sexta-feira, 30 de setembro de 2011

A culpa?!

Ora essa!!!
É do 25 de Abril, claro!!!

A Líbia Nova

A dos protectores do povo líbio! Uns canalhas desperados que vieram de Paris, de Londres e da América, apertar a mão à Al-Qaeda.

Convirá que o pobre desconfie...

... perante esmola tamanha.
Motivos é o que não falta!
Na dúvida... paus por baixo!

Campanha para a história (3)

(...)
E passou então a dedicar-se aos périplos terrestres. Percorria sanzalas, procurava os velhos sobas em busca de algum resquício do poder gentílico esmagado pelo cilindro colonial, discutia com eles aspectos arqueológicos do tratado de Simulambuco. Visitava amigos velhos da Causa, onde quer que algum houvesse, refugiado no bucolismo duma roça de café, e discutia as vantagens oferecidas pela criação das tilápias, na alimentação dos bailundos contratados.
Foi numa dessas excursões que eu tive o prazer de o acompanhar, quando aguardava evacuação para Lisboa após um acidente grave. Por picadas que a memória me não guarda, chegámos a casa dum velho amigo do príncipe, que ali vivia com a mulher e administrava a fazenda. A filha, que também lá estava de férias, frequentava um colégio em Joanesburgo.
E foi pela mão do velho fazendeiro, que trazia espetada no peito a barretina dos meninos da Luz, que me iniciei nos segredos do cafeeiro, nos cuidados que pede e nas ferrugens que o atacam. E que vi pela primeira vez como estava inteligentemente organizado o trabalho na fazenda. Como os contratados dispunham duma ampla camarata onde se amontoavam. Como se construíra uma poderosa torre, com grande quantidade de armamento a distribuir pelo pessoal em caso de algum ataque, não fosse o diabo tecê-las. E como na cantina, ali ao lado, gastavam os pobres os salários, em dívida que se reproduzia como as cabeças da hidra mitológica.
Regressado a Lisboa, já não voltei a Angola. E do príncipe herdeiro dos Braganças não voltei a ter notícias. Não soube dos resultados da sua missão civilizadora, nem sequer se ela cumpriu os planos dos estrategas e mereceu uma medalha de serviços distintos. É que alguns a terão ganho, com menos boa vontade.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

A Gesta... e o Museu dela

Ora a rir, ora a chorar, fomos ao mar.
Ou foi ao ar?!

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

da capo

Pegos floridos

E só voltou a encontrá-la muitos anos mais tarde, acabado de regressar a Vale do Açor, depois de consumir, num estanco de barbeiro carioca, os seus melhores trinta anos. Tinha ido espairecer a alma solitária ao Senhor da Pedra, ali abaixo de Moreira de Rei, talvez conheça. Naquele tempo era a romaria mais popular da redondeza, não havia cão nem gato que não aproveitasse o sol novo da Páscoa para dar um prazer ao corpo, escarmentado pelas rudezas do inverno. Ele havia merendas colectivas pelos outeiros, qualquer um mais descarado podia associar-se, havia bailes de concertina nos largos e terreiros, e sociedades de pândegos que se armavam, tarde fora, à volta duma cartola de palheto, plantada ali sobre dois cavaletes.
Antes, porém, havia a missa e o sermão, em que o povo era chamado a capítulo. Nesse tempo era assim, e mal visto ficava o pregador que não deixasse a fungar meia capela. Depois a procissão descia ao vale e voltava a subir a encosta, era aquilo uma serpente colorida a espreguiçar-se por rodeiras e canadas, lenta e compassada, não fosse algum santo sofrer um tropeção e cair do andor.
Contou-me depois que ficara, solitário, à sombra dum carvalho sobranceiro ao adro da capela, sem devoção bastante para tão rudes andanças, a ver recolher a procissão, quando a viu a passar. E disse-me que sentira, neste passo, o coração a saltar-lhe do peito, a querer impor-lhe, embora mal parecesse, a pergunta derradeira, uma última fala com ela.
É que lhe ficara sem resposta o mistério fatal, um enigma cerrado, desde o dia funesto em que descera a correr a ladeira sem fim da Sobreposta, caminho do moinho, onde passou a tarde a ajudá-la na horta. Ia bem, o namoro, a um lado concordavam os pais, a outro tinha ela um riso transparente que endoidava a cabeça, e uns olhos de água que assim devia ser o mar, e um jeito manso de mãos que punha a bulir o peito, só de vê-lo. E foi ao morrer da tarde que ele deixou cair a pergunta, quando é que hei-de cá tornar, a ver-te. E ela, feiticeira, tornarás quando os pegos já estiverem floridos, e quando os moirões estiverem caídos, e quando os mortos forem enterrando os vivos, então cá tornarás. Isto disse e recolheu a casa, que a mãe a reclamava.
Voltou ele a subir a ladeira sem fim da Sobreposta, e chegou a casa já de noite. A cabeça em desconcerto largava perguntas às estrelas, quando estarão os pegos já floridos, e onde os tais moirões caídos, e que mortos a enterrar que vivos. Mas se do céu caiu algum sinal não pôde ele entendê-lo, nunca mais encontrou a hora de voltar.
Quando a viu ao recolher da procissão, gastou um ror de tempo a vencer embaraços, a reconhecer-lhe ao longe a silhueta já pacificada, a estudar-lhe nos modos algum jeito dos antigos sinais, até que se tornou azada a ocasião. Vinha ela a sair o portal da capela, no meio doutras devotas, e logo ele apareceu à mão esquerda, abrindo caminho no adjunto, como quem vai apenas a passar. Entre a hesitação e a surpresa, os olhos negros dela pareceram-lhe cansados, por um momento pareceram-lhe aflitos, pareceram-lhe perdidos. Alguns cabelos, que o lenço deixava a descoberto, não tinham já a antiga luz da seda. E o peito, debaixo da blusa de ramagens, tinha agora uma vastidão inesperada, mas guardava a placidez benigna das imagens doutro tempo.
Uma ira zangada veio em breve a toldar-lhe o semblante, desapareceres assim, nunca mais lá tornares, acabei por casar e fui viver para Sequeiros, hoje encontro-me viúva, tenho filhos por aí, homens já feitos, nunca mais lá tornaste, e os olhos a fugirem, perturbados. E as mãos dele a afoitarem-se para ela, nunca resolvi o teu mistério nem atinei com a hora de voltar, ainda hoje a não sei, tornarás quando os pegos já estiverem floridos, e aqui me hás-de dizer que hora era a tua.
E ela, ainda bonitona, na face uma rosa a abrir. Florescem os pegos todos, à hora em que neles dá o lume das estrelas. Caídos estão os moirões quando os pais já não vigilam. E os mortos enterram os vivos, quando só restarem cinzas num fogo que se apagou. Toda a noite esperei por ti, só a alta madrugada me venceu.
Havia noutro tempo destinos assim, talvez já tenha visto. Bem piores até que o destes dois. Que lá foram, disputando, por entre a multidão, parecia haverem florido todos os pegos do mundo.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Campanha para a história (2)

(...)
Não podia participar em operações, assim fora determinado, e ninguém chegou a saber ao certo se ele podia distinguir uma manete do passo, da mão adocicada duma dama da corte. Mas o que ele não tinha era génio para ficar agarrado ao chão. E era frequente vê-lo, de máquina de filmar a tiracolo, numa risada simpática de boa pessoa, pendurar-se nas missões de reconhecimento. Não havia explosivos em questão, a manobra dos aviões era supostamente menos violenta, e um tal tipo de missão permitia observar o terreno mais de perto. Lá ia ele, encostado atrás à tampa de funil do Dornier, câmara em riste e o dedo engatilhado, debruçado nos janelões laterais.
E raros eram os camaradas que resistiam à tentação de lhe colar o diafragma às tripas. Toda a gente sabia como é desconfortável sofrer certas manobras de voo na condição de saco de batatas. E o tipo de missão propiciava a picardia. Andava-se rodando infindamente sobre a mata, observando clareiras, procurando trilhos, tentando violar a intimidade escura do arvoredo. Exagerava-se então na insistência, forçava-se o aperto duma volta, metia-se um pé desnecessário, na esperança de o ver, de entranha revolta, lançar a carga ao mar. Qual quê! Lá ia ele, rubro e alegre como usavam ser as lavradeiras do Minho, enchendo filmes daqueles verdes de espantar.
Meses passados e o príncipe tinha feito o contacto aéreo. Para as deslocações terrestres dispunha ele duma robusta viatura Volkswagen, com uma estranha matrícula da Europa Central. Nunca se veio a saber como tinha aparecido ali, aventando-se que nascera da generosidade de algum reencontrado correligionário. A pintura pouco mostrava já do branco original, coberta por sucessivas camadas do pó vermelho das picadas. Na sua lógica simples, recusava o príncipe as lavagens, porque as camadas de pó defendiam a chapa das violências do sol.
(...)

