domingo, 30 de abril de 2017

Responsório

Vais-me dizer que eu inventei a história, que eu sou um cínico e a história é impossível. Andas muito longe da verdade.
O padre Abreu não é padre, nunca chegou a sê-lo. Não tem cabeça para teologias e as latinadas cansam-no. Mas veste-se à futrica, como os padres modernos e sempre que pode exercita a função. Mora aqui na cidade. E o povo, que não separa o facto do direito, chama-lhe padre Abreu.
Razão terá, que o padre Abreu não sonha com outra coisa, passa a vida na sé. Ajuda à  missa, cuida da liturgia, aconselha as devotas e decora os responsos. Já perdoou pecados capitais, e gente há que entrou no céu por sua mão.
Há tempos foi preciso enterrar um cristão, numa aldeia dessas despovoadas onde nem padres vão. E o padre Abreu lá foi, a encomendar o defunto, a devolvê-lo ao pó. Mas os parentes vieram a saber que o padre Abreu nunca tomara ordens e temeram o pior. Puseram-lhe uma demanda em tribunal.
O padre Abreu sentou no banco dos réus a gravidade e a mansidão dum sócio do Vaticano. Alegou em defesa o serviço de Deus e afiançou as encomendações.
- Pois faça aí o responsório dum defunto! - ordenou o juiz a esfolhear os códigos. - Já veremos se merece remissão!
Não pedia outra coisa o padre Abreu. O meretíssimo chegou ao fim apaziguado, como quem deixa um amigo em boas mãos. E absolveu o réu.

sábado, 29 de abril de 2017

O que se vê!

Cinegética
 
Um caçador
perdeu a cedilha
e por isso
sua mulher
nunca mais
quis ir à caça
com ele
sem cedilha
 
TORAH
 
Jeová achou que era altura de pôr as coisas no seu devido lugar. Lá de cima, acenou a Moisés.
Moisés foi logo, tropeçando por vezes nas lajes e evitando o mais possível a sarça ardente.
Quando chegou ao cimo, tiveram os dois uma conferência, cimeira, claro. A primeira, se não estou em erro.
No dia seguinte Moisés desceu. Trazia umas tábuas debaixo do braço. Eram a Lei.
Olhou em volta, viu o  seu povo aglomerado, atento, e disse para todos os que estavam à espera:
- Está aqui tudo escrito. Tudo. É assim mesmo e não há qualquer dúvida. Quem não quiser, que se vá embora. Já.
Alguns foram.
Então começou o serviço militar obrigatório e fez-se o primeiro discurso patriótico.
Depois disso, é o que se vê.

sexta-feira, 28 de abril de 2017

Faunos pelos bosques

Aproveitando-lhe as flores da mocidade, o padre da freguesia cobiçou-lhe as formas, as maneiras, e meteu-lhe os tampos dentro. Mal sabia, o Barzabu, que lhe metia no corpo o diabo à solta. E de facto a cachopa nunca mais teve sossego e passou a dormir mal.
O prior fez dela mestra, arranjou-lhe um diploma... E acabou a dar escola ali para os lados das Caldas.
Eu conheci-a nuns serões da Tágide, uma coisa que existia nas cercanias da Pide. E assustou-me o frenesi com que ela me abria o peito. Mas eu não estava maduro, que as primícias dum varão chegam mais tarde, ainda hoje isso acontece.
Ela é que não desistia, sempre em vão. Na aldeia das Caldas estava à minha espera, era só eu aparecer. Isto enquanto se enroscava em mim, prometendo as mil e uma noites.
Não me dignei aparecer, terá sido o que perdi. Anos depois o marido meteu-lhe no bucho uma ninhada de filhos, até que ela se calou.

quinta-feira, 27 de abril de 2017

Cogitações de caminhada


XI
Aquela senhora tem um piano
Que é agradável mas não é o correr dos rios
Nem o murmúrio que as árvores fazem...

Para que é preciso ter um piano?
O melhor é ter ouvidos
E amar a Natureza.

[POEMAS de Alberto Caeiro, Ed. Ática, Lisboa]

quarta-feira, 26 de abril de 2017

Um tantinho de nozes

Angelina tem mais de setenta anos e vive em Dine, que é o lugar onde nasceu. É uma aldeia com fornos de cal, abandonados há muito. E fica atrás do derradeiro monte que limita os fins do mundo. Chega-se lá depois de passar muitas encruzilhadas, e é um lugar tão bonito que nem apetece deixá-lo.
É aqui que Angelina vive, com uma cadela que se chama Luna. Ouve uma pessoa um nome assim e põe-se a fazer perguntas ao instinto.
A seu tempo foi Angelina mãe solteira, duma filha que vive na cidade. Trabalha no comércio, a rapariga, e Angelina está toda contente. Gosta mais de a ver longe neste ofício, do que perto a labutar no campo. Ressalvando a tristeza comum de se encontrarem só de horas em quando. Mas um dia há-de-lhe dar uma netinha.
Angelina vive perto da fontana, ao lado duma represa que também serve de tanque de lavar. E quando chega o Natal faz um presépio ali no jardinzito, para alegria e animação do povo. A casa fica além, debaixo da parreira, e vivem hoje nela a dona e a cadela, conforme antigamente lá viviam a filha e a mãe já velha. Sempre que voltava a casa, Angelina punha-se a fingir a voz duma vizinha, às punhaladas na porta com recados urgentes. - Ó que assim és tontinha minha filha! - E riam ambas no fim.
Ao contrário do resto da aldeia Angelina não anda de preto, porque não é viúva. E por sobre ser uma mulher com ar alegre, tem um espírito aberto, dado e solto. O melhor será chamar-lhe livre, porque o é. Ninguém lho amansou, que é o que sucede as mais das vezes, quando passa por cima das mulheres o rolo compressor da conjugalidade.
À despedida oferece-nos um tantinho de nozes e castanhas. E confessa que, por esse mundo além, só lhe agradava ver a árvore de Natal numa praça do Porto. Dizem na televisão que não há outra maior e ela acredita.

O dia em que nos fomos aos morangos, na quintinha do Rossio ao Sul do Tejo!

