lamentável, senão mesmo nocivo! Porque em vez de ensinar os portugueses a entender a história, e os ajudar a ser gente, prefere a televisão transformar-lhes a cabeça em logradouro de mitos imprestáveis.
Entre os séculos XV e XVI, a elite dirigente levou Portugal para o mar, a edificar um império. Teria o país por junto um milhão de habitantes, e recursos por força limitados, para a imensidão da tarefa. Mas os portugueses partiram, e lá chegaram à Índia, e um deles deu a volta ao mundo inteiro.
A importância de tais cometimentos, a grandeza das realizações, e o seu significado humano não sofrem contestação, por serem da ordem do transcendente. Mas nunca houve bela sem senão, e o senão de Portugal foi um só: qualquer povo que, em condições semelhantes, empreende uma tarefa tal... não pode falhar o empreendimento. Por pôr em cima da mesa os trunfos todos que tem, fica de peito no fio da navalha. Ou ganha, ou não sobrevive.
Cinquenta anos depois o império da Índia era uma bancarrota, e até a independência de Portugal se perdeu. O Brasil algum tempo mais tarde, a África de ontem, e a moderna Europa de hoje, nunca chegaram a ser, para os portugueses concretos, mais do que miragens perseguidas.
Face à indisfarçável decadência, as elites nacionais afadigaram-se a criar mitos pintados, assobiaram para o ar, puseram culpas ao Velho do Restelo. Ainda não pararam de o fazer. E já era tempo de a televisão saber que a única maravilha de origem portuguesa, merecedora de registo, é Portugal ainda existir.

Portugalmente (23)

(...)
A tarde já vai a meio quando o viajante, um tanto retemperado, torna à estrada de Lamego. A sua intenção é voltar à direita, na direcção de Trancoso, para lá vai o seu destino. Antes, porém, há-de ir à procura duma estação de serviço, para os lados da Lezíria. Ouviu falar dela e gabar-lhe o desempenho, ali entre pinhais, no cruzamento da Cunha. O seu velho companheiro de estrada tem exigências de óleos e de valvulinas, dói-se de artroses várias. E o viajante, por sobre o afecto que lhe tem, está a ficar tão velho como ele, sabe do que os velhos precisam. Por isso não lhe falta com uma boa lavagem, e massas consistentes, e banhos de parafina.
Antes mesmo de entregar o seu carro aos cuidados do mestre lavador, acha-se o viajante no meio dum ruidoso adjunto, que espera um transporte, pelos vistos atrasado. É o que se conclui desta vozearia, destes inconformados gestos, e das pragas que fervem no ar. Terá o grupo umas quinze pessoas, as mais delas mulheres já maduras. Têm ancas largas, e seios fartos, e ventres salientes, comem farnéis e fumam e praguejam, em sotaques estranhos, como se estivessem numa caserna. Esta veio de Ovar, aquela de Ílhavo, aqueloutra de Leça, há gente de Viseu, da Pesqueira, de Moimenta, e esta família inteira de quatro veio do Ladário. Há jovens que riem do nada, e homens adultos, que são dois, e bebem a sua cerveja enquanto esperam. Elas agitam-se, nos fatos de licra que lhes moldam as formas, falam aos filhos nos telemóveis, lembram o gato que vai morrer à fome, e recomendam cuidados a uma avó, com a pasta da escola.
Estão todos à espera dum transporte que vai levá-los para a Suíça, onde têm trabalho por três meses, em hotéis, em cozinhas, em serviços domésticos, e nas quintas agrícolas dos Alpes. Alguns vão à apanha dos morangos, e quando estes acabarem há-de vir a colheita das maçãs em França, e as vindimas na Rioja, e antes disso as estufas do melão na Andaluzia. Nesta nave, que é estação central de chegadas e partidas, amontoam-se sacos de batatas e máquinas de lavar, frigoríficos velhos e garrafões de vinho, caixotes de cartão e atados de roupa, e tubagens enroladas, e cortadores de relva, e máquinas estranhas a que faltam pedaços, e jantes de alumínio, e sacos de viagem, e coisas que este viajante não é capaz de definir.
Alguém lhe falou, lá atrás, nas campanhas da fruta. Mas uma coisa é ouvir alguém falar, e outra bem diferente é ver, e reparar. E o viajante já não sabe se veio a uma estação de serviço, a cuidar do seu carro, ou se foi parar a um cais de Belém, donde partem as naus da Índia. São portuguesas todas, estas vidas. Foram ontem lastro de caravelas, hoje lastro são das sociedades desenvolvidas, amanhã serão lastro doutra coisa qualquer, vidas é que não parecem ser.
O viajante olha à sua volta, e não exagera se disser que fica angustiado. Depois de séculos por trancos e barrancos, bem gostava ele de pensar que Portugal regressou à Europa, e assumiu nela um papel, como toda a gente. Não contava achar agora aqui este rebanho transumante, amontoado num cais, à espera de partir no convés duma nau.
A tarde já vai longa quando o viajante recebe o seu carro, tão fresco e luzidio como se fosse novo. Segue devagar pela estrada, à sombra duns freixos velhos, de janela aberta à brisa morna, e o peito serenado por não ter de partir às campanhas da fruta. Cruza-se com um furgão vermelho que anuncia VOYAGENS, vem carregado de gente e arrasta na cauda um atrelado cego. Quem vai ficar contente são as mulheres de Leça, de Viseu e de Ovar, que estão impacientes por partir, e mais ainda estas que regressam, e acabam de chegar. Quem não fica satisfeito é o furgão. Porque é só render-se o condutor, trocar umas por outras as bagagens, mudar de passageiros, e voltar pelo mesmo caminho. Vai-se num pé, vem-se noutro, numa roda-viva, nem tempo há para mudar as valvulinas.
(...)