Condecorações

Os professores, que há muito tempo não estavam em bons lençóis, foram levados como cordeirinhos a um beco sem saída. Para não dizer que se foram acoitar no fojo que era do lobo.
E o Nogueira já teria abichado uma medalha de serviços distintos, se o Relvas não andasse atarefado, a pendurar nas lapelas do comité central a comenda do Infante.

Atalaia

Às quatro da manhã foram dormir as Ursas. E já entrou de quarto a Orion, com as três Marias à cinta. Lá está ela de atalaia, encostada à chaminé do forno abandonado.
Desde que Artemisa errou a pontaria com as picardias de Apolo, Orion olha para isto e não lhe agrada o que vê.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Campanha para a história (1)

O tempo corria pesado, é certo, no planalto, e os arrastados meses, infindáveis, consumiam as tropas. Mas a situação não estava tão deteriorada que justificasse assim a utilização dos grandes meios, dos argumentos de arrasar.
Foi por isso com alguma surpresa que, nos princípios de 1969, se viu chegar à esquadra dos aviadores do Negage o príncipe herdeiro da dinastia dos Braganças. Seria aquilo uma justificação das famas guerreiras de el-rei D. Miguel, ou uma tardia reacção ao ultimato inglês, pensou o pessoal. Algum inteligente sugeriu que se estava perante uma jogada demagógica dos responsáveis, para iludir o pagode. Mas a malta dispunha dum vocabulário reduzido à técnica, e dum volume de conceitos ainda mais escasso, e quase ninguém percebeu a sugestão.
Sua Alteza tinha uma face de menino, de rósea carnação, atreita a colorações vermelhuscas perante a ironia de algum plebeu menos condescendente. Mas foi notavelmente camarada desde o primeiro dia, guardou no malão os pergaminhos de palácio, e depressa se integrou na rotina da esquadra. De modo tão eficiente o conseguiu que, semanas depois, era perfeita a uniformização republicana.
O jovem herdeiro vinha apetrechado com um belo curso de pilotagem nos helicópteros da Sud-Aviation, ao que se dizia tirado nos céus da doce França. Embora de belo efeito, o argumento era pura retórica. Os portugueses foram, por força dos seus desvarios africanos, as verdadeiras amas-de-leite dos helicópteros franceses. Se os ingénieurs, sempre atentos em Luanda, imaginavam soluções técnicas, era aos portugueses que competia tirar-lhes a prova real. Há muito de português, no êxito que tais máquinas tiveram nesses tempos. E Sua Alteza não foi buscar a França refinamentos técnicos que por cá não estivessem disponíveis no polígono de Tancos, com vantagens gerais.
O pior de tudo é que na esquadra do Negage não havia helicópteros. E andava o pessoal a tentar deslindar a lógica daquilo tudo, quando se soube que ao herdeiro real fora proibido executar missões de voo. Logo ali se percebeu um pouco do que são as jogadas demagógicas dos responsáveis. Mas alguns dias depois o sossego voltara aos espíritos, e o príncipe adquiriu o estatuto de rara flor de estufa, para decoração do ambiente.
(...)

Ladainha

Comecei a ver os gatos alterados, a torcerem o narizito às bolachas, houve mesmo um dia em que entraram em pânico. Foi quando saí à noite e os deixei a ver o canal das notícias.
Eu estranhei aquilo e vim à fala com eles. É que a troika, argumentaram, meteu as mãos nas contas da Madeira e foi o que se viu.
Agora passam a vida no zapping, já dei com eles a rezar a ladainha. E até falam em ir a pé a Fátima, não venha a troika meter também a pata nas finanças das câmaras todas. Aí é que se juntava o bom mais o bonito.

Pois é!

Afinal parece que houve quem resistisse à enxurrada do AJJardim!
E houve quem agisse como cúmplice.
E existiu mesmo um Padrinho sem vergonha!

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Talão de voto

O Relvas é o que está aqui, sem tirar nem pôr. Quanto a devoluções, só com talão de voto.

No meio da vozearia

A palavra exacta e justa. É só ouvi-la.

Fomos ao rio de Meca - 6

(...)
Quando o café estava amontoado em cima do camião, trocados os angolares, ninguém falou uma palavra. Os monangambas puseram-se a puxar o oleado de um dos camiões. A música do Congo derramou-se da caixinha do altifalante, inundou o terreiro, enrolou-se nos ramos verdes das mangueiras. Um branco vermelho começou a dar as suas ordens gritadas, montou as tábuas do pipo do vinho azedo do calor, estendeu panos, ia mostrar as suas bugigangas. Foi quando a gente toda da sanzala retirou em silêncio para dentro das cubatas. O terreiro ficou deserto, a música do Congo derramava-se no ar vazio.
O branco vermelho estranhou tão grande quietação. Olhou em volta, soltou uma praga, viu o sinal da mão do chefe da polícia. Contrafeito, fez calar a música, guardou as bugigangas, mandou apertar os oleados.
Os camiões arrancaram, impacientes, faziam tremer o chão. Uma nuvem de pó envolveu as cubatas, subiu acima das mangueiras altas. O branco vermelho passou, irado, fazia ganir o motor. Sôr Antunes ria na cabina, o braço levantado à despedida do chefe. Negro Paulino, sozinho nas grades, riu também, satisfeito com a sua gente.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Les beaux esprits

A LER dá notícias dum bordel da poesia. Em Barcelona. Las putas são fulana e sicrana e beltrana. E aldeana. E nem lá falta a madame. Que é exigente na qualidade da escrita e da representação.
Vêm à sala uma vez por mês, em diferentes bares da cidade. E o plano é uma rede internacional de prostíbulos.
Dir-me-ás que bordéis é o que não falta. Porém eu acho bem, tanto afinco e produtividade no trabalho poético. É que anda alto, o desemprego, entre os arrebentas do lirismo.

Então foi assim!

No âmbito do Plano de Redução e Melhoria da Administração Central, o governo extinguiu a Inspecção Geral da Administração Local (IGAL), fundindo-a com a Inspecção Geral das Finanças (IGF).
Inconformado com os maus efeitos da decisão, o juiz desembargador Orlando dos Santos Nascimento, publicou no site da IGAL uma carta aos portugueses, onde escreve que "a corrupção ganhou", atribuindo responsabilidades na extinção da IGAL a "uma poderosa associação de autarcas".
"Uma poderosa associação que não anda por bons caminhos, e que não está a arrepiar caminho, quer na redução da despesa pública, quer no combate à corrupção".
A propósito do trabalho da IGAL, é dito: "Estivéssemos nós num país de raíz empresarial anglo-saxónica e seríamos candidatos aos lugares cimeiros, como exemplo para os outros. No nosso, por incómodos, fomos extintos".
A carta esteve online um dia. Até que "foi mandada retirar pelo Secretário de Estado da Administração Local e Reforma Administrativa, Paulo Simões Júlio, que foi inspeccionado sob as minhas ordens, enquanto presidente da Câmara de Penela".
O site acabou por ser desactivado. E o juiz desembargador foi ontem exonerado das suas funções de inspector-geral da Administração Local por "quebra de lealdade institucional".
Um assessor do ministro Relvas garantiu que , com a extinção da IGAL por fusão com a IGF, "a fiscalização vai continuar e será até reforçada com esta fusão".
O ministro Relvas e os seus rapazes! Topas?! Espera-lhe pela pancada!