O Dornier (DO-27) era uma maravilha da aerodinâmica alemã. O trem era de roda de cauda, com duas pernas à frente (e duas variantes em largura e altura). Manobrá-lo no chão era exercício delicado, sempre a dois passos do cavalo-de-pau.
A asa alta adaptava a superfície alar mediante as várias posições dos flaps, controladas por uma alavanca vertical no centro do cockpit. Porém isso permitia-lhe aterrar e descolar, nas pistas improvisadas do mato, em distâncias inacreditavelmente curtas.
O pior eram os motores de pistões, da BMW e mais tarde da Piaggio. Os engenheiros nunca conseguiram resolver os problemas de arrefecimento a ar. E falava-se de inúmeros casos de aviões plantados nas picadas do sertão. Mas eles eram uma peça fundamental nos transportes ligeiros e nas evacuações das tropas no mato.
Em 1970 eu dava instrução em Tancos (em T6-G, em DO-27 e em Auster) a jovens pilotos milicianos que passavam por ali com formação básica em T-6, antes de irem para África cumprir uma comissão. Partíamos da BA3 e íamos à Comenda treinar aterragens em pista de terra, numa herdade do Pequito Rebelo. Esse figurão franquista achava que o Auster inglês, esse trambolho, é que ia ganhar as guerras de África, montado nas OGMA de Alverca. E a verdade é que, se não as ganhou, também as não perdeu. Mas voltemos à Comenda.
No caminho para o Gavião aproveitámos para treinar emergências de motor, com simulacros de aterragem forçada. A dada altura o hélice parou, e não respondia às tentativas de arranque. Eu apoderei-me dos comandos e procurámos um quintal onde aterrar, entre cepas de vinhas, campos de sobreiros e um pinhal. Lá no meio havia um quintalito, onde parecia possível aterrar a passarola sem danos de maior. E nós lá fomos, planando e descendo, tenteando.
Aproximei-me da final por cima do pinhal, e o quintalinho era em ligeiro declive de que só tarde me dei conta. E o mais grave é que o pinhal tinha 15 metros de altura. Meti-lhe o pé, glissei que nem um cão, mas o ladrão era uma maravilha aerodinâmica e não queria vir para o chão. Lá ao fundo esperavam-nos uns sobreiros seculares.
Meio quintal estava andado e eu não queria lá chegar. Era o momento dos grandes remédios para males enormes! Pranchei a 60 graus, enterrei no chão a ponta duma asa e a perna do mesmo lado a lavrarem o solo. O DO-27 só podia fazer o que fez. Em 20 metros dobrou-se ao meio, partiu os arados das pontas e parou antes dos sobreiros, sem violentar o nariz. Havia histórias de choques frontais em que os apoios do motor cediam e prendiam pelas pernas os tristes aviadores que acabavam assados em labaredas.
Este parou deitado de lado, saímos os três por cima, e fomos dar a uma quintinha onde uns velhotes condoídos nos ofereceram morangos. Havia um telefone dos antigos, e o comandante da base só lamentou que assim tivéssemos perdido o troféu de segurança de voo. Mas nós ficámos consoladinhos com os moranguitos da horta.
Mais tarde os engenheiros de Alverca foram lá num camião buscar o machacaz. Montaram-no numa banca, puseram o motor em marcha, e ele cantou que parecia um tenor. Grande cabrão!

segunda-feira, 24 de abril de 2017

25


... E há o estado a que isto chegou!

O Roque e a amiga

Estão ambos ali ao cimo da avenida, há um ror de tempo, a quezilar. Nos dias de calor sonham com o lençol do rio, que passa lá ao fundo. Sempre traz uma frescura e lembra-lhes o mar, e o mundo para além dele. Fora disso contentam-se com a baixa pombalina, que lhes dormita aos pés.
Um tem formação romântica e um espírito clássico. Recolhido nas abas do capote, hierático e definitivo, parece um rei de pedra, dos antigos. Bem pode o mundo quebrá-lo mas não o torcerá, porque a razão não deixa.
O outro tem formação clássica e um espírito romântico, e uma alma que não se lhe confina às arcadas do peito. Traça no ombro a capa esvoaçante e avança para o mundo de cabeça erguida, de barbicha à dandy, gaforina ao vento. O génio todo está no sentimento.
Sempre que ali passo bato-lhes à aldraba s empurro a cancela. Para saber quando resolvem a contenda.

domingo, 23 de abril de 2017

LER

É um caderno de 160 páginas. Lá dentro há notícias de publicações de perto e de longe, vinte e cinco páginas acerca do Onésimo, cinco páginas à volta do Lobo Antunes, sete páginas sobre o Raul Brandão, e trinta e quatro páginas do João Pedro George (olha quem!) sobre as mamas na literatura portuguesa. Custa a desmesura de 6€. Leio uma horita dele e arrumo-o na estante.

"O meu medo é notar que com os anos me vou tornando razoável em excesso, quase doentiamente tolerante. É disso que quero que me guardeis, Senhor. Dai-me raivas. Mantende viva em mim a capacidade de me enfurecer. Deixai que continue a chamar às coisas pelo seu nome, a criticar sem medo, a rir de mim próprio, e livrai-me até ao último momento das aceitações que crescem com a idade."
[José Rentes de Carvalho, em Mazagran, livro de crónicas que venceu o prémio APE]

sábado, 22 de abril de 2017

Farsantes eruditos

Em tempos, o mestre encartado Pedro Eiras desceu da faculdade de Letras do Porto para palestrar na BMEL. E apresentou uma publicação que perora sobre a sua descoberta das cartas de Pessoa a Mário de Sá-Carneiro, suicidado em Paris em 1915.
De facto são conhecidas as cartas que ele enviou ao Pessoa, como colaborador do Orpheu. Mas as respostas do aprendiz ao mestre ter-se-ão perdido num hotel, onde até as contas ficaram por pagar.
Diz ele que as ditas cartas ficaram numa mala que ele, mestre, acabou por achar. E publicou-as num livrinho a que a Assírio & Alvim chamou um figo. O leitor confiante que se cuide, ou que se foda! Não sei o que é que o mestre Eiras ensina aos seus mestrandos de Bolonha, que por aí pululam a fazer figuras tristes e a praxar os caloiros. Muito suspeito que isto anda tudo ligado! 
Demos a palavra ao farsante-mor:
"Em 1995, numa ida a Paris, decidi procurar o antigo Hotel de Nice, onde Mário de Sá-Carneiro viveu os últimos meses e se suicidou. O hotel fica em Pigalle, bairro vermelho da cidade, cheio de cinemas pornográficos e espectáculos para adultos, com os empregados à porta a tentarem aliciar os casais, entre néons. Descobri o prédio numa rua mais tranquila, atrás das avenidas. Na fachada, uma placa lembrava que ali tinha vivido le poète portugais Mário de Sá-Carneiro; na recepção, sobre uma mesa, havia um exemplar da fotobiografia do autor, publicada por Marina Tavares Dias em 1988. Inteiramente remodelado, o pequeno hotel - agora Hôtel des Artistes - não podia ter mais interesse para mim. Nada restava de Sá-Carneiro neste bairro falsamente alegre. Abandonei Pigalle com alguma amargura.
Em Outubro de 2015 desloquei-me a Paris para participar num colóquio. Cheguei alguns dias antes e, neste ano marcado pelo centenário da revista Orpheu, tive curiosidade de ver como estaria o Hôtel des Artistes. Saí do metro em Pigalle. Revi a placa na fachada. Entrei, já não avistei a Fotobiografia. O empregado do hotel perguntou-me se eu vinha reservar um quarto. Expliquei o que me levava ali. O empregado achou muito curioso eu interessar-me tanto pelo poète portugais; contou-me que, durante as últimas obras do hotel, tinham encontrado nas águas-furtadas uns papéis que eram peut-être dessa altura, escritos numa língua que ele não percebia, e perguntou-me se os queria ver. Eu disse que sim.
(...) assim também me esperavam, pousadas sobre uma arca antiga na arrecadação do hotel, amarradas por um cordel, amarelecidas pela humidade e pelo tempo, as cartas que Fernando Pessoa escreveu a Mário de Sá-Carneiro entre Julho de 1915 e Abril de 1916.(...)
Mário de Sá-Carneiro suicida-se a 26 de Abril de 1916, tomando vários frascos de arseniato de estricnina. Uma enigmática relação amorosa, a falta de dinheiro (apesar da mensalidade que o pai regularmente lhe enviava de Moçambique) e um insistente fascínio pela ideia do suicídio já tinham levado Sá-Carneiro a planear matar-se no início desse mês. Quando morre, deixa uma dívida no Hôtel de Nice, onde residia. (...)
Admito que é absolutamente inverosímil as cartas de Pessoa estarem pousadas sobre uma arca naquela arrecadação, naquele início duma tarde de Outubro de 2015, no dia em que, por acaso, decidi passar pelo Hôtel des Artistes. Porém, contra toda a inverosimilhança, assim foi. (...)"