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

À manhã, finalmente luminosa...

... veio Sorolla em pessoa!

A Europa e os três vintes

Com vénia ao dr. Luís Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal

Tal como Barack Obama fez nos Estados Unidos com a
Nova energia para a América, também a Comissão Europeia elegeu a energia como um dos temas a colocar no topo das prioridades da sua agenda. A Segunda análise estratégica da política energética, divulgada no final do ano transacto, reafirma o compromisso da Comissão na Iniciativa 20-20-20: conseguir até 2020 uma redução de 20% das emissões de gases com efeito de estufa, aumentar para 20% a quota das energias renováveis no consumo energético, e melhorar a eficiência energética em 20%.
São três os grandes objectivos desta estratégia: segurança, competitividade e sustentabilidade. De entre as várias acções que se pretendem levar a efeito no âmbito desta iniciativa, destacam-se os investimentos em estruturas de transporte de energia, como sejam o
plano de interconexão do Báltico e a construção do designado corredor meridional do gás. Este corredor visa reduzir a dependência da Europa em relação ao gás russo, procurando acesso às fontes alternativas do mar Cáspio e, em última análise, às enormes reservas de gás do Iraque, do Irão e do Qatar.
Não espanta esta preocupação da Comissão com o gás natural. Ele adquiriu uma importância muito grande na produção de energia eléctrica na Europa, e é já responsável por 28% do total, à frente do carvão e do nuclear. Em alguns países, como é o caso da Holanda, da Itália, do Reino Unido e da Espanha, essa importância é ainda maior. E é para centrais eléctricas a gás que estão a ser dirigidos os maiores investimentos nos próximos anos. Será também assim em Portugal.
Acontece que a Europa produz apenas 40% do gás natural que consome. Os restantes 60% chegam, na sua maior parte, através de gasodutos: da Rússia, 25%; da Noruega, 15%; da Argélia, 11%; uma pequena parte de 9% chega à Europa de outras origens, transportado em navios metaneiros sob a forma de gás liquefeito. Para agravar a situação, a produção interna de gás natural, centrada sobretudo na Holanda e no Reino Unido, está a diminuir rapidamente, prevendo-se que em 2020 satisfaça apenas 25% do consumo total europeu.
As intenções da Comissão são boas, ao propor a
Iniciativa 20-20-20. Mas as metas ambicionadas parecem difíceis de atingir no curto espaço de 11 anos. Actualmente as energias renováveis representam apenas 8,5% da produção energética europeia. E depois do falhanço dos biocombustíveis, não se vê como chegar aos 20% até 2020. A actual crise económica só vem dificultar as coisas, pois torna-se cada vez mais difícil assegurar o financiamento dos novos projectos na produção eólica e solar.
O aumento da eficiência energética, como forma de reduzir o consumo, é um bom caminho. Mas pode ter um efeito oposto ao desejado, como postula o
paradoxo de Jevon: maior eficiência na utilização de um recurso leva a uma maior utilização desse recurso. Mais difícil ainda se afigura a redução em 20% das emissões de gases com efeito de estufa: a captura ou sequestro do carbono é ainda uma miragem, e a iniciativa fala apenas de instalações experimentais até 2020. Os novos projectos em curso para a energia nuclear, que o Comissário Piebalgs parece acarinhar, também não são em número e dimensão suficientes para contrariar de forma significativa as indesejadas emissões.
A Europa e os Estados Unidos padecem do mesmo mal, a grande dependência energética externa. E adoptam politicas semelhantes para o combater. Parecem contudo condenados a seguir caminhos divergentes, para atingir os seus objectivos. Os EUA vão procurar suprir as suas carências no Canadá, no México, na Venezuela e nas áreas costeiras do Atlântico Sul (Brasil e golfo da Guiné). A estratégia europeia aconselha que a política externa da União tenha em conta os objectivos energéticos. Daí as propostas que surgem, de acções visando uma aproximação à Rússia, aos países do Cáspio, aos do Médio Oriente e do Norte de África, que são afinal as áreas geograficamente mais vocacionadas para fornecer a energia de que a Europa necessita.
A eventual saída dos americanos do Iraque – onde Europeus e americanos defendem interesses comuns - acentuará ainda mais essa divergência. No Médio Oriente convergirão, no futuro, não só os interesses das economias mais desenvolvidas (EU, EUA, Japão e Coreia) mas também os da China, da Índia e do Paquistão, cada vez mais ávidos de energia.
Deste modo a Rússia, com as suas vastas reservas energéticas, surge de forma inevitável no caminho da Europa. A seguir à Turquia e à Ucrânia, poderá muito bem ser um candidato desejado para integrar a União Europeia.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