O crime do inquérito, mais que o inquérito-crime

Ao decidir instaurar um inquérito-crime, para investigar o caso da ocultação, deliberada, intencional e persistente, das dívidas públicas pelo governo regional, a Procuradoria Geral da República acaba de lançar a bóia de salvação ao ogre da Madeira. E por tabela a Cavaco. E a todo o bando do PSD.
O crime e o dolo existiram de facto, e já foram assumidos insolentemente pelo prevaricador. Porém, atolados na gelatina dos preceitos legais, os resultados do inquérito não poderão fazer recair sobre o ogre qualquer sanção jurídico-penal, e assim lhe garantem a impunidade. Porque a manipulaçao das contas públicas, e a ocultação da dívida, são infracções que recaem no terreno político, e não no terreno penal. Jurar cumprir as leis e a Constituição é um compromisso moral, ético e político. O seu incumprimento pode levar à reprimenda ou ao impeachment. Mas não arrasta implicitamente qualquer sanção penal.
A manipulação e a ocultação violam as regras e a transparência da vida democrática, desgraçam a imagem externa do país, agridem o normal funcionamento das instituições. Mas o julgamento político do crime incumbe, e só pode ser feito, por duas entidades: exercitado pelo PR, e avaliado pela AR, (secundariamente é sufragado ou não nas urnas pelo eleitorado).
Ora a instauração do inquérito-crime pelo Ministério Público vem fornecer a ambos (PR e AR) o alibi perfeito para o silêncio cúmplice e a inacção cobarde. Deslocada a questão para o âmbito jurídico-penal, onde não tem hipótese de sucesso, ambos esses órgãos (PR e AR) ficam desobrigados de se manifestar, a pretexto de que se aguarda o resultado das investigações da Justiça. É que a presunção de inocência é uma coisa sagrada.
É assim que a maioria PSD/CDS na Assembleia rejeita criar uma comissão sobre as finanças da Madeira. E Cavaco diz aos jornalistas que não é tempo de querelas estéreis. Importa é a coesão nacional, e as vacas, sorridentes, a pastar na Graciosa.
Acresce que, no bando do PSD existe apreensão, porque um animal acossado é perigoso. E o ogre já foi avisando que ele próprio não enriqueceu na política. O que significa que outros enriqueceram, (e nós já o sabíamos), sem outra causa visível além da venalidade. Há demasiados esqueletos no armário dos financiamentos partidários, do baronato do PSD, e do próprio Cavaco, que os chefia na sombra.
Finalmente a tirania democrática que dura há trinta e tal anos, tem garantido ao partido o voto dum eleitorado dependente, alienado e agora também acossado, o qual não é despiciendo. Mesmo perdendo a maioria absoluta, o resultado das próximas eleições não suscita grandes dúvidas.
E assim porão uma pedra final sobre uma história de escândalos, que envolve golpes conspirativos, fraudes de gangsters, mais-valias a compadres, negociatas de autarcas, corrupções com armas e submarinos.
Com uma maioria, um governo e um presidente, uma oposição de mansos no PS, e as imposições da troika a quem a esquerdalhada ajudou a estender o tapete, não lhes falta artilharia para nos porem a pagar a factura. Finalmente.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Qui va piano va sano e qui va sano va lontano

Tenho um velho companheiro de estrada com 35 anos, e é escusado dizer que o não troco por nada. Mas, já agora, fica dito.
A acrescentar a isso sei dum artista mecânico, veterano como nós, que sabe tudo sobre ele. Coisas que já não existem, nem valiam referência, se não se desse o caso de estarmos perante uma troika perfeita (alguma havia de o ser): o carro depende do artista, que depende de mim, que dependo do carro.
O prolegómeno conduz-nos à obsolescência programada. Se ainda não sabes bem o que isso é, nem com quem estás metido, vai ver ali.

Fomos ao rio de Meca - 5

(...)
O chefe embatucou, surpreendido. Correu-lhe no semblante um vento de maldade. O soba foi para negro Paulino, severo, aflito, a linguajar-lhe ao ouvido.
- Cala essa boca!!!
A discussão aproximou da cena tudo quanto era branco por ali, estranhando a dificuldade. Assustados naquelas caras e andanças, os monas pararam nas brincadeiras, ficaram de lado, os focinhos aguçados. As mulheres torceram as mãos, temendo a maka.
O chefe largou em grandes passos furibundos, até ao posto. Seguiu-o sôr Antunes, a bufar. Outros brancos foram entrando na casa. A gente ficou ali na sombra, desarmada, as vozes hesitando, laivos de aflição nos olhares. Contrariando o soba, negro Paulino insistia.
- Branco traiçoeiro! A gente vai ficar bem segura na justiça! Oito angolares é o preço justo no café!
Ninguém viu aproximar-se o fardado que chegou junto do grupo, chamou negro Paulino e o levou ao quartel da polícia. Negro Paulino quis saber porquê. O chefe queria falar com ele. No caminho, negro Paulino voltou a cabeça e gritou à gente.
- Oito angolares é o preço justo no café!
Os homens ficaram calados. Havia martírio no que estava acontecendo, o tempo era pesado e lento a passar.
O chefe saiu finalmente, em passadas altivas, sôr Antunes vinha ao lado. Atrás outros brancos mostrando as dentuças.
- Acabou-se a maka! O preço do café é cinco escudos e meio! Quem quiser vende, quem não quiser leva para casa! E é rápido! Isto já durou demais!
Os homens ficaram hesitantes, os olhos baixos. E o soba levantou a cabeça, perguntou ao sô chefe por negro Paulino.
- Esse matumbo ficou à sombra! Para não andar aqui a vender más ideias!
Os olhos da gente subiram, aflitos, até à cara do chefe.
- Buscar o café! – gritou ele.
Foram andando lentamente, o grupo a desfazer-se.
(...)

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Entretanto

Ler isto com cuidado é um bom começo. Para que não acabemos estúpidos de todo.

Amanhã

Tenho que passar uma esfregona neste chão. Dê por onde der.
Aprendi, com uma mulher, que uma casa é uma coisa. E outra bem diferente é uma estrebaria.

Eu insisto

Perante o que aí anda, só um cego, um alienado ou um crápula é que pode não concordar com isto.

da capo

Esta menina, com doze anos e três irmãos mais novos, desce pela mão da mãe o portaló dum vapor colonial, na Rocha do Conde de Óbidos. Nasceu e fez-se o que é numa província ultramarina, onde o verão e a liberdade eram eternos. Agora acaba de chegar a um país tristonho, num dia de inverno frio, e em breve apanhará um comboio ronceiro, com bancos de madeira, que vai partir para o Norte. E quando chegar ao Porto, estão a dar-se em casa de Rubinho os últimos retoques na árvore de Natal, cuja montagem dura há uma semana.
Daqui a uns anos, quando Rubinho passar férias na Granja, esta menina vai chegar no comboio todas as manhãs, e venderá saquinhas de pipocas na praia, para ajudar a mãe a manter a família.
Anos depois, quando Rubinho andar entretido a descobrir a vida no peito acolchoado duma senhora inglesa, há-de afagar a menina as frieiras dos dedos, por causa da água gelada do tanque, onde lava a roupa das camas dos hóspedes, para ajudar a mãe a manter a família.
Anos depois, quando Rubinho for para a universidade, onde o esperam os mestres que lhe hão-de explicar o pensamento dos filósofos, irá esta menina à escola técnica nocturna, que as horas do dia são para ajudar a mãe a manter a família.
Anos depois havemos nós de ler as memórias de Rubinho, e adentrar-nos com ele nos meandros do surrealismo. O que nos valia a pena era aprender a sustentar uma família. Mas o mundo é o que é, se não for antes o que dele fazem.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

De novo

À realidade.

Agora sim!

Que te anoja, caminheiro,
Se tão pesaroso vais?
São paixões, serão enleios?
É ela que assim te mata?
Que te importa o coração,
Desde que bata?!

Devaneios duma ponte

Ali, sobre a ribeirinha, com sete olhos, quem diria. Chamam-lhe a ponte romana, mas não é. Roma não improvisava assim.
E celta não deve ser. A do Castro Laboreiro era outra loiça, e os barbaças não se gastaram aqui.
É uma ponte medieva, obra goda. No caminho de Calábria, que em tempos encimou aquele monte, ali à espalda de Almendra.
A cidade sucumbiu a sarracenos. E a pontezinha vai morrer às nossas mãos.

