quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Espelho da nação

"O exército é o espelho da nação, e isto era o que se lia nos panfletos colados a esmo nas ruas da cidade, virava-se uma esquina e logo tropeçavam os olhos naqueles rectângulos de cor envergonhada e baça, não tão baixos que pudesse mão herética meter-lhes a unha e silenciá-los, nem tão altos que risco houvesse de perder-se na atmosfera da tarde a jaculatória patriótica, o exército português é tão bom como os melhores. Muito melhor que os melhores, diremos nós para que a verdade se saiba, pois convém a César dar o que de César é, e para o provar vamos nós ali à foz do Massanza, um destacamento avançado onde um pelotão de atiradores vai defendendo a soberania, do outro lado do rio alastra na paisagem, entre arames farpados, uma sanzala de realojados, que estendem ao sol as misérias da lepra. Um dia os rústicos soldados saíram dos abrigos e deram-se a construir uma pista de aterragem, tinham-lhes prometido uma avioneta que poisaria ali uma vez por quinzena, não há nada melhor para romper o isolamento, para resistir à loucura ou receber o correio que houver, sempre se tem a ilusão duma ligação ao mundo. À custa de tempo e de suor aplainaram à mão esta faixa com dez metros de largo, esquartejaram umas dúzias de mangueiras bravas que arrastaram para as bermas, a pista começava logo à beira do rio e alongava-se até tropeçar ao fundo na colina, o resto do milagre haviam de fazê-lo os aviadores. E um deles o terá feito, uma vez sem exemplo, aterrou um dia a passarola mas só saiu daqui deixando a carga toda e metade da gasolina, que a pista foi celebrada com cerveja mas não ia além de sessenta metros mal medidos, tudo quanto podemos fazer é passar em voo rasante e largar os sacos de biscoitos e massa, é largar as latas da marmelada e do atum, é largar os sacos do chouriço e da carne, se a houver. E foi a partir daí que toda a canzoada da sanzala passou a regular a vida por um estranho calendário, mal se ouve ao longe o roncar dum avião e logo os bichos se põem a atravessar o rio, espadanando na água as patas frenéticas. Cada um escolhe o seu terreno ao longo da pista, e é  vê-los a disputar aos irados soldados os restos dalgum saco rebentado, lá vai este a fugir para o mato com um par de chouriços nos dentes, aquele abocanhou um pão, a princípio ainda se ouviam tiros e rajadas a afugentar os bichos, agora já nem isso, toda a gente afinal concluiu que a vida custa a todos, que todos ficam parecidos no retrato, o exército português é melhor do que os melhores.

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Sentido

Não foi aférese nem apócope o que se passou, antes fosse. Foi só síncope. 
Tinha caído a noite, ia eu a traquinar na sala dum lado para o outro, ao chegar à esquina caí redondo no chão. A cabeça bateu numa coisa qualquer, talvez um duro canto da pedra da lareira, tão duro que me deixou um lanho na cabeça. 
O que havia a fazer foi o que se passou: levaram-me ao centro de saúde, meteram-me numa ambulância e mandaram-me para o hospital. E lá fui eu na maca do bombeiro, adivinhando as curvas da estrada que sei de cor, até que ele me entregou na urgência.
Foi então que saltei cinquenta anos para trás e dei comigo numa ambulância militar, que buzinava frenética pelas ruas de Luanda. Era de noite e eu trazia a cabeça num bolo, os olhos entrapados nos cacos da viseira, uma miséria.
Na circunstância, os médicos e a juventude fizeram o seu milagre. Mas este hospital de agora não dispõe de bons médicos, nem se pode contar com a juventude do paciente. À meia noite, estendido numa maca e rudemente tratado, ao ver-me enfileirado num corredor sem fim onde velhos tossiam, assinei um termo de responsabilidade e fui para casa, contra o parecer do médico. O TAC nada acusava. E um fim de semana inteiro a corar, pendurado no estendal, à espera de amanhã,  tinham escasso sentido.