da capo - 24

O METEORO
Toda a gente sabe que Portugal é uma aranha. Tem o rotundo ventre centrado na capital e as patas nas auto-estradas. O resto é vasta paisagem. Ora uma Casa da Música fazia falta no Porto, tanto como o pão para a boca. O Porto ia a concertos ao Coliseu, ou assistia à sua Traviata, nos intervalos do circo ou de espectáculos avulsos, sem desprimor. Há muitos anos que a cidade já merecia outra coisa, abençoada Casa.
É ela um meteoro vanguardista, e não pecará por isso. Embora fique a suspeita de ter havido nela um sacrifício à forma, prejudicando a função. Caiu ali e provocou em volta ondas de choque, que as rugas no chão atestam. São de mármore travertino, os ondulados. Vieram da Jordânia e são perfeitos.
A estrutura é de alumínio e vidro, e de betão pigmentado, que há-de assumir a patine adequada quando os anos passarem. Tem lá dentro um quilómetro de escadarias e um mundo inteiro de arrojos tecnológicos, que nos escapam à imaginação. O coração do conjunto é a Sala Guilhermina Suggia, cuja acústica, a da sala, já se coloca entre as melhores do mundo. Atentos pelas paredes, enquanto estamos ali refastelados, há componentes específicos de madeira, que se ocupam de modular-nos os graves, os médios e os agudos. Os painéis são revestidos a folha de ouro, a sugerir os veios da madeira. E melómanos há que já levaram para casa um ourito raspado na unha do mindinho. Os veios de ouro estão ali a sugerir-nos o período barroco, o tempo dos desvarios dum rei que nos coube em sorte. Ou nossos, não se ficou a saber, que isso não pôde o guia explicar.
A Sala, cobrindo a orquestra, dispõe duma canópia em PVC, que pesa quatro toneladas. É única no mundo, outras pesarão quarenta, e move-se a impulsos dum computador. Na parede da direita ressalta a caixa barroca dum órgão de tubos, a fazer lembrar uma nave de Mafra. Na da esquerda está a caixa doutro órgão, mais tardio. Chamaram-lhe romântico e não faz lembrar coisa nenhuma. As caixas sobressaem ali, nos seus volumes, por agora silenciosas, porque estão vazias. Não tem havido verbas para lhes meter lá dentro a maquinaria própria. Mas esta capela imperfeita não interessa agora muito, já que basta adaptar-lhe o reportório.
A nascente e a poente há janelões de vidro a receber a luz. São de vidro grossíssimo, ondulado, por causa da refracção, e formam dupla parede para nos poupar os ouvidos aos gritos das ambulâncias. Os planos do vidro, com doze metros de comprido, vieram duma fundição de Barcelona. E os janelões têm cortinas acústicas, para velar, dosear, ou mesmo fechar a luz. A Sala dispõe de 1238 lugares, em tudo equivalentes, além dum vasto coro nas costas da orquestra, que pode ser ocupado segundo as necessidades. Bem assim dois camarotes laterais, que parecem reservas VIP e não o são.
Além deste auditório há um segundo, que é menos bafejado pela tecnologia e não causa sobressaltos. O resto, dentro da Casa, para lá do administrativo indispensável, são aproveitamentos acessórios, que terão o seu papel: câmaras de trabalho e ensaio dos artistas, cafetaria e restaurante, um atelier de criação musical infantil computorizada, um outro de workshops juvenis, e um espaço de baby-sitting, com acesso auditivo opcional aos espectáculos.
Por ser uma cidade que desempenha, no todo do país, uma função maior, o Porto precisava duma Casa da Música. E o meteoro realmente embasbaca. Mas tem o seu senão. A um lado, quando quiserem voltar à Traviata, ou aguardam os portuenses a saída dos leões e voltam ao Coliseu, ou mandam o chauffeur rumar a outras paragens. À Galiza, por exemplo. Porque a Casa da Música é um concert-hall, uma Philharmonie de gente rica. E o conceito não prevê fosso de orquestra, nem os equipamentos exigidos por recitais operáticos. Tudo isso requeria uma Casa diferente.
Embora a meio caminho, não perderam tudo os portuenses. Já podem assistir à 9.ª de Beethoven sem pedir contenção à vizinhança. Porém, à fortuna que se enterrou ali, merecia esta cidade melhor sorte.
Como hoje, e é um exemplo. Desta última cadeira até ao palco, vão uns bons quarenta metros. Ao longe o alemão Andreas Scholl, com a graciosidade de um Vulcano, executa árias de Haendel. Tirou o avental de forjador para vir ao palco, mas a voz de contratenor ainda é a de um deus. Ao lado dele o escasso grupo de câmara dilui-se na distância, a harpa agita-se contra a imensidão, um alaúde esbraceja, o cravo não alcança metade deste firmamento.
Vê-se que um espectáculo assim não foi criado para tamanhas dimensões, e que uma Philharmonie é outra coisa. Mas não falta gente aí, de olhos em bico, por causa do meteoro. Eu comungo desse contentamento, na suspeita de que não temos remissão.

Siso

Dizem que o dr. Santana Lopes, conhecido figurão das elites indígenas, tem passado o seu tempo defeso a martelar num piano e a exercitar o golfe.
É de aplaudir um tal siso. Pois doravante, se quiser armar ao fino, ou ao esteta, por certo deixará de lançar mão dos concertos de Chopin, para violino. E acabará por notar que nem sempre um campo verde é uma pastagem.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Portugalmente (22)