Noite

"Vem, Noite antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.

Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas,
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faz da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo,
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe,
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora,
Na distância subitamente impossível de percorrer.

Nossa Senhora
Das coisas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter connosco ao crepúsculo, à janela,
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto,
E que doem por sabermos que nunca os realizaremos...
Vem, e embala-nos.
Vem, e afaga-nos.
Beija-nos silenciosamente na fronte,
Tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam
Senão por uma diferença na alma
E um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiquíssimo de nós
Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha
Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida. (...)

Vem, dolorosa,
Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,
Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados,
Mão fresca sobre a testa em febre dos Humildes,
Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados.
Vem, lá do fundo
Do horizonte lívido (...).

Vem, cuidadosa,
Vem, maternal,
Pé ante pé enfermeira antiquíssima, que te sentaste
À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,
E que viste nascer Jeová e Júpiter,
E sorriste porque tudo te é falso e inútil. (...)
Todos os sons soam de outra maneira
Quando tu vens.
Quando tu entras baixam todas as vozes,
Ninguém te vê entrar.
Ninguém sabe quando entraste,
Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,
Que tudo perde as arestas e as cores,
E que no alto céu ainda claramente azul
Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem,
A lua começa a ser real!"
  • [Poesias de Álvaro de Campos, Ed Ática, Lisboa]

sexta-feira, 21 de abril de 2017

Gin-Tonic


Última tentação
Então ela quis tentá-lo definitivamente. Olhou bem em volta, com extrema atenção. Mas só conseguiu encontrar uma pera pequenina e pálida.
Ficaram os dois numa desesperante frustração.
Não há dúvida de que o Paraíso está a tornar-se cada vez mais chato!


Exageros
O Alfredo atirou o jornal ao chão, irritadíssimo, e virou-se para mim:
- Estes jornalistas! Passam a vida a inventar coisas, é o que te digo. Então não afirmam que, no Sardoal, foi encontrado um frango com três pernas! Vê lá tu! É preciso ter descaramento.
Ajeitou-se melhor no sofá e, realmente indignado, coçou a tromba com a pata do meio.

quinta-feira, 20 de abril de 2017

Merdas

O burgo não vem no mapa, mas tem uma escola secundária e outra profissional. E a juventude, recentemente púbere, senta-se na esplanada ao fim da tarde.
Elas mal se diferenciam deles. Uns picam em écrãs, outros nem isso. E a maior parte são gordos, quando não obesos, devorando o que o mercado lhes oferece: pacotes, churritos, milhos, refrigerantes, merdas.
A pátria um dia vai vê-los partir, a trabalhar mundo além. E se ela os não lamentar, eu também não.

quarta-feira, 19 de abril de 2017

Um regalo

Fazem-lhe a festa no último domingo de Maio, está aí à porta. Porque a igreja católica nunca brincou em serviço, quando se tratou de ocupar os lugares antigos que há séculos o povo frequentava.
Aqui ao lado nuns fraguedos houve um castro pré-histórico, as evidências são muitas. Há sepulturas antropomórficas de tempos imemoriais. E mais além num outeiro, houve um posto de vigia, quem sabe se dependente do castro de Casteição.
Mas a santa está ali, na capela onde passou o Inverno. Já não é a santa original, que dava chuva quando lha pediam e agora fazia falta. Mas um dia vieram cá os dos Gatos e roubaram-na. Porém os de Casteição assaltaram-lhes a igreja e trouxeram-na para cá. E cá a têm. Puseram uma santa nova na capela, que não dá chuva sempre que lha pedem, nem guarda a virtude original.
O povo vai festejá-la à entrada do Verão. Prende-a no andor, leva-a a passear, areja-a. E a santinha, mesmo falsa, fica toda regalada.

terça-feira, 18 de abril de 2017

Do estranho caso do meco que queria ser rei à custa da barba longa


O sr. Stephens é um erudito irlandês que decidiu mitificar a gesta portuguesa. É lá com ele, já que é dono do próprio livre-arbítrio. É certo que muitas vezes confunde o leitor e o baratina, com príncipes e reis e imperadores que têm o mesmo nome próprio mas não são idêntica pessoa. Adiante.
O caso vem ao general Junot. Mandou em Portugal durante nove meses, até que foi corrido Espanha fora. Ouçamo-lo.

"Por todas estas razões acolhiam bem os franceses e os chefes do partido democrático desejavam que o imperador Napoleão tomasse posse do reino, concedendo-lhe instituições representativas. Junot, a princípio, procedeu com a maior prudência; é certo que impôs a Lisboa uma contribuição forçada de dois milhões de francos, apoderando-se de todo o dinheiro existente no tesouro; mas ao mesmo tempo lisonjeou o povo português não partilhando o saque com os espanhóis.
O seu segundo passo foi dissolver todo o exército português e aquartelar as tropas francesas nas cidades e praças mais importantes. (...) Não empregou esforços para atrair a si os democratas portugueses, rindo-se das suas ideias constitucionais: hasteou a bandeira tricolor no castelo de S. Jorge, dividiu o país em governos militares comandados pelos seus generais, e finalmente, no dia 1 de Fevereiro de 1807, fez uma proclamação na qual declarava que a casa de Bragança cessara de reinar. Os franceses assenhorearam-se de Portugal, as autoridades administrativas foram demitidas e os generais franceses dominaram o país com autoridade absoluta como governadores militares. (...) Apresentou-se como protector das Letras, sendo eleito presidente da Academia Real das Ciências, no lugar do duque de Lafões. Na esperança de suceder aos Bragança, reduziu a contribuição de 40 milhões de francos, imposta por Napoleão. (...) O principal agente de que se servia para estas negociações era um legista, chamado José de Seabra, que formou uma deputação presidida pelo inquisidor-mor para ir pedir a Napoleão que nomeasse Junot rei de Portugal. (...)
O general Thomiéres, por exemplo, saqueou o mosteiro de Alcobaça e destruiu os ossos dos primeiros reis de Portugal, e o general Loison calcou o povo, sufocando um pequeno motim em Mafra com a mais horrorosa crueldade. (...) Todos os oficiais franceses foram assassinados ou expulsos, constituindo-se Juntas independentes.
Organizou-se também uma Legião Lusitana com os portugueses que por acaso se achavam em Inglaterra, sendo enviada para Portugal sob o comando dos coronéis sir Robert Wilson e Maine. (...) As melhores tropas e os oficiais mais hábeis tinham saído de Portugal na Legião Portuguesa, para se reunirem ao grande exército francês , e os camponeses não disciplinados e os mancebos recrutados à pressa eram facilmente derrotados pelos veteranos franceses. Sir Arthur Wellesley desembarcou na foz do rio Mondego e avançou para sul na direcção de Lisboa. Derrotou a divisão de Delaborde na Roliça, e depois de receber reforços derrotou o próprio Junot no Vimeiro. Seguiu-sea convenção de Sintra, pela qual se concordou na retirada de Junot e na entrega das praças em seu poder, permitindo-se-lhe que as suas tropas pudessem seguir a salvo para França, com tudo o que haviam saqueado. (...)"
Junot enganou-se. O ovo não estava no cu da galinha, e muito menos lá tinha pinto. Acontece!