Releituras

Homenagem
(a Thomas Ehrling, operário no Lausitz, ao tempo em que os havia)

O homem está sentado debaixo da macieira que dá maçãs vermelhas, no pequeno quintal. Vagueiam-lhe os olhos, silenciosos, na paisagem breve, a terra é plana e o bosque de bétulas fecha logo ali o horizonte, atrás dele só a pesada silhueta da fábrica de briquetes. As últimas folhas do outono passam levadas na frialdade da brisa, por isso o homem tem este ar arrepiado na face, e tem húmidos os olhos inquietos. Não sabemos decifrar-lhe a expressão nem contar-lhe os anos do rosto, vemos é que tem na fronte rugas pronunciadas, será a gravidade do momento que as torna mais fundas.
Hoje não foi trabalhar, nem sequer se aproximou do portão da fábrica. Rebelaram-se nele rotinas muito antigas mas ficou aqui, debaixo da macieira que dá maçãs vermelhas, os olhos incapazes de furar para lá das bétulas, incapazes de passar além da silhueta da fábrica velha, onde a altíssima chaminé deixou de fumegar.
Divagam-lhe no ar frio recordações distantes, neste céu que subitamente ficou vazio. Ele sabe, por ouvir contar, que há muitos anos reinava aqui uma grande quietude plácida e verde, com bosques de abetos, e faias, e carvalhos, vinham os homens com lanças e dardos e corriam atrás dos gamos que se aventuravam nos prados. Então eram os rios claros e bucólicos, desciam das montanhas distantes e passavam tranquilamente, e traziam nas águas peixes prateados que os homens apresavam em armadilhas de cana, nas margens baixas. Para lá da floresta semeava-se o trigo com arados antigos, e nas hortas, por trás das casas de madeira, as galinhas guardavam os filhos das ameaças do gavião, abrigadas aos caules de ruibarbo e de funcho.
Um dia, quando as cidades começaram a crescer e a vida dos homens apareceu com exigências novas, um artesão que passava no antigo vale glaciar encontrou sinais de minério de ferro à superfície. E não demorou a chegar o inferno vivo dos regatos de gusa a arder nas fundições, e a fumarada dos altos-fornos, e o cantar matutino do martelo no ferro quente das forjas. Encontraram-se na orla da floresta depósitos de linhite, e logo se rasgou a barriga da terra para os explorar. E construíram-se fábricas para albergar as máquinas de volantes aterradores, que engoliam o carvão e vomitavam pequenos briquetes negros, logo levados por vagões apressados a incendiar as caldeiras das máquinas a vapor. E surgiram na paisagem, riscando o céu e perturbando os deuses que habitavam nos bosques, grossos cabos negros que levavam para longe uma energia nova e misteriosa.
Os homens dormiram cansados mas contentes, por acreditarem no progresso. E a terra foi-se cobrindo desta poeirada escura, gerada no ventre das fábricas, tão fina e tão subtil como areia de ampulhetas, a marcar a galopada frenética das máquinas.
O homem olha, à sua volta, o manto negro, regurgitado pelas chaminés ao longo de séculos, dispersado pelo vento sobre as terras e os caminhos, sobre os jardins e os telhados das casas, e as sepulturas dos mortos. Debaixo deste manto viveram gerações que produziram riquezas, modelaram o mundo e alargaram o saber dos homens. Nesta mesma fábrica trabalhou o seu pai, logo a seguir à guerra. Foi uma canseira pôr tudo a funcionar depois de tanta destruição, contava ele. Mas havia os direitos da vida depois de tanta morte, faziam falta o calor e a energia que as cidades engolem para serem habitáveis, à custa de privações e sacrifícios a vida recompôs-se e a produção recomeçou a sair.
Mais tarde chegou a sua vez, o homem entrou na fábrica e nunca trabalhou noutro lugar. Moldaram-se-lhe os gestos ao ranger das gruas, ao matraquear incessante das válvulas, e acabou por lhe adoptar o corpo a respiração das velhas máquinas, devorando o carvão que chegava em vagões cobertos de fuligem. De dia ou de noite a sua própria cara era tão escura e cheia de majestade como a das locomotivas que vinham da mina a céu aberto, a galopar na paisagem violentada.
Habituado a cumprir metas de produção, planos quinquenais, emulações proletárias, o homem construiu a sua vida ao compasso infatigável da fábrica. E era para ele um orgulho e uma esperança ver chegar, dia a dia, os camiões que vinham da fronteira, de cidades e países distantes, e faziam fila à espera dos briquetes que deslizavam nos tapetes rolantes.
Mas quem poderá desvendar os caprichos da roda do mundo, ou do interesse dos poderosos? Um dia a fábrica parou e todas as chaminés da paisagem deixaram de fumegar, como coisas inúteis. E o trabalho deste homem é agora arrancar dos alicerces aquilo tudo que foi a sua vida. Deixaram de ter préstimo, ele e as velhas chaminés, foi o que lhe disseram.
Tudo perdeu, de repente, o sentido, por isso o homem ficou aqui sentado, todo o dia, no pequeno quintal. Amanhã há-de ir de novo à fábrica, vencerá o desespero que lhe treme nas mãos, e desmontará, peça a peça, as máquinas antigas, encharcadas em óleo, como quem se desmonta a si próprio. Depois há-de vir o camartelo encarregar-se do resto. E ele talvez receba uma pensão para deixar de viver.
No céu cinzento, por trás da espessura das nuvens, o velho Cronos, o ancião barbudo, vai devorando pacientemente os filhos. E espreita, quem sabe, as maçãs vermelhas que pendem dos ramos, indiferentes ao chuviscar do Outono. São carnudas e frias.

Um furacão? Um tornado?

Ou uma grandíssima borrasca?!

domingo, 18 de setembro de 2011

As folhas, as flores e os frutos

O verbo desfolhar sempre existiu desde que o mundo é mundo. Desde que chegou o primeiro Outono aos olmos do Paraíso.
Usavam-no muito as lavradeiras do Minho, no tempo em que milho havia. E os americanos fizeram dele indústria, no Vietname, largando nuvens de agente laranja. Isto antes de ficarem a saber que só o primeiro milho é dos pardais. O segundo já não é.
Igualmente o verbo desflorar existe há muito. À letra, tirar a flor. Nem se imagina o deserto do mundo, e a tristeza toda dele, se o verbo não existisse.
Hoje em dia a palavra é desfrutar. À letra, tirar o fruto. Há quem lhe questione a elegância e o purismo, mas a prática faz lei. E não há quem a dispense.
Ou nisso pense. Pois em rigor me parece que uns poucos colhem as folhas, os frutos e as florações, e aos muitos sobram os verbos, e algumas recordações.

Em 2010

Perante a histeria do putedo ... uma pitonisa falava assim ... e depois um vigarista assado.

Fomos ao rio de Meca - 4

(...)
A coluna chega, no meio do pó, da algazarra da criançada, estaciona ao longo da picada, em fila comprida a perder-se de vista. Os motoristas vêm encalorados e sujos, molhadas de suor as camisas e as peles gordas e vermelhas. Os soldados arrastam-se até ao quartel, fazem a continência ao administrador de posto. Chegam os polícias, os brancos avançam apertos de mão, dão abraços aos conhecidos.
As mulheres saíram das cubatas, atraídas pelo burburinho. Trazem os monas encavalitados nas ancas, um ar desajeitado e humilde nas caras, uma curiosidade indisfarçada nos olhares.
O tempo é curto, sôr Antunes grita alto, chamando os homens. Dá uma volta rápida de olhar nos sacos amontoados. Põe a mão no queixo, faz uma pausa como quem bota contas, volta-se para os vendedores e oferece quatro escudos e meio pelo café.
Os homens olham-se, aflitos, negro Paulino tem razão.
- Num pode, patrão!
O soba, receoso, adianta-se para sôr Antunes. Explica que os homens não podem vender o café por menos de oito angolares.
- É preço justo! Patrão pode vender em Luanda por vinte escudos à vontade!
Sôr Antunes volta costas, casquina uma gargalhada, no meio do gesticular teatral dos braços. Encaminha-se, lento, para os polícias que sorriem.
- Já viu, sô chefe? Gente maluca! Querem oito escudos pelo café!
Na sombra das mangueiras os homens falam conversas baixas. Se não houver combinação no preço, o café não se vende… Não vai haver cervejas frescas na garganta, nem panos garridos nas mulheres, os monangambas não vão puxar mesmo o toldo dos camiões… Um deles adianta que se tire um angolar no preço. Negro Paulino opõe-se. Irado.
Vem o chefe dos polícias, balançando o corpo. Ao lado sôr Antunes, sorridente, seguro nos dotes de persuasão do medianeiro.
- Então o pessoal perdeu a cabeça, hã?! Vocês querem arruinar o sôr Antunes, ou quê?!
O sô chefe chega-se mais aos homens, amigável, lá no linguajar deles. Propôe-se convencer sôr Antunes a pagar cinco escudos e meio. Que já era um bom preço, e que os camiões não podiam ficar ali à espera, o dia todo.
Os homens hesitavam. Confusos. A pontos de ceder. Mas Negro Paulino adiantou-se.
- Sô chefe, a gente não quer ruinar sôr Antunes! A gente não quer maka. Oito angolares é o preço justo no café. A gente toda combinou por menos dinheiro o café não vai nesse camião que está aí!
Negro Paulino falou agressivo.
(...)