(...)
A quinta do Ferro faz lembrar um condado, vista à proporção destas terras minúsculas. E de ferro só conserva o nome, o mesmo do cristão que nos princípios do século XVII a possuía por aforamento. Ninguém sabe hoje como se veio a topar-lhe a marosca, em paragens remotas e apartadas como estas são. Longos, porém, e perspicazes, eram os braços e os olhos da hidra da Inquisição, que um dia o acusou, e condenou, por práticas marranas, contrárias à santa fé. E como quem perde cem, bem pode perder mil, levado que foi o marrano à fogueira, acabou a quinta confiscada e posta a leilão. Mas do Ferro ficou, até hoje.
Passaram nela os condes de Marialva, e a mordomia de Santo António de Ferreirim, e mais tarde morgados e viscondes. E gerações de servos maltrapidos, que ajardinaram as várzeas à beira do rio, e plantaram pomares, ceifaram as charnecas, e cobriram de matas estes montes. Quando a revolução dos cravos um dia cá chegou, alguém tirou a prova às contas desses tempos, e vozes houve a reclamar a ocupação da quinta. Mas a ocupação não chegou a fazer-se, porque alguém de olho afinado viu no caso uma aventura sem destino.
O viajante encontra uma ponte medieva, deixa o carro numa sombra e cruza o rio a pé. A ponte é de um só olho, e assenta nuns fraguedos que ali estão há mil anos, e que outros tantos mil hão-de ficar, a ver passar as águas. Hoje em dia é o que vêem passar, que agora já não há rebanhos transumantes, vindos da Serra da Estrela, a escapar aos invernos. Cruzavam o Mondego na ponte de Juncais, subiam ao planalto pela estrada do Carapito, e matavam as sedes no Távora, quando chegavam à ponte. Pernoitavam aqui no descampado e largavam de madrugada, que era preciso subir o vale da Ribeirinha, e alcançar Penedono que mirava a deslado, e chegar a Trevões, e a Valongo dos Azeites, e passar às encostas da Pesqueira, onde a parra das vinhas começava a cair.
Assim ficou sem préstimo o logradouro baldio, depois que os gados da serra deixaram de passar. E a quinta do Ferro, por serem tão difusas as extremas, as mais delas cruzes talhadas em fraguedos que o mato já comeu, logo lhe lançou a mão. Bastaram dois campónios a atestar, e um tabelião que tinha um selo branco e pouco escrúpulo. O povo não gostou. E tão mudados eram os tempos, que pôs uma demanda em tribunal, um dia algum juiz decidirá.
Caminha o viajante ao longo da estrada, vai resistindo à inclemência do sol, veremos até onde. A um lado e a outro há longos aramados, a rodear charnecas tornadas em pastagens. Vagueiam nelas manadas de vacas em busca duma sombra, e têm uma estranha cor grisalha, sabe Deus donde vieram. Não têm nomes, como as vacas antigas, nem conhecem o dono, que está longe. Mas têm um número pendurado na orelha. E gorda ou magra, seja neta ou avó, vence cada cabeça um subsídio ao fim do ano. Ao viajante apetecia-lhe voltar atrás, que deixou por lá o senhor Albino sem saber o que fazer à vida, com uma solução aqui tão perto. Mas ele não é dono de vastidões assim, onde as vacas vagueiam à procura de sombra. Só tem umas terras miúdas, que não vencem projectos, nem contam na agricultura moderna da Europa.
O viajante encontra uma carreteira de saibro, leva provavelmente às casas da quinta, que não estão à vista. E bem gostaria de as ver. Mas o caminho é propriedade particular, vê-se escrito ali numa placa. Depois o viajante está alagado em suor, o que não é surpresa, no meio deste forno em que veio meter-se. E sobretudo não quer desfalecer para aí numa valeta, ou vaguear em busca duma sombra, com um número pendurado na orelha, a vencer um subsídio ao fim do ano. Decide retroceder, e em boa hora o faz. Que só a duras penas consegue alcançar a ponte, livrar-se das roupas debaixo dum salgueiro e atirar-se a um pego, antes de começar a deitar fumo. Nu e em pêlo, conforme veio ao mundo, parece ao viajante que uma segunda vez aqui se baptizou.
(...)

À manhã, que há dias não amanhece...

... a luz divina de Sorolla!

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Tributo antigo (cont.)