Emídio

Nesse tempo era apenas sacristão, ajudava à missa e tocava às trindades. Vivia aqui na aldeia uma vida precária, com a mulher e duas filhas pequenas. Um dia chegou-lhe a febre do Brasil, que tinha séculos, e foi melhorar a vida. 
Em São Paulo foi chamado por uns irmãos franciscanos, para cuidar da chácara do convento. E acabou a aprofundar as práticas piedosas.
Levado por ventos jacobinos o convento fechou portas, e o irmão Emídio regressou à aldeia. As filhas eram crescidas, andavam a estudar, e a mulher já se esquecera das madrugadas antigas. Queria era trato e mais descanso.
A horas de alba saltava ele da cama. Ajoelhado erguia as mãos ao alto, murmurava preces sussurradas. Depois voltava à cama, enregelado, até chegar a hora de tocar a matinas. Era quando a mulher mais ressonava.

segunda-feira, 17 de abril de 2017

O palafreneiro

A casinha era singela, ali na rua, ainda não tinha o primeiro andar que depois veio, quando tudo isto cresceu. Tinha uma cozinha por onde o frio andava, só rendido a uma fogueira de lenha que a marquesa trazia da aldeia. Foi onde vivi aquele ano escolar, com a minha saudosa avó, em trânsito das minhas intimidades com o Cícero para o universo profano que me esperava cá fora.
O doutor, que morava ali ao lado, num casarão adossado à muralha, tinha num anexo um cavalo baio, que andava precisado dum palafreneiro. E eu vinha mesmo a calhar.
Foi o feitor quem lhe disse que eu sonhava noutras coisas, gostava muito de ler, havia de escrever livros.
O doutor achou que o mundo andava descarrilado e era a mais pura verdade. Porque o baio perdeu um palafreneiro para lhe apertar a cilha. E eu nunca fui escritor.

domingo, 16 de abril de 2017

Assad, bombas-barril, gás sarin e a histeria da NATO

Quando Moscovo implodiu, o muro de Berlim desabou e a perestroika se impôs, a senhora Nato, em vez de se dissolver por desnecessária, estendeu as patas.
Enganou-se. Porque Moscovo tinha a frota do Mar Negro, e mísseis balísticos intercontinentais e o grande poder de destruir o planeta várias vezes.
Os cães de fila franceses, ingleses e italianos foram à Líbia à caça do Kadhafi, apanharam-no num esgoto e sodomizaram-no depois de morto. A Líbia desapareceu do mapa, voltou aos tempos do império romano, é um exportador de refugiados em desespero. Mas os rebeldes das primaveras árabes, esses farsantes, já tinham varrido o Ben Ali da Tunísia e arrasado o seu Cartago em favor da liberdade.
Depois seguiu-se o Egipto e a irmandade muçulmana. E o desgraçado do Saddam Hussein, o tal das armas de destruição maciça que não existiam, foi apanhado num buraco do Iraque e levou na cabeça com a batuta do maestro da Nato, o Bush bêbado do Texas e das Torres Gémeas que já tinham ido à vida. Os sunitas, os chiitas, os sauditas, os wahabitas e outros itas parecem um formigueiro ensandecido.
Do Afeganistão já nem se fala, com tantos libertadores, que andavam a limpar o sangue das moto-serras eléctricas com que esquartejavam os pilotos de Moscovo quando os apanhavam vivos, esses pobres.
O Irão e a Síria vinham a seguir, na ordem de operações dos democratas da Nato. É aí que surge o Assad. Fez à Nato um pirete das Caldas e correu os rebeldes de tanta primavera a bombas-barril e a bombas inteligentes de Moscovo.
A triste Europa, coitada, está fodida e refodida. Mas a América vai ser outra vez poderosa e grande, tão e tanto como a puta que a pariu. Eu por mim, caso tivesse idade de alistamento, já sabia aonde!

sábado, 15 de abril de 2017

A última viagem

Até nisso teve dignidade, o rai' do carro. Veio acabar a dez quilómetros de casa, depois de andar às voltas pelo mundo durante 40 anos. E foi ontem. Na subida para o Chafariz do Vento teve um sobre-aquecimento e queimou a junta da culaça, entre outras coisas.
Isso acarreta trabalhos que eu não vou realizar. Arranjo-lhe um primo novo a gasolina, um minúsculo VW, que me chega muito bem e gasta pouco.
Ao panzer trouxe-o para casa e prendi-o ali na argola. Envelhecemos os dois, tal como temos vivido há muitos anos.
Se um dia vier a ter outro dono, vai ter saudades de mim, tal como as que eu tenho dele.
(couleur Bordeaux, aqui deformada pelo fotógrafo)

Lagar de azeite

Vai-se dizer que isto é uma chinesice mas não é verdade, que tudo tem na vida o seu papel. A câmara municipal decidiu em tempos recuperar um antigo lagar de azeite, e criar nele um restaurante mesmo à beirinha do rio. Um lugar de romaria. 
Chamou-lhe pomposamente o Centro de Investigação Gastronómica, e servia nele sabores muito antigos, como a lagarada, o polvo à lagareiro e outros. Sabores que a gastronomia moderna já esqueceu, e eram heranças das comidas de outro tempo, quando o lagar laborava.
Durante uma dúzia de anos a câmara explorou o restaurante, e o cliente cultor tinha ali o seu santuário. Mas um dia resolveu libertar o orçamento camarário, e fez o que devia ter feito desde o primeiro dia: concessioná-lo.
Tão alta colocou ela a fasquia que nenhum futrica lhe pegou. O pessoal deixou de lá trabalhar e o restaurante fechou. Quinhentos quilómetros em redor ficaram só estancos rotineiros, e o mundo ficou mais pobre.

sexta-feira, 14 de abril de 2017

O sapateiro Bandarra

Desperta para certas realidades, a Câmara organizou um encontro de natureza cultural sobre o sapateiro Bandarra, uma das glórias da terra. E juntou na mesa um grupo de intervenientes, uns mais encartados do que outros, regidos por essa abencerragem do Carlos Vaz Marques, conhecido palmilhador de andanças várias.
Os intervenientes disseram de sua justiça. E este leitor nem sempre esteve de acordo, porque pouco mais aqui aconteceu do que uma sessão de criação de mitos. O mito é o nada que é tudo, e o Bandarra não vai além disso. Se não, vejamos:

"O Bandarra, conforme a alcunha o crismou, pouco mais foi do que um pobre diabo. Andou aos baldões por este mundo e foi jogado por ele. E jogado sobretudo por quem mais se demonstrou seu ferrenho amador. Era uma dessas cabeças atiladas, que às vezes nascem do povo, e vivem aprisionadas numa condição em que não cabem, sem lhe poderem escapar. De espírito aguçado e uma invejável memória, cumpria bem ou mal o seu ofício, lia e relia uma bíblia emprestada, a pontos de lhe saber de cor longas passagens. E do que não sabia tirava analogias, já discorria como grandíssimo teólogo.
Os marranos, que abundavam no seu mundo, eram uma gente em cerco desesperado. Mais do que na aflição da miséria, viviam na angústia do transitório, na incerteza dos haveres, na insegurança das vidas. Ecoavam-lhes no peito as promessas do Messias, de que lhes falava O Livro, e não tardaram a buscá-las nas concordâncias do Bandarra. Visionário como todos os profetas, tinha aquele ar de ovelheiro a quem Deus é bem capaz de confiar os segredos do mundo. Vinham de longe, a consultas, ouviam-no como a oráculo, alguns o tratavam já como rabino dos seus. Tal e qual como faz quem vai à bruxa, hoje em dia.(...)
Em Espanha tinham os judeus vivido transes parecidos. E foi de lá que vieram uma coplas proféticas, duns troveiros visionários, a prometer a salvação pela mão dum príncipe que chamavam Encoberto. É de crer que foi a partir delas que o Bandarra começou a fazer trovas. Ninguém sabe quem as passou a limpo, andavam por aí copiadas à mão, com letra de cada um. E prometiam aos judeus o Messias, um Encoberto que ainda hoje não veio.
Ninguém as conheceu no seu original, por todas as versões serem diferentes. E alguma delas foi parar à mão da Inquisição. que não podia tolerar semelhantes despautérios. Chamou o Bandarra a capítulo, vestiu-lhe o sambenito, levou-o à procissão dos condenados. Mas perdoou-lhe a fogueira, por não trazer no rústico semblante qualquer sombra de pecado. O pobre voltou para casa vedado de fazer trovas, de voltar a ler a bíblia ou falar dela. Quem sabe se foi então que acabou a recolher-se na casa do Nogueirão, para se afastar do mundo. Pois tão bem lhe assentou a lição que ninguém mais o ouviu.
Um dia o Bandarra morreu mas ficaram as Trovas, que um povo já naufragado só nelas guardava esperança. O rei-criança lunático desaparecera em África e o reino ficara sem cabeça, sujeito ao inimigo de Castela. Só nas Trovas havia consolação. Foi por isso que apareceu a primeira edição delas. pela mão dum fidalgo importante. Para dar esperanças ao povo pôs-se o Bandarra a dizer que el-rei um dia havia de voltar, saído do nevoeiro. Mas o rei não apareceu, em seu lugar vieram os castelhanos. E a clerezia, que metera o sapateiro num inferno por causa dumas trovas, começou a realça-lo nos sermões, e a exaltá-lo nos púlpitos. Fizeram-lhe um mausoléu em pedra lavrada na igreja de S. Pedro, encheram-no de ar e vento.
Um dia expuseram-lhe o retrato na catedral de Lisboa, trataram-no como a um santo. E logo outro fidalgo fez nova edição das Trovas, agora acrescentadas de umas outras que se disseram achadas em poder dum tal Pacheco, da idade do sapateiro, há uns cem anos atrás. Desta vez o Bandarra anunciava a restauração dos Braganças.
Um século depois ainda apareciam trovas novas, que uns pedreiros vindos da Galiza foram descobrir na capela-mor da igreja de S. Pedro. E lá punham o Bandarra a adivinhar as guerras do Napoleão, depois de elas terem vindo.
O importante desta história não é o que deixou dito o sapateiro, mas o que na boca lhe puseram os poderosos, para melhor conduzirem o rebanho. Primeiro foi messiânico, depois foi sebastianista, e acabou a adivinhar incertas restaurações. Mas tudo o que o Bandarra fez, e outros fizeram por ele, foram uns versos de sapateiro remendão. Davam para explicar tudo, consoante as aflições. Se ele pudesse imaginar o que iam fazer das Trovas, não as contava a ninguém. Ainda hoje enchem barriga a muita gente, pelos vistos vão pô-las num museu. Que Portugal habituaram-no a charadas e já não vive sem elas. (...)"
[Portugalmente - Peregrinação da Lapa a Riba-Côa, Ed. Âncora, Lisboa, 2012, pág.114]

quarta-feira, 12 de abril de 2017

Augusto

Há muitos anos, era ainda um fedelho, o Augusto esteve de paquete na quinta do Forcas. E um dia vinha em cima do cavalo, a tocar umas vacas que recolhiam a casa. Depois viu a camioneta que descia a ladeira e bem puxou o cabresto ao animal. Mas o alma do diabo espantou-se e o Augusto foi parar ao fundo da ribanceira, com uma perna estracinhada.
Os médicos salvaram-no do pior, puseram-lhe na perna umas talas de cartão com um peso de balança pendurado. Tempos depois, quando tiraram o peso, o pé trambolhou para o lado como se estivesse morto. Operaram-no e os ossos lá colaram, mas a perna ficou curta.
Anos mais tarde o Augusto foi parar a França, à procura de trabalho. E passou lá muitos anos, a assentar tijolos e a reconstruir a vida. Mas custava-lhe muito a perna curta. Nas férias do Verão ia-se ao endireita, a ver se acalmava as dores. Ele encostava-o à parede, espetava-lhe a testa nos costados e fazia ranger aquilo tudo.
Até que um dia o médico francês lhe mandou fazer uma bota ortopédica. O Augusto acostumou-se à gáspea mais grossa e tem passado melhor. Um dia acertou na tabuada inteira do loto, que ainda não havia em Portugal, e assim resolveu boa parte dos seus padecimentos.
Agora bebe sumos que vêm da América, a conselho do médico que lhe proibiu o vinho. Mas lá vai andando enquanto deus mandar.

terça-feira, 11 de abril de 2017

Hascite e SNS

Dos cinco filhos que tinha, um do meio era mais enfezadito e enfermiço. Tinha uma barriguita dilatada e o doutor diagnosticou-lhe hascite. Quer dizer, o cachopo tinha na barriga uns líquidos vadios que andavam por lá à solta. E o tratamento eram correntes galvânicas.
Na vilória só à noite havia luz eléctrica. E lá ia a mater dolorosa, a cavalo na marquesa, a aconchegar o filho ao cair da noite. E só voltava já tarde, à hora dos lobos. O pai ficava por casa, a pensar noutras andanças, não eram coisas para ele.
Melhorou a hascite e o cachopo lá arribou. Outros terão tido pior sorte, vá-se lá agora saber!

segunda-feira, 10 de abril de 2017

A encruzilhada

Portugal está numa puta duma encruzilhada como já não se via há séculos. Desde o tempo da dinastia dos Lavradores e dos Povoadores, que terminou com essa nulidade a que chamaram Fernando o Formoso, o qual não passava dum títere nas mão perversas duma galdéria chamada Leonor Teles. A partir daí foi só cair, mudando a forma, até aos dias de hoje. O povo, como então, é a única saída.
 
