segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Portugalmente (20)

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Quem não está muito afadigado é o senhor Máximo, que o viajante encontra finalmente, sentado nas escadas do seu alpendre. Depois de viver muitos anos em França com a mulher, que também se fartou de trabalhar numa fábrica de borrachas, voltou com uma reforma de lá. Dá-lhe para viver, não se alargando os gastos. Tem um chão para os renovos da casa, onde vai na sua carrinha de caixa aberta, porque fica lá para baixo, à beira da ribeira. No princípio pensou em arranjar umas vacas, tinha espaço para elas ali atrás, no quinteiro. Ouviu falar nuns projectos da CEE, mas não se entendia com as papeladas e perdeu a vontade. E ainda bem, que os preços da agricultura não pagam o trabalho que ela dá. A maior parte dos fenos que aí se colhem nas terras são vendidos para fora, até os espanhóis vêm buscá-los em camiões. Tivesse ele terras suas e o senhor Máximo enchia-as de árvores, por tão despovoado ver o mundo. Assim, no fim do verão vai ao mato com a sua camioneta, e recolhe lenhas para o inverno.
Com tantos fogos no verão, o viajante suspeita que há milagre, nos verdes pinheirais que ainda cobrem esta encosta do vale. Milagre da Senhora da Ribeira?
- Milagre será, mas o santinho é outro!
O senhor Máximo vê-se que tem orgulho nas matas que resistem por estes montes, daqui a Sebadelhe, até às Arnas e à Cunha. Diz que já houve casos aí, de princípios de fogo. Mas as pessoas acudiram logo, quando toca a rebate toda a gente vai, não é como noutras terras. Ainda há pouco tempo ficou ele uma noite inteira, de caçadeira na mão, a fazer uma espera à casa de um fulano de quem se boquejava, diziam que era comunista e punha fogos. Às tantas quem apareceu foi a mulher, que não ganhou para o susto. Por medo ou por outra coisa, o facto é que as coisas sossegaram.
Isto é o que diz o senhor Máximo, mas não basta para tranquilizar o viajante, que se lembra da hecatombe dos últimos trinta anos, e dos quatrocentos mil hectares que só no verão passado arderam. No princípio eram os comunistas os culpados de tudo, tinham costados largos e estavam à mão de semear, quem bem sabia disso era um abade de Gouveia, de quem há muitos anos já se ouviu falar. E o senhor Máximo, que aprende bem as lições, ainda hoje lhes faz esperas, de caçadeira aperrada. Depois foram desfilando os madeireiros porque lhes interessa a madeira barata, e os pastores dos rebanhos para renovarem os pastos nos montes, e os construtores civis porque precisam de espaço para os seus negócios, e os industriais do combate ao fogo porque mais terão a ganhar quanto mais fogos houver. Por mais de uma vez se encontraram nas matas engenhos incendiários largados de avião, e pára-quedas presos nas árvores. No fim de tudo não atina o viajante, entre tantos arguidos, quem mais é de temer. Com muita pena o diz, mas não gostava de ser bombeiro. Parece-lhe, afinal, que há que temer-se do país inteiro.
E andando, andando, chegou o viajante à margem da ribeirinha, por força haviam de encontrar-se. Nesta ponte se encontram e separam, que a estrada passa à margem esquerda, por onde o viajante seguirá, e a ribeirinha lá foge para a direita, à procura da sua foz. Depois de matar as sedes que encontrou, em tantas hortas e várzeas, forçoso era chegar aqui exausta. E em tal estado de cansaço e fraqueza, que a ribeirinha a custo se move, afogada em juncos e agriões do rio.
Porém, no fim do verão, logo às primeiras chuvas, hão-de voltar as águas da Fonte do Milho, e do ribeiro dos Cucos, e das vertentes do monte Galgueiro, e de quantos riachos há nele. E quando chegar a primavera, nesta margem agora quase seca, hão-de florir outra vez as margaridas do campo.
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