domingo, 22 de setembro de 2019

Ao sol

Nessa altura viviam em Berlim dez mil chilenos refugiados, mas só conheci dois deles. Eram irmãos, e estávamos os três ao sol dum jardim, muito perto do Berliner Ensemble e do Brecht. Um deles sugeriu ir nessa noite ao teatro, mas achei a proposta impertinente. Como é que se pode acompanhar a intriga, não sabendo da língua uma palavra?!
Eu não conhecia a língua, menos ainda o que um palco nos pode mostrar sem ela. E levaria muitos anos a aprendê-lo. Mais do que eles podiam gastar à minha espera. Dei ao mais novo umas botas que me ficavam escassas, e nunca mais nos tornámos a ver.

sábado, 21 de setembro de 2019

Até pr´ó ano!!!

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Foi então que a comadrona, a mais sabida nestes calendários, decretou que era tempo de partir. 
Lá vai ela! 
As outras foram atrás. 

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Lembranças

Estavas tão tétrica
Tão meditabunda
Que eu medi-te a bunda
Com uma fita métrica.

(de autor não lembrado)

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Bilitrona

Na altura eu era novato mas lembro-me muito bem. Quando terminei o curso num novo avião, em Monte Real, o comandante informou-me: - Vais ser mobilizado para a Guiné!
Confesso que os joelhos me tremeram. Mas os outros companheiros eram mais novos que eu, que já tinha feito uma comissão. E era preciso render um capitão que já levava uns meses de mata-bicho.
O que por lá se passou é hoje história, salvo um pormenor que o tempo não levou. Em Lisboa não havia coca-cola, que o botas a proibia. Mas em Bissau, logo à saída da base, um cartaz descomunal anunciava: TUDO VAI MELHOR COM COCA-COLA GRANDE!
Que merda é esta?! - rosnaram os meus botões. Viu-se depois, mas era tarde demais.

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Andarilho

E o viajante já está de partida quando chega Felisberto, a cavalo numa espécie de lambreta, barulhenta e minúscula. 
- Há-de-me ver isto, mestre Fernando! Vejo-me grego para a pôr a trabalhar, passa a vida a tossir!
O nome de Felisberto não lhe diz com a fachada. É um homem seco, nervoso, tem um ar atormentado, e a cortesia dos gestos não disfarça o sobressalto íntimo em que parece tropeçar. O mestre promete que ainda hoje tira as tosses à lambreta. E o viajante, é ao que anda, vai conversar com Felisberto para a sombra do castanheiro. 
O homem não esconde a vontade de falar das suas vidas, pouco terá ocasião de o fazer. Ora o viajante, médico não sendo, sabe da própria experiência o poder milagroso das palavras, mormente se outro remédio não houver. Há anos está Felisberto reformado da polícia, e agora vive aqui na aldeia. Sempre é ambiente mais favorável ao seu génio sobressaltado.
- Tudo isto são nervos! - resume Felisberto, que pouco mais sabe explanar dos seus padecimentos. Embora saiba muito bem que tudo ficou assim desde as guerras de Angola. Um dia, em 70, acabado de chegar a Luanda, meteram-no com mais dois colegas num avião que os deixou em Serpa Pinto. De lá seguiu numa coluna militar para o Baixo Longa, e depois para o Cuíto. Atravessaram o Kuando-Kubango e ao cado de dois dias chegaram a Mavinga. Luanda ficara a dois mil quilómetros, e isso pouco era, compara do com a distância a que deixara a mulher e um filho, em Alcabideche, do outro lado do mar via-se a Trafaria.
Mas o guarda Felisberto não se quedou por aqui, o seu destino final era mais longe. E ainda faltava outro tanto de viagem até ao posto policial e fiscal do Rivungo, na fronteira da Zâmbia. Era lá que o império precisava dele, para enquadrar as milícias dos quimbos, e para controlar as populações de que o império era feito.
O viajante não entende muito bem o que isto quer dizer, não sabe como se enquadram milícias, nem imagina como é que estes três homens vão controlar as populações dum império. As palavras são de Felisberto, o viajante limita-se a ouvi-las eaguardá-las na memória.
Ali viviam os três guardas num barracão de adobe e telhado de zinco, perdidos num mar de capim, quando iam ao rio espreitar os jacarés levavam em bandoleira a Mauser de repetição, que era tudo o que tinham por companhia. De  horas em quando vinha uma coluna e deixava latas de salsichas, uns fardos de arroz e sacos de farinha, de que eles faziam pão numa fornalha de barro.
Felisberto não era nada feliz naquele mar de areias verdes onde a vista se perdia, mas aguentou sete meses. Até que o apanhou um ataque fatal de paludismo, mesmo ruim, e uma paralisia facial que o deixou de cara à banda. O viajante não compreende como é que o paludismo e a paralisia se juntaram assim, mas Felisberto também não sabe explicar.
Lá foi um dia evacuado para Serpa Pinto, numa passarola de quatro asas que aterrou na picada. Dali apanhou uma camioneta para Nova Lisboa, e depois outra para Luanda, onde acabou por chegar ao fim duma eternidade e com menos de cinquenta quilos de peso. Ficou mais perto do filho e da mulher, mas ainda havia de tardar em vê-los, que lhe faltava um ano e tal de comissão na 7ª esquadra de Luanda. Gastou-o ele entre idas ao médico e transportes de presos para a Damba, um presídio de pretos lá nos confins do norte. E foi assim que Felisberto conheceu meio mundo, e viu coisas com que nunca sonhou, e se fartou de viajar à custa do império.
Quando voltou foi parar à Quinta do Pisão, a um centro de apoio social da Misericórdia de Cascais. Ficou por lá uns anos,em serviços de enfermaria, e só não aguentou mais porque já nada era igual. Nem a vida com a mulher e o filho voltaram a ser a mesma coisa.
Ao viajante,que se limita a observar enquanto vai ouvindo, Felisberto faz lembrar um barco que perdeu o lastro. Sendo dum país de marinheiros, cabia-lhe andar assim por mares e sertões, isso o viajante não discute. Mas a um marujo assim não convirá expôr-se a virações, nem aventurar-se em águas fundas. Bem a propósito, o viajante quer saber o que ele pensa da barragem que ali fizeram em frente.
- São uns ladrões que só pensam no dia de hoje! E o futuro ninguém o sabe! Se um dia o povo precisar de matar a fome outra vez, o melhor é afogar-se!
Nalgum lugar encontrou Felisberto esta sabedoria. O viajante não está seguro de que tenha sido nos caminhos do império, onde deixou ficar o lastro.