"A existência e o reinado de D. Fernando o Formoso assinalam-se, como os de seu pai, por um amor romântico que, conquanto não fosse tão trágico como a história de Inês de Castro, teve muito maior influência política. D. Fernando foi um rei fraco e frívolo, ainda que ambicioso. Depois de se ter comprometido a casar com Leonor, filha do rei de Aragão, surpreendeu repentinamente todo o mundo com as pretensões aos tronos dos reinos de Castela e Leão, por morte de Pedro, o Cruel. (...) Mas a maioria dos castelhanos, tanto nobres como plebeus, não desejava ver um monarca português no seu trono, e por conseguinte desposaram a causa do bastardo Henrique II de Castela e Leão. A guerra que se seguiu foi vantajosa para o pretendente castelhano, e a luta findou em 1371 por intervenção do papa Gregório XI, quando D. Fernando concordou em desistir das pretensões ao trono de Castela e em casar com D. Leonor, filha de Henrique II.
Mas esse tratado não foi cumprido porque na cerimónia do casamento da sua meia-irmã D. Beatriz, filha de D. Pedro e de Inês de Castro, o rei D. Fernando viu e amou apaixonadamente D. Leonor Teles de Meneses, filha dum fidalgo de Trás-os-Montes e mulher de João Lourenço da Cunha, senhor de Pombeiro. Esta paixão foi a perda do rei, pois tal mulher foi uma espécie de Lucrécia Bórgia portuguesa, contando-se dela casos horríveis que infelizmente são confirmados pelas investigações históricas.
Desde o princípio que Leonor Teles, em vez de repelir as atenções do rei, como mulher casada que era, nutriu um vivo sentimento de vingança contra sua irmã D. Maria Teles, por esta procurar afastá-lo do apaixonado monarca. A despeito dos esforços de sua irmã, D. Leonor tratou de cativar o rei, que na sua cegueira por ela se recusou a casar com a filha de Henrique II de Castela. Esta recusa exasperou o povo de Lisboa, que sabia que os castelhanos não sofreriam em silêncio um tal insulto. Um grande tumulto popular e distúrbios rebentaram imediatamente na cidade.
A história desse motim foi admiravelmente narrada pelo primeiro historiador moderno de Portugal, Alexandre Herculano, numa das suas narrativas históricas. O chefe popular da revolução foi um alfaiate, a cuja voz a populaça investiu contra o palácio de Lisboa, procurando em vão D. Leonor e obrigando o rei D. Fernando a jurar que desposaria a infanta castelhana no próprio dia imediato. Mas D. Fernando escapou-se na mesma noite para Santarém (...).
Mostra este facto a que abismo de degradação os fidalgos portugueses tinham descido, pois que toda a nobreza aquiesceu a esse casamento bígamo, reconhecendo D. Leonor como raínha. (...)
A raínha estava então no apogeu da sua influência; o rei fraco e inconstante era seu escravo, e a tirania que exercia era em extremo odiosa. A sua riqueza era considerável, porque o rei, na sua cegueira, dera-lhe o senhorio de muitas e das mais importantes cidades pertencentes à Coroa. (...)
D.Leonor nem sequer teve o mérito de ser fiel ao seu escravizado esposo, pois que se lançou numa descarada intriga com João Fernandes Andeiro, o antigo embaixador que fora enviado a Inglaterra, persuadindo o rei a fazê-lo conde de Ourém. (...)
D. Leonor simulou a assinatura do rei, numa ordem para os dois serem decapitados ao mesmo tempo. Felizmente para Portugal, o governador do Castelo de Évora onde estavam reclusos recusou-se a obedecer, e o futuro salvador de Portugal escapou à morte. (...)"
[Henry Morse Stephens, Portugal - A História duma Nação, Ed. Alma dos Livros, março 2017]

domingo, 9 de abril de 2017

O Antunes, a Índia e o azeite cornicabra

Sempre gostei muito das laranjas da Congida, no Freixo, desde que as conheci. E hoje vou lá buscá-las sempre que preciso, antes que os espanhóis as levem todas. As laranjas do Douro Internacional, até ao Mazouco, fazem inveja aos subprodutos que os barcos trazem de sertões distantes.
Foi à custa delas que conheci o Antunes. Andou pela Índia antes do pandita ter invadido Goa. Mas o Antunes não chegou a conhecer os campos de prisioneiros onde passaram meses os soldados do Vassalo e Silva, que mandou bugiar o Salazar e se rendeu, quando viu 45 mil homens invadir Goa, mal defendida por 3 mil maltrapilhos sem munições nem armas.
Nessa altura já p Antunes lá não estava, que já tinha passado a Moçambique e Angola. Nas entrelinhas percebo que o Antunes serviu na Pide, mas não é já o tempo de eu me questionar com isso, nem de criar conflitos inúteis. O que leva à Congida são as recordações e as laranjas.
De África regressou o Antunes na ponte aérea de 75. Veio parar aqui, onde tinha raízes, comprou a quinta no sopé do monte e plantou nela as laranjeiras que ela não tinha e as oliveiras que dão o azeite cornicabra. Fá-lo ele, num lagar que tem em Escalhão e é muito bom.
O mundo é assim, largo e multifacetado, cumpre-nos usufruí-lo. Enquanto nos sobrar alma para isso.

sábado, 8 de abril de 2017

Com 50 milhões de escamartilhões!

Lá fui à Guarda, assistir à apresentação dum trabalho feito a quatro mãos. Elas dizem que só eram duas.
Desde logo tropeço na cidade, que é um despautério de ruínas políticas, culturais e físicas. Mas o pior esperava-me no evento, que se revelou um equívoco, se não se tratou antes dum lapso.
Começou por ser uma performance moderna, como as que se usam agora. A editora é algarvia, e às duas autoras ligou-as o fècebuc, já que uma vive na Guarda e a outra em Matosinhos, uma na serra e a outra à beira-mar. Apresentam-se em cena sentadas em cadeiras, cujas pernas estão atadas por uma corda franciscana. E vão rodando sobre si próprias, presas pela corda, enquanto lêem um texto cujas folhas vão lançando ao vento, uma a uma.
A dada altura, quando a performance acaba, entra em cena a moderadora. Até aí, noventa por cento do discurso perdeu-se, porque nenhuma das figuras tem arcaboiço vocal para se fazer ouvir. A palavra, a puèzia e a sensualidade são o leitmotiv. E todo o evento se reduz a um exercício de faz de conta, de iludir o relógio, de encanar a perna à rã e fazer tempo.
Phoska-se, que é demais, sugere o bom vernáculo! E o que é demais parece mal, acrescenta a vox populi.
Que os deuses nos pertujam se puderem, digo eu, pela boca do meu vizinho! E deixa um cristão de cumprir os seus deveres quaresmais para estar presente!