(...)
Mas o melhor é que nos não lembremos. Já lá vai a velha Dodge amarela, uma chiadeira de molas nos poços do macadame, será do peso do padre, Santa Eulália o acompanhe. Tem ele um automóvel aí, numa garage improvisada lá para os fundos do povo. Para o que lhe havia de dar, um dia apareceu aí com o animal, espécie de cavalgadura sem ferraduras, preto retinto, com dois enormes olhos de sapo no focinho, a encimar uma larga dentuça de varetas de metal, não sabe a gente se vai a morder ou se vai a sorrir. Foi uma exaltação na garotada, e tão grande era a nuvem de pó na estrada como a fumarada escura que lhe escapava das tripas ruidosas. Mas o padre, ao que consta, não se ajeita bem com a alimária. Um dia destes quis pô-la ao sol, e só à custa de muita força de braços ela soube mover-se. Parece que os ratos já tinham aproveitado o estofo dos bancos para fazerem criação, quem vai chamar-lhes parvos. Em todo o caso, mesmo que estivesse o animal disponível para a caminhada, dez quilómetros para cima com outros tantos para baixo, não no estaria hoje o padre, com a celebreira que ainda arrasta.
Bem vistas as coisas, tolerância para com ele não me falta, coitado. Uma mulher é diferente. Mas não se enterra assim um homem sozinho numa aldeola que nem vem no mapa, sem ter quem o use e o cuide, à sua volta uma caterva de aldeãos sujos e miseráveis, crendo no céu e no inferno como lugares físicos e verdadeiros, triste rebanho bíblico a viver no esterco com ninhadas de filhos, e a pedir fiado, para se alumiarem, meio litro de petróleo que chega no carrão, de mês a mês. Fica o homem confinado entre sacristia e altar-mor, num gineceu de bafio, obrigado a acreditar nas trapaceiras que infantilizam mais a desgraçada gente, a prometer-lhes a eterna ventura no além, para que eles aceitem resignados a miséria em que vivem, para que eles continuem a suportar a canga do servilismo até ao último sopro, os bens deste mundo não são dos bem-aventurados, porque deles é o reino dos céus e só esse contará. Levantam-se, noite ainda, e fazem troar pelas calçadas os tamancos ferrados de pau para acudirem à rega da horta de que se alimentam, para sacharem o milho que tratam às terças com o dono da terra, para segarem, no corgo, a erva da vitela que trazem ao meio-ganho, para cevarem o porco que hão-de levar à feira de Agosto, e de que esperam algum sobejo depois de pagar a renda, depois de entregar a côngrua, depois de comprar uns farrapos aos filhos nas tendas ambulantes.
Levantam-se gelados de frio para apanharem as castanhas nos soitos do senhor conde, de que hão-de receber a mais minguada parte, e lá vão, ainda a manhã anda em Castela, a picareta às costas e o gasómetro de acetileno na mão, a caminho das minas da serra, as botas de pneu já na última e os pés enterrados na lama das galerias, um dia, que ainda vem longe, vão todos empenhar-se e pagar a um passador que os leve daqui para longe, hão-de passar a fronteira a salto, de noite, como ladrões de quinta, hão-de cruzar a pé serras geladas fugindo aos carabineiros, porque essa há-de ser a única forma de escapar a esta miséria. Por enquanto levantam-se cedo, ainda meninos, e vão guardar as ovelhas merinas dum senhor doutor por esses montes, pobres enjeitados cujo fito maior é escapar à fome, é poder adormecer à noite sem o relógio da barriga a dar horas, conhecem as chalanas pelo nome e pelas marcas da pelagem, e levam de farnel um bocado de pão e figos secos numa meia velha da patroa, e lá vão, a sonhar com os vermelhos de anilina com que hão-de pintar o rebanho em chegando a festa da Senhora da Saúde, hão-de dar três voltas à capela com o carneiro enfeitado à frente, a cabeça do rebanho irá juntar-se à cauda e então há-de o pastor sair da roda e ver o gado a rodar, como tonto, à volta da santinha que o guarda das doenças, e há-de ser então tal padre, tal pastor, nem sempre a comparação nos sai assim tão exacta e percuciente, com perdão da palavra.
Depois, em chegando Junho e o calor apertar, há-de o manajeiro marcar o dia do encontro no Chafariz do Vento, e lá irão por esses caminhos os homens e as mulheres, estropiada hoste que assim vai à conquista das searas do Ribatejo, do trigo ou do arroz, se acaso maleitas e sezões a não dizimarem primeiro. Mas temos que ver ainda se o pregador põe a chorar ou não o mulherio na missa da santa, caso em que se dará por bem empregue o dinheiro que ganhou, vede, irmãos e irmãs, como sois indignos da misericórdia de Deus, porque chafurdais no pecado e mantendes cerrados os ouvidos à voz benigna do Senhor, e cultivais o orgulho e a soberba quando devíeis ser submissos e obedientes diante da palavra da Santa Madre Igreja e das autoridades, pois não há em todo o mundo um jardim de paz e de ventura como esta nossa pátria eleita pela Virgem para sua morada na terra, e tudo isto é obra e sacrifício dos sábios governantes que Deus nos mandou e que vós não respeitais cabonde, vede só o que vai de guerra por esse mundo, mormente a desgraça dos nossos vizinhos espanhóis que Deus, na sua infinita misericórdia, acabou por salvar aniquilando os vermelhos, os iníquos de entre eles, e por isso três vezes amaldiçoado há-de ser aquele que não fechar os olhos do corpo e da alma às tentações e às falácias do mundo, e aquele que praticar a soberbia e a vaidade, e a ambição e a inveja, pois bem sabeis, irmãos e irmãs, que Deus desprezará o primeiro que na fila se colocar para receber no dia fatal os presentes divinos, e lhe pegará pelas orelhas, e o expulsará para o último lugar da divina quermesse.
Fica o homem, coitado, preso no que diz, condenado a acreditar naquilo que lhe resta, a sua própria rotina, e na repetição mecânica dos indecifráveis latinórios de baptizados e enterros, em verdade, em verdade vos digo, meus irmãos, que já não sei se vos digo aquilo em que acredito, ou se creio, afinal, naquilo que vos digo. Que um homem há-de cansar-se duma vida de encenações. Sabemos, bem entendido, que todos os rituais são importantes para organizar as vidas onde mais nada existe, e tirá-los às pessoas é deixá-las à solta, num escuro vazio. Mas também é verdade, quando a prática tanto se distancia da realidade, que em certo momento perde a retórica todo sentido e o ritual toda a eficácia. Fica apenas um balão vazio, que vitimará o mesmo encenador. Por isso eu compreendo o pobre padre, que se adormece no vinho, outros descambarão em práticas mais inadequadas, quem sabe se mais humanas.
E lamento o que há dias aí se passou no enterro duma velhota, que nem todos os homens são pacíficas ovelhas no redil do Senhor. O padre, que não podia adivinhar-lhe o passamento, apanhou nessa tarde uma bebedeira de caixão à cova, deixem que passe a coincidência involuntária. E, ao apresentar-se na igreja para encomendar a defunta, deu em recusar-se-lhe o palavrório do responso, o padre não atinava duas com duas, engrolada a língua no sarro da vinhaça. O burburinho ganhou corpo, vieram os maçónicos da venda, todos a ver qual era o primeiro a chegar-lhe a roupa ao pêlo, paramentado e tudo, com a estola, embora, às três pancadas. A defunta acabou por regressar ao tugúrio donde veio, e foi tal o alevanto que ninguém se dispôs a levá-la ao cemitério, com o padre naquele estado. Até que alguém agarrou nela às costas e lá foram, bem encomendada não terá descido à terra. Com mais sorte andou o padre que teve quem o guardasse, e por ele pôs mão até correr por dentro os ferrolhos da porta.
Não ficam bem tais maneiras, a meu ver, nem o povo recebe bons exemplos donde eles podiam vir. Por mim, cumpro o meu papel sem abdicar. Nunca pedi ajudas a ninguém para ir abrindo estas cabeças rudas, para os obrigar a lavar os pés nem que seja nas lajas do ribeiro, e para deixar nas mãos de cada um alguma arma útil amanhã. Mesmo que nenhum deles tenha consciência disso. Se assim não fosse, por certo me havia de acontecer a mim pior que ao padre.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Tributo antigo