Há coisas...

... que é útil ler. Sobretudo vindas donde vêm.

Ele há muitos, por aí

Mas só um cego, um alienado ou um crápula é que pode não concordar com isto.

sábado, 17 de setembro de 2011

Números

(...)
"A Madeira retém todos os impostos locais ou seja, não contribui nem com um euro para o país; dá-se ao luxo de cobrar os impostos nacionais a taxas menores, ficando a diferença a nosso cargo; recebe anualmente 300 milhões do continente a título de “insularidade”; recebeu, nos últimos quinze anos, 2000 milhões de euros de verbas comunitárias atribuídas a Portugal; viu a dívida total perdoada várias vezes, a última das quais no governo Guterres e sempre com a promessa, jamais cumprida, de não voltar a endividar-se; recebeu 900 milhões para os estragos das cheias, atribuídos por Sócrates (esse, a quem agora Jardim culpa do novo endividamento); e escondeu 8000 milhões de dívida e 550 milhões de derrapagem apenas este ano, que só foram descobertos graças à troika, e que o cavaleiro bizantino ora diz que são uma invenção da Internacional Socialista e da maçonaria, ora diz que são “um orgulho."(...)
[Miguel Sousa Tavares, in Expresso]

Borrão


Alberto João Jardim é um borrão tosco, caricatural, do espírito que desde sempre alimenta o PSD.
Mas a família é só uma, e a história das peripécias dos últimos trinta anos mostra-o abundantemente.
Certo é que as moscas foram mudando. A merda permaneceu.
Boa parte do país é que não vê. Este não pode, esse não quer, àquele não lhe convém, outro não gosta do seu próprio retrato no espelho.
E assim chega, o país, ao que merece.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Fomos ao rio de Meca - 3

(...)
Os homens conversam, alegres alguns, na sombra encalorada das mangueiras. Discutem outros, menos bem dispostos, a propósito da vinda da coluna dos brancos. Amontoado no dorso dos camiões, a troco de pouco dinheiro, vai passar por ali cada quilo de café do Mavoio, da Mamarrosa, da Calambata, de todos os cafezais do planalto. No dorso dos camiões seguirá também o café que o povo acarinhou ali, nas matas do Tomboco.
Os homens fizeram, à beira da picada, aquela pilha de sacos onde os monandengues estão já a inventar as suas brincadeiras sem fim. Trouxeram mesmo os cestos entrançados, compridos que nem pirogas, carregados de fruta. Às vezes os brancos compram. As laranjas podem durar ali muitos meses, as bananas menos.
A ideia da vinda dos camiões dá volta no juízo da gente. A venda do café traz dinheiro que não vem doutro modo, mesmo barato. Depois, os brancos trazem aquele estendal de panos garridos, de bebidas, de rádios e catanas, de vinho e de cervejas, mil bugigangas que fascinam os olhos curiosos da gente. As mulheres sentem aquela ideia no peito de que o dinheiro do café pode comprar uma roupa para os cambutas, comprar um pano novo para pôr no corpo. Os homens vão tirar uma vez da cabeça aquela ideia da miséria, vão deixar correr na goela seca a cerveja dos brancos, até sentir o corpo contente, a espuma branca esquecida nos beiços.
Os homens conversam, agrupados, à sombra das mangueiras. Negro Paulino está a ouvir, tem na cara um ar de preocupação. Sabe que os comerciantes vão oferecer tão pouco dinheiro pelo café que nem paga o trabalho de apanhá-lo nas matas. Que logo a seguir, à ordem do patrão, os monangambas vão puxar o oleado dos camiões, vai ouvir-se música do Congo na sanzala inteira, e vai aparecer aos olhos embevecidos da gente todo aquele mundo colorido de coisas para comprar. Sabe o negro Paulino que as notas dos angolares vão sair dum bolso de branco e entrar noutro. Ele conhece a manha dos comerciantes, sabe que o branco inventa sempre mil maneiras de levar o dinheiro da mão do preto, mesmo com aquela cara de nojo e repugnância que ele mostra. Sabe que à noite as mulheres estarão mais tristes no fundo escuro das cubatas, que algumas levarão porrada dos homens, bêbados do vinho que vem nos camiões. Sabe que a festa que anda na cabeça da gente, por causa do dinheiro do café, será outra vez uma ilusão amarga.
Os homens falam, por baixo das mangueiras. Negro Paulino sustenta que oito angolares por cada quilo é o preço justo do café. Os homens combinam. Por menos dinheiro, o café não subirá nos camiões.
(...)

Cândida (2)

(…)
O certo é que o marido lhe morreu, porque o tempo foi demais. Tão longo o tempo dele, nesse dia, conforme o dela é hoje, que só a poder de tristeza e solidão lhe consegue resistir.
A casa, grande demais, ambos a ganharam na Alemanha, há trinta anos atrás. Deixaram o filho em casa do avô e ala moleiro. Bem lhe custou, como mãe. E mais lhe custaria se soubesse o que sabe hoje, que a criação do filho não foi o que devia. Sobre o mais, era aquela língua tão arrevesada que nunca foi capaz de lhe meter o dente. Mas os peixes na fábrica também não falavam, os peixes que ela amanhou anos a fio, a metê-los nas latas, sem uma palavra. Para já não falar do frio, que lhe incendiava os dedos, na água onde nadavam tripas e barbatanas. De vez em quando havia quem metesse uma krankada, mas Cândida nunca o fez. E se não fossem as férias que vinham em Agosto não se tinha aguentado. A bem dizer ainda hoje não sabe se valeu a pena tanto sacrifício.
Mas este ano já prometeu à Dulce que não vai ficar aqui sozinha. Quando as vindimas vierem, já prometeu à Dulce e à Armandina que há-de ir com elas para o Doiro. Há-de apanhar, madrugada, a camionete que as vai levar e trazer. Não será lá grande coisa. Mas pode ser que as férias de Agosto aconteçam outra vez.

Cuidados intensivos

Um dia, fatalmente, envelhecemos. E acabamos a queixar-nos dos computadores, que nos ofendem o cristalino trôpego. Faço a passeata da muralha, para dar uma folga às meninas dos olhos.
Desaba um aguaceiro na meseta, com direito a raios e a coriscos. E eu passo baluartes, passo revelins, passo guaritas, e fossos, e pedras amontoadas. Tantas pedras quantas mãos as andaram a talhar, há uns duzentos anos.
Para espingardearem as ideias novas, que vinham da meseta, entre coriscos e raios: a dignidade do homem, o livre pensamento, a cidadania e a fraternidade. E a igualdade, enfim, podendo ser.
Tão espingardeadas elas foram que ainda estão nos cuidados intensivos.