a
- Eu estou por baixo desse gelo. Morta.
- Estilhaça o gelo. Vem à superfície. Tu tens luz, pele macia e branca e branca.
- Quebra-me o gelo das artérias. Nada floresce. A pele está seca. Mesmo que o sol se assome é apenas espelho. Não se vê o rosto. As mãos são galhos para os corvos, a árvore está oca, raízes gritam.
As raízes têm vestígios de seiva. Vai e lambe essa seiva. Deixa que te percorra a linfa e te renove o sangue.
- Que o meu corpo se deixe levar por essa centelha de vida.
- Enche o peito de ar-
- Está gelado. Tenho de parar de respirar e criar guelras. Preciso de respiração braquial. Ou então sorver o ar de boca alheia.
- Respira pelos poros. Por toda a pele. Não sufoques. Degela e cria um imenso oceano. Vais emergir e criar uma ilha. Um hino será criado em teu nome.
- Se houver música nas marchas de silêncio...
Os silêncios têm dentro todas as músicas!
- Conta-me ...
- Contarei.

sexta-feira, 7 de abril de 2017

O mulato

Aspecto muito particular dessas guerras de Tróia é o episódio local do mulato da Torre. Era filho da Aninhas, uma das três irmãs que foi levada para o Congo onde um irmão mais velho estava rico.
Mandou ir as três irmãs, duma ninhada de nove. E elas lá foram, lá viveram, lá morreram. Salvo a Aninhas, que a determinada altura reapareceu na aldeia. E o que sucedeu foi isto: a Aninhas sucumbiu aos encantos do sertão, estendeu-se na tarimba e o resto foi o que tinha que ser. Voltou à aldeia com o mulato pela mão, sem nunca assumir que era seu filho.
O mulato cresceu (pelava-se pela aguardente dos brancos!) e regressava a casa sempre tarde, bêbado e barulhento. A mãe fechava-lhe a porta e obrigava-o aos grandes argumentos: ou me abres a porta ou digo que és minha mãe!
E tudo foi assim, até que um dia o mulato morreu cirrótico. Da cirrose dum império glorioso.

Bento na brasa

Há muitos anos, antes de aparecer o Mc'Donalds e os modernos grelhados no carvão, havia ali ao lado da capela de Santa Luzia um restaurante de luxo. Servia peixes grelhados, bacalhaus e outras iguarias. Tudo no carvão.
Mas o mercado deu em ser invadido e deixou de render. O dono fechou actividades, deixou crescer umas barbas e fez-se bento, que é apenas uma escala na hierarquia das bruxas e das potestades.
É verdade que o irmão dele era dono duma fábrica de carnes que ainda aí anda. Mas isso mordia-lhe, secundarizava-o, e o estalajadeiro aparou as barbas e tornou-se bento.
Agora aconselha, recomenda, faz uns jeitos, mete cunhas. É uma forma mais moderna de matar fomes antigas.

quinta-feira, 6 de abril de 2017

Kassinga

Em tempos que já lá vão cheguei à noite a Luanda, mas vivo. E os melhores médicos de que a pátria dispunha estavam lá e cumpriram o dichote. Fizeram o que podiam e mandaram-me esperar por um lugar na TAP que me trouxesse ao hospital de Lisboa. Lá fiquei dois meses à espera, porque não era lateiro. Adiante!
Ora um alferes que entrara de férias e dispunha dum pequeno Morris Mini tinha o pai no Sul de Angola, a trabalhar nos ferros de Kassinga. A distância era abismal. Mas isso nunca foi um problema sofrido por brancos naquelas terras. Convidou-me para o acompanhar e eu lá fui.
Até Nova Lisboa era alcatrão até perder de vista, sertões fora. Depois disso era uma picada reles, com pontes de paus que atravessavam rios, e sertões e pavimentos de areia. O Morris lá resistiu e nós também. Eu por mim foi só chegar e deitar-me. Passei vinte e quatro horas a dormir.
Lá ao longe havia um monte escuro, de minérios de ferro, e era Kassinga. Os catrapilos enchiam a pá e despejavam-na em vagonetas de bitola estreitíssima. Iam dali directamente para o Lobito, onde os barcos japoneses estavam à espera delas.
Do regresso à base do Negage não há crónica. Nem faz falta, que é rotina.

quarta-feira, 5 de abril de 2017

Pássara

Passa a pássara no ar e eu bem sentado a olhar.
Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!

"Antes o voo da ave, que passa e não deixa rasto
Que a passagem do animal que fica lembrada no chão.
A ave passa e esquece, e assim deve ser.
O animal, onde já não está e por isso de nada serve,
Mostra que já esteve, o que não serve para nada.

A recordação é uma traição à Natureza.
Porque a Natureza de ontem não é Natureza,
O que foi não é nada, e lembrar é não ver.

Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!"
[Alberto Caeiro, POEMAS, XLIII]

Zwibelsuppe


O muro já havia desabado, eu já tinha dado a volta ao mundo, mas tinha voltado a Berlim cá por umas coisas. E morava, transitoriamente, a dois passos da Potzdamerplatz. Não havia ainda os arranha-céus de vidro da Sonny e da Mercedes, que nunca cheguei a ver. E o espaço em frente das janelas era um logradouro enorme, onde eu me deliciava a manobrar estrelas infantis, de longas fitas na cauda. E era a essa aerodinâmica de brinquedo que eu ficara reduzido.
Potsdamer Platz
Uma noite, eu e a namorada quisemos ir à procura duma Zwibelsuppe à la francesa. Havia no centro da cidade, Leipzigerstrasse fora, um estanco que a servia fora de horas e se chamava Zur letzten Instanz. De modo que, à meia-noite, lá fomos e a sopa de cebola estava uma delícia. Lambemos os beiços e voltámos para casa.
A coisa eram uns bons três quartos de hora de caminho a pé, que já não havia metro. E nós lá fomos. Mas eu não tinha cobertura na cabeça, e o frio era tamanho que me congelou a caixa dos pirolitos.
Cheguei a casa com os fusíveis congelados, e posso garantir que não é nada simpático.

terça-feira, 4 de abril de 2017

Curva da chouriça

No tempo da guerra nada haveria em Lisboa, salvo as senhas de racionamento. Mas havia aqui na aldeia. E os senhores esperavam que os servos cumprissem o seu papel, era o que lhes competia.
El-rei tinha vindo a Trancoso há muitos anos, a inaugurar a estação de comboio de Vila Franca na linha da Beira Alta. E era ele que levava para Lisboa, despachados ao domicílio, os cestões vindimos recheados de frutas, de fumeiros, e dos queijos das ovelhas dos numerosos rebanhos. Tudo fechado com serapilheira cosida à sovela na boca do cesto.
A estação ficava a 30 quilómetros. E um carro de bois carregado demorava no trajecto uma meia dúzia de horas.
Nessa noite de Fevereiro o carro saiu às 3 da madrugada, e já levava no cimo a lenha necessária para acender uma fogueira no caminho. O frio era tanto, nessa noite, que as pobres das vacas tinham, pendurados no focinho, fusos de gelo. E quando chegaram à curva da chouriça, já à vista da estação, o meu pai mais o criado quiseram fazer uma fogueira e aquecer-se. Mas as mãos estavam tão frias que se recusavam a acender os fósforos.
Valeu-lhes um cristão que vinha a subir a ladeira para os lados do Feital. Foi assim que se aqueceram e retomaram a marcha. Só do sabor das morcelas é que não ficou sinal.