terça-feira, 10 de setembro de 2019

Cristo moleiro

Era uma vez uma velha moleira que tinha cinco filhos. E enquanto a ribeirinha corria, cantando a mó alveira, lá iam eles entregar aos fregueses as fanegas de farinha.
Uma tarde passou por lá um santeiro, um pobre homem que talhava santos em pau de amieiro. Era só esse o trabalho que fazia. 
A moleira deu-lhe um caldo, e encomendou-lhe um cristo para cada filho. O santeiro esmerou-se nos trabalhos de formão. E dumas tábuas de caixas de sabão arquitectou as cruzes.
Rodaram tempos, a moleirinha morreu, e os filhos seguiram o seu caminho. Cada um com seu cristo na bagagem. E tudo estaria bem se não fosse o caruncho, porque todos acabaram  carcomidos. Só um é que escapou em cima duma mesa, num quarto escuro dum moinho que ficara ao abandono.
Um dia passou por lá um cristão que o salvou e lhe deu nome. Vive agora ao calor da chaminé. 

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Prestação de contas

De repente vêem-se quinar amigos, e os que ficam são tão longe que as distâncias se tornam intransponíveis. O mundo tornou-se grande, as imagens do passado baralham-se na tela, adiam-se tarefas, desmarcam-se obrigações. E o equilíbrio exige-nos o apoio dum bastão...
É altura de fazer as contas e pensar numa autobiografia! 

sábado, 7 de setembro de 2019

Ontem

Chegou a hora de o Ciro se ir embora. Era maiato e tinha uma alma grande. Um adeus comovido e até logo.

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Cão que ladra

O rapaz trabalha ali na oficina dos pneus, e tem as mãos e os braços negros até aos cotovelos. É um trabalhador exemplar. Faz estalar a pistola do ar comprimido para sacar as porcas, e anda numa roda viva entre o desmonta-jantes e o calibrador. Volta a montar as rodas nas polies, calibra o aperto dos parafusos, e por fim baixa o elevador eléctrico. Leva o carro a alinhar a direcção e logo parte para outro que o espera na box ao lado. Passa nisto o dia todo.
De vez em quando saem-lhe da garganta uns latidos agudos que os clientes já conhecem, parecem dum cachorro aflito. Mas ninguém pergunta nada nem fica sobressaltado. É assim desde que começou a trabalhar, e já toda a gente sabe donde isto lhe vem.
Tem estas reacções desde criança. As desavenças em casa, a gritaria entre os pais, o que viu e o que terá ouvido, ninguém o sabe mas todos imaginam. A aflição insegura levou-o a agir assim, a soltar estes latidos de terror.
Ora toda a gente sabe que um cão que tanto ladra não vai agora morder.

Trovas antigas

Quatro castanhas assadas
Quatro pingos de aguardente
Quatro beijos duma moça
Fazem um homem contente!

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Quem longe fizer a boda no caminho a come toda!

Tivesse eu sabido a tempo e outro galo cantaria!

domingo, 1 de setembro de 2019

Ganhos e perdas

Há águas boas, todos o sabemos. O que se perde, e é mau, é quanto ficou nelas: vidas, canseiras, imagens, sonhos. Mundos perdidos definitivamente.