País virtual

Logo me deixei tentar, quando há anos me falaram pela primeira vez dum miradouro virtual. Tal como os irmãos reais, aparece em sítios altos. A torre dum castelo medieval é um bom lugar. Vai-se lá, mete-se-lhe no bucho uma moeda, e ganha-se o direito de admirar o panorama. Não propriamente o que a paisagem mostra, que é gratuito, mas o que alguém meteu nas entranhas do bicho.
Havia um, no castelo de Pinhel, e eu fui lá ver. Pelo-me por guerras contra sarracenos, a história mostra, a antiga e a recente, que são mais empolgantes do que os idílios da ribeira das Cabras.
Lá estava o castelo, restaurado, e nele o miradouro fora de serviço. Não havia sarracenos para ninguém. E eu fiquei-me pelas encostas da ribeira das Cabras, antes de me pôr ao fresco.
A segunda vez que me falaram dum miradouro virtual, também não resisti. Nunca se sabe! E eu, já fatigado do país real, meti os pés ao caminho. A experiência deu-me nisto.
Desta vez é no Fundão, que arriscou um salto em frente. Já não é um miradouro virtual, é um simulador de voo, ao serviço dos turistas. A empresa municipal Fundão-Turismo anda à procura de verbas para o instalar até ao fim do ano. E sempre pode acontecer que um FMI qualquer se disponha a pagá-lo.
Depois disso, qualquer um pode viver a experiência de um voo sobre o concelho, sem sustos de paraquedas. Tudo se passará no salão nobre do palácio do Picadeiro em Alpedrinha.
Logo que o aparato esteja pronto, lá estarei. Pode bem ser que o voo do simulador passe para lá da fronteira de Segura e não regresse.

Fomos ao rio de Meca - 2

(...)
No meio do terreiro estão os homens agrupados na sombra das árvores, mesmo por onde vai a picada que atravessa o Tomboco, roças e florestas antigas, cafezais e plantações abandonadas.
Ao fundo, na curva, afogada no jardim, a frontaria da casa do administrador de posto. Do outro lado o quartel militar, com largas casernas de zinco e viaturas velhas apodrecendo na parada, cobrindo manchas de óleo. Cubatas pobres ladeando a estrada. Sebes de caniço e tábuas velhas delimitam cercados de mamoeiros, mangueiras, poleiros de galinhas. A casa dos polícias com grades de ferro nas janelas e sacos de areia sobre os muros. Das grades de ferro saem gritos, às vezes, quando há certos presos. Os homens da sanzala conhecem esses gritos. Os presos ninguém mais os vê, ali não ficam.
Mas as grades de ferro é o negro Paulino quem as conhece bem, ali na sanzala. Chegou um dia ao Tomboco, amarrado aos taipais de uma Berliet. Vinha do Piri, sozinho, degredado. Suspeito de manter contactos com a gente da mata, recebeu de manhã a visita do chefe Martins.
Não deu tempo para dizer adeus. Não deu tempo para falar uma palavra às crianças. Não deu tempo sequer para agarrar a velha máquina de costurar. Abafada no chicote ficou a violência do protesto do negro Paulino. A coluna estava pronta para arrancar, longe ficou depressa o uivo lamentoso da mulher.
Foi isto há seis anos, muito antes dos tropas começarem a levar gente de sanzalas inteiras. Negro Paulino viajou por picadas que nunca tinha visto, teve frio e fome, levou tratos de cão e chegou ao Tomboco. Um mês conheceu as grades escuras daquelas janelas por dentro, a insensatez bruta dos agentes. O chefe mandou um dia sair negro Paulino da prisão, disse que agora ia viver ali no Tomboco, e muito juízo na cabeça.
Negro Paulino protestou sempre. Por causa da família e das embambas, do resto não valia a pena protestar. Todos os dias negro Paulino passava tempo esperando à porta dos polícias. O chefe estava cansado daquela persistência do preto cambuta, irritado com os argumentos claros dele. Fez ameaças e insultos, proibiu o negro Paulino de voltar ali e disse que a família havia de vir.
Chegou sete meses depois, e foi viver na cubata que o negro Paulino construiu.
(...)

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

À la minuta!

Quando nem no céu as promessas são boas...

"Fomos ao rio de Meca" - 1

Banhados de poeira e lama os camiões perderam a cor, mordidos pela soalheira inclemente de cinco dias de viagem. Saíram de Luanda em coluna aprumada, rigorosa, cheios de massa nova nas articulações de ferro. Alarmaram as gentes do Cacuaco, excitadas ao ouvir o roncar longo dos motores e os grossos pneus rangendo no asfalto. Em algazarra viva, os monandengues largaram as suas construcções no pó da rua, e vieram contá-los um a um, até esgotarem a tabuada, ia a coluna a meio. Havia camiões azuis e vermelhos, verdes e cinzentos, havia muitos castanhos e até um amarelo. Longo tempo levaram a passar no meio das casas, na sua cadência certa, intervalados a espaços por jipões daquele verde morto da tropa, carregados de soldados.
Depois o asfalto acabou. Vieram as picadas enrugadas, veio aquela nuvem de pó teimoso a infiltrar-se nos pulmões dos motores e dos homens. Os camiões ficaram velhos e sem graça. Os motoristas cobriram os narizes com lenços atados ao pescoço, como assaltantes de pradaria. Os monangambas, forçados a viajar a descoberto, no cimo das cargas, ficaram estas máscaras do outro mundo, iguais na cor do pó vermelho das camisolas rotas, das faces, das carapinhas.
A longa serpente de viaturas ronronou pelo horizonte infindo dos sertões do norte, durante cinco dias. Subiu e desceu colinas arredondadas, torneou escarpas íngremes, passou vaus de regatos secos, bordejou florestas sombrias. Os monangambas fizeram fogueiras à noite, cozinharam o funge. Embrulhados em cobertores, ressonaram os motoristas nas cabines, ao lado das carabinas de repetição. Os soldados montaram guarda, cheios de pó e de cansaço.
O protesto dos motores, no seu alarido gritado de aços quentes, aterrorizou bichos nos seus fojos, espantou bandos de pernaltas brancas que lavavam os pés nos charcos. Uma nuvem de poeira sufocante levantou-se no ar, picadas fora, do Ambriz a Maquela do Zombo. Ficou, por momentos, suspensa, na atmosfera parada das tardes de sol quente do planalto. Até cair, suavemente, maculando as folhas verdes do capim, debruçadas sobre a picada.
(...)
[texto de 1982]

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Os mais deles

...são assim, com raríssimas folgas: ou adormecem na gávea, ou são refinadíssimos hipócritas.
Bombordo ou estibordo é-lhes igual. Importa é ver donde é que sopra o vento.

Tresantontem

O que aconteceu foi isto.
E mais isto.
E mais o resto que se lhe seguiu, numa procissão que ainda vai no adro.

A esquina

Passamos lá todos os dias, já não vemos o que ela esconde. E no entanto...

Anteontem

E viu-se então que a história dos grandes crimes vem de longe. Variam é na forma, e no modo de os contar.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Ontem

A narrativa oficial sobre o grande crime das Torres Gémeas não tem sustentação possível.
É um casaco remendado. Por mais que o passem a ferro, sobram vincos na lapela.

Cândida (1)

Vive além naquela casa grande, ao fundo da vereda, mas nunca gostou de morar fora do povo, aqui no descampado. E agora está sozinha, desde que enviuvou.
Antigamente a vida era diferente e até os dias pareciam pequenos, sempre numa fona entre a cozinha e a horta, o asseio da casa e as lixaradas que o vento juntava no pátio. Agora tornaram-se tão grandes, e às vezes tão pesados, que mal os consegue suportar. Só a poder de tristeza e solidão.
Metade da casa não parece sua, fechou a porta que dá para o corredor e nem lá entra. Só para se defender. As latas das sardinheiras que rodeiam o pátio ficam semanas sem uma atenção. O que lhes vale é serem resistentes e saberem esperar. Agora já tem pena, mas foi assim que as sécias lhe morreram.
A ideia das sécias traz-lhe uma aflição, fá-la sentir-se culpada da morte do marido naquela manhã. Ele em frente do espelho, a deixar de ver no queixo a espuma da barba, a queixar-se das tonturas. Vem ela a correr, e ele dobrado por cima do lavatório, ele a estender a mão à procura da parede, ele a pedir que lhe limpe um suor frio na testa. E ela a ficar ali atarantada, a telefonar ao cunhado em vez de ligar para as ambulâncias, o cunhado a tirar o carro da garagem, a levar o irmão ao consultório do médico, e o médico sem atentar no que fazia, sem perceber o que se estava a passar, sem o recambiar logo para as urgências, o médico a escrever uma carta vagarosa para os colegas do hospital, a mandá-lo seguir no carro do cunhado em vez de reclamar os bombeiros, o tempo a passar e os dois a gastá-lo na sala de espera, sem que nenhuma funcionária reparasse neles, sem que a menina da bata lhe adivinhasse o nome e viesse chamá-lo, senhor Manuel dos Santos.
Ah, se ela soubesse a tempo que havia ambulâncias quando se deixa de ver a espuma da barba em frente do espelho, se ela tivesse num papel o telefone dos bombeiros, se ela ao menos soubesse conduzir, talvez o Manel não tivesse morrido cercado de gente, ali à entrada das urgências do hospital da cidade!
(...)

domingo, 11 de setembro de 2011

Quem os viu...

