segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Portugalmente (22)

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A quinta do Ferro faz lembrar um condado, vista à proporção destas terras minúsculas. E de ferro só conserva o nome, o mesmo do cristão que nos princípios do século XVII a possuía por aforamento. Ninguém sabe hoje como se veio a topar-lhe a marosca, em paragens remotas e apartadas como estas são. Longos, porém, e perspicazes, eram os braços e os olhos da hidra da Inquisição, que um dia o acusou, e condenou, por práticas marranas, contrárias à santa fé. E como quem perde cem, bem pode perder mil, levado que foi o marrano à fogueira, acabou a quinta confiscada e posta a leilão. Mas do Ferro ficou, até hoje.
Passaram nela os condes de Marialva, e a mordomia de Santo António de Ferreirim, e mais tarde morgados e viscondes. E gerações de servos maltrapidos, que ajardinaram as várzeas à beira do rio, e plantaram pomares, ceifaram as charnecas, e cobriram de matas estes montes. Quando a revolução dos cravos um dia cá chegou, alguém tirou a prova às contas desses tempos, e vozes houve a reclamar a ocupação da quinta. Mas a ocupação não chegou a fazer-se, porque alguém de olho afinado viu no caso uma aventura sem destino.
O viajante encontra uma ponte medieva, deixa o carro numa sombra e cruza o rio a pé. A ponte é de um só olho, e assenta nuns fraguedos que ali estão há mil anos, e que outros tantos mil hão-de ficar, a ver passar as águas. Hoje em dia é o que vêem passar, que agora já não há rebanhos transumantes, vindos da Serra da Estrela, a escapar aos invernos. Cruzavam o Mondego na ponte de Juncais, subiam ao planalto pela estrada do Carapito, e matavam as sedes no Távora, quando chegavam à ponte. Pernoitavam aqui no descampado e largavam de madrugada, que era preciso subir o vale da Ribeirinha, e alcançar Penedono que mirava a deslado, e chegar a Trevões, e a Valongo dos Azeites, e passar às encostas da Pesqueira, onde a parra das vinhas começava a cair.
Assim ficou sem préstimo o logradouro baldio, depois que os gados da serra deixaram de passar. E a quinta do Ferro, por serem tão difusas as extremas, as mais delas cruzes talhadas em fraguedos que o mato já comeu, logo lhe lançou a mão. Bastaram dois campónios a atestar, e um tabelião que tinha um selo branco e pouco escrúpulo. O povo não gostou. E tão mudados eram os tempos, que pôs uma demanda em tribunal, um dia algum juiz decidirá.
Caminha o viajante ao longo da estrada, vai resistindo à inclemência do sol, veremos até onde. A um lado e a outro há longos aramados, a rodear charnecas tornadas em pastagens. Vagueiam nelas manadas de vacas em busca duma sombra, e têm uma estranha cor grisalha, sabe Deus donde vieram. Não têm nomes, como as vacas antigas, nem conhecem o dono, que está longe. Mas têm um número pendurado na orelha. E gorda ou magra, seja neta ou avó, vence cada cabeça um subsídio ao fim do ano. Ao viajante apetecia-lhe voltar atrás, que deixou por lá o senhor Albino sem saber o que fazer à vida, com uma solução aqui tão perto. Mas ele não é dono de vastidões assim, onde as vacas vagueiam à procura de sombra. Só tem umas terras miúdas, que não vencem projectos, nem contam na agricultura moderna da Europa.
O viajante encontra uma carreteira de saibro, leva provavelmente às casas da quinta, que não estão à vista. E bem gostaria de as ver. Mas o caminho é propriedade particular, vê-se escrito ali numa placa. Depois o viajante está alagado em suor, o que não é surpresa, no meio deste forno em que veio meter-se. E sobretudo não quer desfalecer para aí numa valeta, ou vaguear em busca duma sombra, com um número pendurado na orelha, a vencer um subsídio ao fim do ano. Decide retroceder, e em boa hora o faz. Que só a duras penas consegue alcançar a ponte, livrar-se das roupas debaixo dum salgueiro e atirar-se a um pego, antes de começar a deitar fumo. Nu e em pêlo, conforme veio ao mundo, parece ao viajante que uma segunda vez aqui se baptizou.
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