Daqui desta janela vejo o mundo, o pouco ao menos que dele se deixa ver. Como o padre que lá vai, cambaleando, a caminho da paragem da carreira. É segunda-feira de Páscoa. E todos os anos, na segunda-feira de Páscoa, acontece a mesma coisa. Sua reverência sai de casa, vermelhusco e azamboado, a arrastar o corpo mole até se desfazer dele num banco da velha Dodge amarela, que passa aí ao meio dia. Vai à vila, dizem as línguas más, sossegar a consciência junto do arcipreste, e confessar o pecado da bebedeira pascal. É assim todos os anos, toda a gente já se habituou ao ritual, e olha o vulto hesitante do padre com tolerância ou desprezo, conforme o caso de cada um.
Já é sabido, depois da missa lá vem o almoço, e pelas três da tarde começa o compasso. As primeiras casas são as da rua de cima, atrás da fonte, têm os homens que se adiantar para não serem apanhados em falso, seria grande heresia. Nas outras pode o dono ficar mais um migalho no adro. A função só termina já noite cerrada e o padre vai alargando os seus vagares, à medida que os copos de vinho fino se lhe acumulam no estômago, e a litania das bênçãos dá em sair-lhe mais empastada da garganta.
Vai o da campainha lá na frente, um garoto qualquer, a chocalhar o badalo por tudo e por nada, a anunciar o movimento. Depois vem o da cruz, homem maduro, de opa avermelhada. Entra sisudo e oferece a prata em volta aos beiços da assembleia, ainda não terminou e já o padre está chegando, a casa é térrea e mal iluminada, e o denso vulto atravessando a soleira mergulha o adjunto na obscuridade. Há saudações canónicas ao bem-estar de corpos e ao sossego de espíritos, aleluia aleluia, toda a gente sabe de cor o salmejar mas apenas o padre o recita e alguns o tomam a sério, não quer vossa reverência um copo de vinho fino, uma fatia do nosso pão leve, Maria traz lá uma cadeira do quarto.
Discreto entrou o que recolhe os donativos, ora a moeda presa nos beiços duma laranja, ora o óbolo escondido num envelope fechado, di-lo-ão mais generoso, inventam os homens estas cerimónias e nós ficamos ao certo sem saber. Traz o rapazote um pequeno saco de veludo encarnado, de vez em quando toma-lhe o peso com ambas as mãos e alegra-se de verdade, sem compreender porquê, à medida que o vê ganhar corpo e substância. O saco tem laços de garrote, a cada função compete a conveniente palamenta, que a igreja não dispensa. E estes são tempos de ocorrência abundosa de meios, os humanos e os outros, vasto e submisso é o rebanho, não é o que se verá daqui por uns anos, um dia lá chegaremos.
Este do saco há-de ser rapaz de confiança, sabido como é dispor o demo de muitas artimanhas e vastíssima experiência em malas-artes. Ora desviar para bolso próprio o que à santa igreja mais convém seria perdição do pecador e grave dano do padre. Por isso escolhe sempre um moço de família para a função. Desde há uns anos, para evitar as tentações mais correntias, vem-na ele reservando a um rapazito que tenho aqui na escola, não sei com que proveito, do padre falo, é claro. Por enquanto é ele atilado quanto basta, na aula pelo menos, quanto ao resto não porei as mãos no lume. Consta que o padre o tem encomendado para seguir o seminário, única forma de fugir à fatídica enxada, talvez venha ele a escrever estas histórias que por aqui hoje acontecem, um dia Deus o dirá.
Casas há em que o padre se demora mais um pouco, e não será do calor da recepção, que em todo o lado é cabonde alvoroçada. Talvez seja do conforto da casa, ou tão só desta sabida conivência com as famílias mais gradas, os séculos ensinaram à igreja tais diplomacias, só as não vê quem não quer, a pobreza e a humildade pertencem ao sermão, e a igualdade só no céu a encontraremos, em na havendo. Sentou-se agora o padre num velho canapé, ajeita-lhe a dona da casa as almofadas em volta das cadeiras, ao menos tem o pobre, neste dia, direito a cuidados de mulher. Estende sua reverência um pouco as pernas, já entorpecidas do vasto caminhar, enquanto corresponde à geral alegria dos rostos e à particular disposição do dono da casa, não há como este júbilo no coração dos humildes. Tirai às gentes estes rituais e a vida será logo um vale de lágrimas, sem interregno nem sentido, um chapinhar na lama dos caminhos, porém hoje o mesmo Cristo ressuscitou dos mortos, aleluia aleluia, vai mais um copinho antes da partida, senhor abade.
Cá fora vai a tarde escurecendo, mal se distinguem ao longe os campos de centeio, verdes cabeleiras a ondear ao vento, nem se define já com precisão a cor dos lilases a espreitar às paredes das hortas, ficou só o rescendente aroma a espalhar-se por estas fragas do Cabeço, sete casas nos faltam antes de recolher à sacristia e arrumar a palamenta, aleluia aleluia.
No fim do compasso, cansado o corpo de tais trabalheiras e fatigada a alma destas desobrigas, recolhe o padre em casa toda a quadrilha. É o momento do caldo verde e do galo capão em molho de vilão, pois que se pode outra vez comer carne lá estão as mãos da velha cozinheira afeitas ao pitéu. Exultam os estômagos da rapaziada, que todo o sacrifício foi do galaroz, mas cada um tem seu destino e hora, e os deste há muito eram conhecidos, só ele talvez os não soubesse. O padre pôs-se à vontade, libertou finalmente os pés nas chinelas de trapo, tira o cabeção e abate as defesas perante o garrafão de tinto. Isso vem a produzir momentos de risada aberta e sã camaradagem, parece isto uma santa irmandade primitiva, e acaba por levar a um pesadiço torpor, rebolam entarameladas as palavras nos beiços orlados de gordura, que a gente é de gesto rude, e já as ideias se enovelam, parecem tropeçar umas nas outras. É tempo de deixar aberto o campo ao sono, amanhã voltaremos a ver-nos, quem sabe se ainda nos lembraremos disto.
(Continua)