... e quem os vê!

Ecos da Sonora - XLII (2)


Esta obra de Rentes de Carvalho colige 30 textos, de dimensão e apuro variáveis. Titulados mas sem data, é difícil definir-lhes uma idade, um dia de nascimento. Porém os conteúdos, assim como ocasionais variações formais, sugerem um alongado período de produção. E terão ficado na gaveta, a marinar à maneira de Horácio, candidatos a uma página, na colectânea que finalmente surgiu.
A questão carece de importância, e não tem maior significado. Salvo permitir-nos acompanhar o autor, e concluir que Rentes de Carvalho não é homem de se pôr a emular cânones. Tem o seu, que definiu e cultiva. Escreve ao sabor da própria respiração.
Salvo opinião abalizada, nenhum dos textos cabe na definição canónica do conto. Se a dimensão o sugere muitas vezes, logo os tempos, ou os lugares, ou o desfilar das personagens, ou o fluir solto da intriga o contradizem. Nesse aspecto é Rentes de Carvalho moderno e actual há muito tempo. Para mim, leitor atreito a normas e taxinomias, por lhes reconhecer alguma utilidade, se tivesse que lhes dar um género, chamava-lhes histórias.
A escrita é fluente, correntia, despreocupada na aparência, às vezes surpreendente. Numa esquina qualquer espreita-nos um gracejo, uma ironia subtil, um sarcasmo desenganado, mais raramente um cinismo. Leitura útil que, se não desvenda o mundo, nos conta muito sobre ele. Para o meu gosto, falta às vezes, aqui e ali, um pouco mais de tensão na corda narrativa.
Uma historinha de página (188) dá o sugestivo nome à colectânea: Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia. E a sua leitura deixa-me em perplexidade, resistente aos ensaios todos que já fiz.
Porque é domingo, e sendo o texto tão curto, arrisquemos um exercício. Sem invasão daquilo que é do autor, e do seu direito à malandrice e à picardia. Nem daquilo que do leitor é, e direito seu à inépcia ou falta de agudeza.

[narrador, Júlia e um senhor]

“Os braços da Júlia da farmácia ainda um dia o deitam a perder. [esta premonição é feita pelo narrador, ou pelo senhor?] No emprego usa a bata branca do regulamento, mas na rua, mal o tempo aquece, passeia-os em todo o esplendor da nudez, e a impressão que tem é que ela faz aquilo de propósito, com a única intenção de lhe acender calores que julgava extintos. [parece claro que a premonição é expressa pelo senhor, confidenciada ao narrador, que no-la comunica]
Como se conhecem, encontram-se às vezes no café, e é um tormento. Pele com maciezas de seda, a penugem dourada, a delicadeza dos pulsos, o suave redondo dos ombros! Esforça-se por mostrar que a ouve atento, mas naquele sonho de que delícia seria tocar-lhe, mesmo de leve ou a fingir acaso, antes de dar conta já os olhos resvalam para os dedos, acariciam a perfeição das unhas, sobem pelo antebraço, param nos ombros. [detalhes confidenciados pelo senhor ao narrador, que nos dá conta deles]
- Estava eu a dizer… [uma fala de Júlia?] - Faz [o senhor] o trejeito involuntário de criança apanhada em flagrante, e ela continua, finge não reparar. Para ambos é um jogo, mas só o de Júlia é inocente. [juízo feito pelo narrador? Por Júlia?] Sente [ela]os tremores, adivinha-lhe a excitação, por vezes a segredar qualquer coisa quase lhe toca e não lhe escapa o fremir das narinas. Mas depois diz-se [a si própria] que se engana. [parece manifesto que estas confidências são de Júlia ao narrador]
- Está a ver? Não sei porque estou a falar disto. Então um senhor que conheço desde pequena, colega do meu pai, que até já tem netos… E tão carinhoso. É tolice minha, não é? [discurso de Júlia, que conversa com o narrador]
Aceno que sim, de facto é tolice. Surpreendi-a ao dizer-lhe que tinha uns braços muito bonitos, e foi então que ela contou o caso.” [o narrador assume as confidências de Júlia. Mas no início parece haver também confidências do senhor. Ou o narrador é natural confidente dum e doutro, em momentos diferentes?]

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Lavagem em série

O Oliveira e Costa, o BPN, o Dias Loureiro, a SLN, o Cavaco Silva, o cabrão do Sócrates, o PEC IV, a bancarrota, o FMI, as eleições, o Passos Coelho e o Relvas a fazer anos...
É uma limpeza geral.

'Pera aí!!!

Mas então acontece isto, e a nação toda boceja?!
Não há um sobressalto do PR?
Não há um suspiro dum magistrado?
Não há um rumor no parlamento?
Não há um bocejo dum ministro?
Não há um recurso dum advogado?
Não há um levantamento da polícia?
Não há um protesto partidário?
Não há um incêndio num jornal?
Não há um motim numa cadeia?
Será que garrotaram o país e ninguém avisou nada?!

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Ecos da Sonora - XLII (1)

Nesta grande pequenez indígena, nunca foi indispensável ser estrangeirado para acabar abatido ao efectivo. Parecê-lo já bastou sempre. Acontece em sociedades como a nossa, em que o povo é tratado pelas elites como gado de exportação.
José Rentes de Carvalho, um andarilho notável com raízes transmontanas, deixou há muitos anos de viver na sua terra por razões que são da história. Andou muito pelo Brasil, pela América e por Paris, até lançar âncoras em Amesterdão, há meio século atrás. Foi correspondente de jornais, garimpou, vendeu cafés, tomou o pulso do mundo, fez-se professor das letras e culturas pátrias numa universidade holandesa. E acabou por repartir a vida entre Amesterdão e os Estevais do Mogadouro.
Escreveu sempre, abundantemente: Montedor (68), O Rebate (71), Com os Holandeses (72), Portugal - A Flor e a Foice (75), A Sétima Onda (84), Portugal - Um Guia para Amigos (89), Guia dos Vinhos de Portugal (92), Mazagran (92), Tempo Contado (96), O Joalheiro (98), O Milhão (99), A Amante Holandesa (2000), A Coca (2000), Ernestina (2001)...
À sua escrita reservou sempre a Holanda uma boa recepção, indo algumas obras suas além da dezena de edições. Em Portugal nunca se deu por ele, a bem dizer nunca existiu. Nem mesmo quando, na passagem do século, uma editora - O Escritor - deu à luz meia dúzia de trabalhos seus.
A editorazinha faliu sem sobressalto, guardou o autor alguns exemplares. E os publicistas, os críticos, os amanuenses das letras não encontraram razões para interrompar a sesta. Nem mesmo enquanto Rentes de Carvalho foi o veterano patrono da Periférica, cuja falta só não sente quem a não conheceu ou já se esqueceu dela.
Recentemente a Quetzal acordou e deu início à publicação da sua obra. Já lá vão Ernestina (a grande saga!), Com os Holandeses, A Amante Holandesa, Tempo Contado e La Coca, aparecendo agora a colectânea de histórias Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia.
Ainda estremunhados, os escribas de turno descobrem agora em Rentes de Carvalho um "autor de culto das gerações novas". E terão razões, as tais gerações, já que a literatura, com vida lá dentro, é um barro bem diferente. Mais consistente do que o gel das escritas criativas, com que lhes desenham cristas arrojadas e lhes congelam as ideias.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Bacalhau basta!

Aqui há dias, no intervalo de duas lições da Universidade de Verão (!) do PSD, alguns colegiais puseram-se a berrar que Soares é fixe.
Eu olho à volta, e tenho as mais sérias dúvidas.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

A ser verdade, sim

A ser verdade o que aqui se diz, engole-se urbanamente o que ali foi sugerido.
O Relvas arrepia menos. Mas troglodita é na mesma.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

É só clicar!