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Ecos da Sonora XII

CRÓNICA DUMA MORTE ANUNCIADA - Gabriel Garcia Márquez
A história não podia ser mais simples. Tão simples e tão breve que não existiria, não fosse o espantoso modo como está contada.
Num quadro rural da América Latina, casa um rapaz afamado com uma rapariga comum. Ao dar-se conta de que ela já não traz a virgindade, na mesma noite a devolve à procedência, deixando-a nas mãos da mãe sem mais explicações. Perante um desfecho tão funesto, reagem dois irmãos dela:
- Vá, menina, diz-nos lá quem foi!
Ela demorou tão só o tempo necessário para dizer o nome. Procurou-o nas trevas, encontrou-o à primeira vista entre tantos e tantos nomes confundíveis deste mundo e do outro (...)
- Santiago Nasar - disse.
Ficamos na dúvida nós e ele, que lhes morre às mãos pouco depois, à facada. E assim a honra foi limpa.
Quem está encarregado de nos contar a história, vinte e tal anos depois, é um comparsa secundário, que pertence ao grupo social mas não desempenha na intriga qualquer papel de relevo. Fala com todos os intervenientes, que lhe são familiares, traz-nos de cada um o que ele sabe, deixa-nos pistas de entendimento do mundo em que a acção se move, e vai construindo à nossa frente a sua teia sedutora. Tudo isto servido por uma tradução de luxo, da mão de Fernando Assis Pacheco. Chega o leitor ao fim e põe-se a chorar por mais, porque um pitéu assim é sempre pouco.
Escrever não é juntar palavras, está visto, como quem se ocupasse a amontoar tijolos. Antes há-de ser seleccioná-las, as palavras e as ideias, e dar a cada uma a sua função, segundo uma arquitectura que o artista engendra e sente.
Lições de escrita criativa?! Não há melhor lição que uma boa leitura!

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Portugalmente (21)