E ler o post.
Depois clicar no boneco, e ler o texto.
Se resistires a lê-lo uma segunda vez... não mereces o pão que comes.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Manuel Laranjeira, uff!!!

[Considerações de há 100 anos. Por muito pouco eram de hoje.]

(...)
"Um dia a Europa despertou com uma insaciável febre de liberdade. De França soprava um vento áspero que demolia as velhas sociedades. Era preciso reconstituir desde os alicerces, sociedades novas com um espírito novo. Subvertia-se um mundo e um mundo surgiu. Começava a era dos direitos humanos.
Portugal foi convulsionado por essa rajada transformadora de redenção humana - e também teve um código de povo livre.
Simplesmente refazer uma sociedade inteira em bases novas não podia ser obra de um dia. (...) E enquanto lá fora os povos se remodelavam, assimilando os novos ideais, criando um espírito novo, progredindo enfim, em Portugal a polilha daninha e parasitária começava, às escondidas, surdamente, a sua obra de devastação. Era preciso educar o povo, criar nele um novo espírito nacional, uma consciência moral nova, uma vontade colectiva capaz de impor-se na hora trágica da falência; era preciso adaptá-lo aos novos ideais do espírito moderno, transformá-lo numa sociedade livre e consciente. Era preciso, sobre as ruínas e destroços da alma antiga, construir uma nova alma portuguesa.
E que se fez?
Os homens que muito sinceramente tentavam educar e refundir a sociedade portuguesa eram sistematicamente relegados para o esquecimento, votados a um ostracismo criminoso. Cansados de lutar esterilmente, morriam, isolados, inutilizados, descrentes. Triunfavam os sem vergonha, os sem escrúpulos, os que tinham por princípio de moral - viver a vida sem ideal.
E o povo continuava na mesma estagnada ignorância, na mesma sofredora passividade. Para ele, a liberdade, todos os direitos do homem, continuavam a consubstanciar-se nesta palavra - obedecer. Deram-lhe liberdade, oh! fartaram-no de liberdade. Tão somente não o ensinaram a estimá-la e a defendê-la. (...)
Portugal ia cobrindo o seu espírito antigo, imóvel, adormecido, com as aparências do espírito moderno. Copiou-se o exterior da civilização: apresentávamos o aspecto de povo civilizado. No fundo éramos um povo ignorante, obediente, que a polilha ia impiedosamente desagregando.
E, de sofisma em sofisma, de ficção em ficção, de mentira em mentira, o nosso mal foi-se agravando até chegarmos a esta situação intolerável e quase degradante.
Foi assim que a Nação adoeceu. (...)
O remédio?
Mas o próprio mal está dizendo qual ele deva ser. É preciso começar desde o princípio. Desde o princípio. É preciso refazer tudo (...) A tarefa é árdua, trabalhosa, dolorosa, e demanda rios de energia perseverante. Mas é preciso empreendê-la, sob pena de nos vermos morrer ingloriosamente, indignamente, relesmente, com o desprezo dos outros - e de nós mesmos. (...)
Não nos iludamos. Ou nos salvamos nós, ou ninguém nos salva. (...) A experiência da nossa salvação messiânica está tristemente feita. O messianismo em Portugal fez as suas provas e faliu.
Os que tinham verdadeira envergadura messiânica morreram abandonados, desiludidos, aborrecendo os homens e a vida. Os outros, os messias de quadrilha, esses têm um ventre esfíngico e mais difícil de saciar do que o ventre misterioso das nações vivas, quando andam à caça das nações mortas para as devorar."

Manuel Laranjeira - Cont. 3

(...)
"Em suma, na imensa maioria da sociedade portuguesa não se formou um carácter cívico em harmonia com a vida moderna e fez-se todo o possível para destruir o carácter cívico antigo. Desta deficiência educativa, o sentimento de vida nacional não evoluiu normalmente e resulta um sentimento, desvirtuado em parte, em parte incompleto.
Por outro lado, uma parte, mínima é certo, da sociedade portuguesa apresenta um avanço educativo relativamente acentuado, vindo deste modo acusar mais exagerada e nitidamente a desarmonia mental e afectiva da nacionalidade. (...)
Bastará tão somente constatar que em Portugal todas as questões de interesse nacional eram encaradas como questões mínimas, insignificantes, por essa minoria inteligente e ilustrada, que, salvo raras excepções, apostolizava que o ideal de pátria devia ser amplificado, ou substituído por um ideal mais largo e grandioso - a humanidade. A vida da nação, o interesse colectivo, eram frequentemente esquecidos, ou relegados para o cesto das questões inúteis.
Este modo de pensar e de sentir traduzia-se por uma abstenção sistemática nos conflitos da vida pública, por uma passividade contemplativa perante os nossos destinos como povo, como nação. (...) E o único ideal belo e magnífico, como um generoso delírio de grandezas, era o de uma pátria mais vasta, que abrangesse a terra toda*.
Finalmente uma outra parte da sociedade portuguesa, constituída pelas quadrilhas messiânicas, instalava-se parasitariamente no corpo da Nação, aproveitando-se da obediência cega, animal, da maioria ignorante, domada e escrava, e ao mesmo tempo da passividade e desleixo dessa minoria inactiva, requintadamente ilustrada e desenhosa.
E enquanto exteriormente nós íamos mostrando uma ficção de organização social civilizada, no seio da nossa sociedade, atacada dessa infatigável polilha messiânica, ia-se operando lentamente, surdamente, essa situação dolorosa de depressão moral, em que, no dizer hiperbólico dum amigo meu - de entre cinco milhões de criaturas que se sentem esmagadas por um mal-estar insuportável, não existem cinco que se entendam para o remediar."

[*Salazar pôs em acção exemplarmente o conluio entre quadrilhas messiânicas parasitas e minorias ilustradas servis. A maioria ignorante era considerada há séculos puro gado de exportação. E carregava ao lombo o mito, o colossal embuste duma pátria multirracial e pluricontinental, pelo mundo em pedaços repartida. Os visionários paranóicos do V Império ainda hoje batem nessa tecla. Sonham com uma pátria do tamanho do mundo. Mas não cavam a horta que têm nas traseiras. Preferem asilar numa sopa dos pobres.]

Manuel Laranjeira - Cont. 2

[Laranjeira, médico em Espinho, suicidou-se em 1912]

(...)
"A verdade é que, na sociedade portuguesa, a noção da sua personalidade colectiva, o sentimento de vida nacional, o sentimento de pátria, se quiserem, não existe sobrepondo-se a todos os outros sentimentos de interesse individual. Existe apenas o sentimento e o espírito intolerante de seita, existe apenas o interesse da quadrilha, mascarados por um messianismo avariado, de ínfima qualidade.
Um dos aspectos mais típicos da vida portuguesa, e um dos seus males mais funestos, é a sua prodigiosa fertilidade messiânica. A cada passo surge um homem que se sente com envergadura e ventre de messias. Por cada messias que aborta, pululam inesgotavelmente centenas de messias, toda uma falperra de messias. E enquanto a Nação rola à aventura de messianismo em messianismo*, a sociedade portuguesa, lentamente, infatigavelmente, vai-se dissolvendo e desagregando.
(...)
A palavra escrita é imprescindível para a vida social moderna. Actualmente ela é o instrumento usual mais importante da sociabilidade. Na complexidade da vida de hoje, o homem que não sabe ler nem escrever é um homem incompleto, desarmado para a luta do pão quotidiano. É nestas lastimosas condições de inferioridade social que se encontra a maioria da população portuguesa.Incapaz de transmitir ideias e sentimentos, o cérebro da grande massa da sociedade portuguesa definha-se, atrofia-se, lenhifica-se, e a alma portuguesa estagna na tranquilidade das águas paludosas. Acrescente-se a esta lenta agonia do espírito nacional a influência corrupta e secular da educação jesuítica, sinistra e deprimente, e a única coisa que espanta verdadeiramente é a pasmosa resistência deste desgraçado povo que tudo tem sofrido, e que ainda não sucumbiu totalmente ao peso do seu mau destino."

[*faltou especificar aqui que o primeiro data de 1415. Mas não se pode ter tudo!]