[Episódio para o Che Guevara, que foi encerrar o seu capítulo a Cabinda]
(...)
É o que sucede a quem se põe a viajar, dobra-se uma esquina e logo nos dão os olhos numa surpresa nova. Ora este viajante é imaginativo, quando não fantasista, conforme já se viu. Mas a tanto não se atrevia a sua imaginação. Pois o que está agora a ver, depois que passou a ponte da ribeirinha e se despediu de Palhais, é um avião a jacto em carne e osso. Estacionou ali ao cimo da colina, num descampado. E embora mostre um ar afoito e destemido, capaz de engolir o vale inteiro, não parece ter alento para voltar às alturas.
O viajante reconhece nele um velho companheiro de aventuras, e fica em grande sobressalto. Pára o carro à beira da estrada, sobe uma parede e corre para ele. Se alguém o vir de longe, o senhor Máximo do seu alpendre, vai dizer que este viajante é um tolinho. Porque se põe a andar à roda do avião, a passar-lhe a mão afectuosa pelo nariz, pelo bordo quente da asa, pelo fio dos lemes da cauda, pelos flancos redondos da barriga. Mete a cabeça na boca do motor e no escape da turbina, à procura de imagens e de cheiros antigos, quem o vir de longe não sabe que o viajante tem lágrimas nos olhos, porque lhe acordaram de súbito no peito emoções que viveu, e viu viver, num tempo tão antigo, e tão presente, e tão contraditório, parece mentira que tenha havido um tempo assim.
E no entanto houve. Que o diga este soldado, que se chama Pessoa, e mais lhe valera não o ser, antes um bicho qualquer. Está dentro deste avião de alerta, amarrado no minúsculo habitáculo, e vai à procura dum quartel que está em desespero nos confins do sertão. Veio ao rádio aos gritos, a pedir um apoio de fogo, por ser o fogo tanto à sua volta. Lá vai ele no ar, e já sente na cauda uma explosão violenta, já o motor se lhe apagou, e já o duro pégaso de ferro recusa obedecer aos seus comandos. Este soldado que se chama Pessoa nunca teve na mão uma máquina tão perfeita como este motor. Mas nem ele responde ao arranque de emergência, e são os pântanos da margem do Cacine que se aproximam vertiginosamente. Procura ainda a direcção do quartel, aonde veio como um fogo protector, agora é ele quem vai precisar de protecção. Arranca a duas mãos o manípulo de ejecção, mal se dá conta e já está cá fora, atirado ao vento, nem lhe dão tempo de ver onde cair porque já se vai rasgando numas árvores, a altitude é tão baixa que nem o pára-quedas teve tempo de abrir. Passará esta noite escondido no mato, o corpo a sangrar-se em farrapos, e amanhã há-de encontrá-lo vivo um grupo de caçadores pára-quedistas. E muita sorte teve ele, que foi só o primeiro e escapou. Nos próximos quinze dias cinco aviões vão desaparecer nos sertões deste império, levados por um fogo misterioso. E quando vierem os caçadores pára-quedistas não acharão lá dentro ninguém vivo.
O viajante senta-se numa pedra, amparada a cabeça em dois punhos. Quem o vir de longe vai dizer que é um tolinho, ali sentado à torreira do sol, amargurado e solitário. Mas o viajante não leva isso a mal. Há pesadelos que só pode entender quem os viveu, e ele muito suspeita de que este povo é, há séculos, um rebanho tresmalhado. A dona Ermelinda brasileira numa padaria de S. Paulo, o senhor Máximo e a mulher numa fábrica de borrachas de Lyon, o soldado Pessoa a despenhar-se num sertão do império, e o senhor Albino a lavrar as suas terras miúdas neste vale da Ribeirinha, sem saber o que fazer à vida. Enquanto andar cada um afogado na sua procela pessoal, não haverá para eles tempestades colectivas. E o viajante, que se apercebe disso, não é capaz de afastar os olhos do vulto deste avião, nem de arrancar da memória um milhão de portugueses, que durante um ror de anos deu o tempo melhor da sua vida, ou a melhor parte do seu corpo, como neste caso do soldado Pessoa, para alimentar epopeias de fumo. Dez mil deram o corpo e o tempo inteiros, que era tudo o que tinham, para os sátrapas dementes que mandavam no país terem tempo de fazer as exéquias dum império de brumas. E nenhum tempo lhes foi suficiente.
Tenha embora a questão importância primeira, não pode o viajante ficar aqui a vida toda, a pensar numa bezerra que está morta. Por isso vai regressando ao carro, que a esta hora é um forno. A ribeirinha já fugiu para a direita, conforme ficou dito, e o viajante está parado ao fundo do vale. Ia agora mesmo voltar-se para trás, para a última mirada, de que fala o manual dos viajantes. Mas este não quer fazê-lo, tem medo de que lhe fiquem lá os olhos. E vai precisar deles, que já em frente se alargam as charnecas da quinta do Ferro, a reclamar atenção.
(...)

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

4 de Fevereiro

(...)
Bastava uma chuvada para trazer a fome, num destacamento que partilhava com umas dezenas de companheiros perdidos no sertão, ao lado duma sanzala miserável. Uma pista de terra que as chuvas alagavam e onde ninguém arriscava aterrar, alguns barracões de madeira roídos da formiga, o paiol das munições e uma cozinha onde os ratos faziam criação, no mastro risível do terreiro içavam às vezes a bandeira da soberania. Comeram os mangos bravos da velha picada abandonada, perderam-se em bandos no capim, de arma aperrada, sem avistarem um só dos burros do mato que deambulavam na paisagem, sem poderem despejar-lhe no bucho um carregador inteiro, a fome continuava e um dia Gaspar montou num velho avião e foi à caça.
O bicho estava no visor, partido em quatro pelo retículo, o avião ganhava altura e despenhava-se sobre ele num frenesi desesperado, alongando o focinho raivoso enquanto semeava estrondos na paisagem. As armas espirravam frenéticas e ninguém podia perceber onde iam parar as putas das balas, o bicho estava no visor e continuava aos saltos provocantes no capim, se prolongarmos aqui a picada um segundo talvez nos não escape, um só segundo e resgatamos o pundonor, mais um segundo e Gaspar sente o avião a afundar-se no capim, sente-o a pentear os arbustos com o rebordo grosso das asas, sente-o a rasgar a barriga no mato rasteiro, o bicho fugiu do visor e parou de saltar quando um trovão lhe desabou no espinhaço e o matou.
Gaspar viu também a morte que ali estava. Puxou o avião para o ar antes de a viseira partida lhe ter rasgado os olhos, antes de o capacete se estilhaçar contra os ferros da carlinga, viu a morte e execrou-a num clarão de raiva, e logo se deixou inundar por uma indescritível renúncia, quase mística, quase doce, aquela morte era distinta e inelutável. Caiu sobre ele um manto escuro de aniquilamento, perdeu a consciência por força da violenta pancada na cabeça e já não assistiu à derrocada restante, nunca chegará a perceber como saiu vivo daquilo. (...)
[
in As Aves Levantam Contra o Vento]