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Copin faz anos

Opus 22 Rubinstein.

O Pavelca

Terá sido depois de 1956, o ano do sobressalto húngaro contra o stalinismo. O Pavelca apareceu na aldeia trazido pelo padre, que o recebeu enviado por alguém.
Era ruivo, de cabelos cor de linho, e uma pele muito branca que o nosso sol ibérico mordia. E depressa se integrou em jogos e brincadeiras.
Um dia metemo-nos num palhal e devorámos duas latas de corned-beef, dessas que vinham das fábricas de Chicago pela mão da Caritas. O padre distribuía sacos de farinha, leite em pó e queijo que era de plástico. E cigarros que vinham do Kentucky, enrolados numa cinta, os mata-ratos que os velhos fumavam pelos caminhos.
O sobrinho do padre, um belo judeu errante, trazia no bolso um rolo de mata-ratos. E nós fumámo-lo todo, na penumbra do palhal, não sei bem como chegámos ao fim.
Um dia o Pavelca foi-se embora sem aviso, demos pela falta dele. Levaram-no para Lisboa, terá partido para a América, uma terra que era a da promissão. Hoje ninguém o recorda, talvez o Trump seja um descendente dele, arraçado de siouxÉ questão a esmiuçar.

domingo, 2 de abril de 2017

Primavera indecisa

Tenho à espera a Feira Cabisbaixa atrás dum microfone, a Feira do O´Neill, a feira de nós todos, que um cego encomendou à biblioteca sonora. Mas encontro no jardim de São Lázaro a Primavera a hesitar.
As camélias já andam pelo chão e a Primavera a hesitar, incham os botões dos rododendros e a primavera a hesitar, os rebentos das tílias a explodir e a Primavera a hesitar, os velhos da sueca, são quinhentos, a improvisar a banca e a Primavera a hesitar, e a mimosa das coxas tentadoras a faltar-me no passeio, o riso quotidiano, bons dias mimosinha, e os dentitos de marfim, o drapejar da pestana, o peito da mimosa a faltar-me nos olhos, as formas arredondadas a morder-me no ventre e os pombos num badanal, a mulher desdentada a pedir-me um cigarro, a levar dois para a amiga encostada na esquina, a solicitar-me o favor dum lume, a mesura brejeira a agradecer-me, a aventurar se gosto de ir ao quarto e eu a dizer-lhe que não, um trunfo a cair na mesa a esquartejar a manilha e os pombos amotinados, e a mimosa que lá vem dobrando a esquina num riso de Gioconda a tentar-me de longe, os pés que já não comando na direcção dela, um instinto a farejá-la, a correr-lhe a garupa, o flanco acolchoado, o lago misterioso, quanto vale o teu riso mimosinha, a Primavera ainda a hesitar e eu a deslizar-lhe a nota na palma acetinada, um roçagar de leve, uma aflição de seda...
E vou-me então à Feira Cabisbaixa, à feira do O'Neill, à feira de nós todos, que um cego precisa dela, e a Primavera enfim se decidiu.
[A editar]

sábado, 1 de abril de 2017

Um conto

A maior parte dos escreventes de agora nem sabe o que isso é, muito menos produzi-lo. Hoje em dia tudo são performances modernas que ninguém sabe decifrar. Mas esquecem o pai de todas elas, o Almada Negreiros, poeta de Orpheu futurista e tudo! Adiante!

A ninfa
Eram os olhos a maior perdição dela. Tão grandes que neles cabia o mundo, tão escuros e fundos que lembravam o mar. Depois vinha a estampa límpida do rosto, debaixo da gaforina asa de corvo: o lábio húmido, a carnação macia, a flor da face cheia de mistério, a prometer abrir-se num sorriso que não chegava a abrir. O resto era o colo generoso, o ventre inquieto, as colunas das ancas a prometer abismos.
Ninguém sabe explicar como apareceu ali, criada na aldeia, aquela ninfa antiga. Olhava-se para ela e vinham à lembrança as deusas primitivas da fertilidade. O mesmo nome, Pristila, era um sinal pagão.
Dava escola para os lados de Aveiro e vinha a casa sempre que podia. Chegava na carreira, ao fim da tarde, porque o pai, atento à vida, a reclamava. A bem dizer, era a aldeia inteira a reclamá-la.
Na vila sabia toda a gente que o Tunante não era boa rês. Era um vilão bastardo, que fazia deste mundo uma coutada de caça. E todos lhe guardavam respeitinho, mais por instinto primário de defesa do que por atributos que não tinha. A ninfa confundiu nele a brutidade grosseira com predicados de macho dominante. E quando vinha à vila, a passear, nem lhe escusava as momices atrevidas, nem os avanços de bruto galaroz. E acabou, já mansa e confundida, a enlear-se no assédio do bargante.
No dia em que as férias começaram chegou a ninfa à vila, desceu da carreira ao fim da tarde. Uma outra que vinha do comboio havia de pô-la em casa. Mas o Tunante estava à espera dela. Cercou-a de rapapés e cortesias, havia de lhe mostrar a loja nova, logo à entrada das muralhas.
A ninfa lá se deixou conduzir. E quando veio a hora da carreira, à beirinha da noite, prometeu-lhe o Tunante que um amigo a levaria a casa, de carrinho, à moda das princesas. E logo ela se rendeu, enleada em semelhante gentileza. Tinha mesa posta e banquete preparado, bom presunto, melhor queijo, de vinho bastava-lhe um dedal, não estava acostumada.
A princípio o Tunante foi cordato, coroou-a de rapapés, quis levá-la com bons modos. Penteou-lhe a gaforina, passeou-lhe as mãos no flanco, encheu-lhe o copo de vinho. E abriu-lhe um botão do peito só para ter uma visão.
A ninfa aos poucos cedeu, o coração num galope. Dum lado o corpo inteiro a amotinar-se, o sangue a romper as veias, o ventre incendiado a extravasar. Doutro lado um grande medo, a cara dele a perder as feições, e um gesto tão poderoso que a assustava.
Quando quis despir-lhe a blusa a ninfa ainda resistiu. Mordeu o lábio para evitar um grito, cruzou os braços no peito sublevado, refugiou-se no medo. E o Tunante deteve-se um momento, pareceu abandonar o campo de batalha. Foi ajeitar, ao canto, as mantas que lá tinha. Depois apagou a luz, ergueu numa braçada a ninfa amedrontada e foi estendê-la no chão.
Lá fora passaram socas a tropear na calçada. Porém a ninfa hesitou, reteve outra vez um grito. E já dois braços poderosos lhe sujeitavam o corpo, e as pernas brutas lhe apartavam as colunas, e rudes mãos lhe devassavam o peito. As socas na calçada voltaram a tropear mas a ninfa retraiu-se. Conteve a respiração, não fosse ouvir-se lá fora o ranger do bragal que estilhaçava. Por três vezes entrou nela um vendaval, três vezes a desfolhou. Depois caiu uma escuridão desamparada, e um lago que arrefecia.
Por fim bateram à porta, era o outro que chegava. Aconchegou a ninfa no banco de trás do seu Volvo marreco e arrancou. Antes de a deixar em casa foi parar na carreteira dos moinhos do Alcaide, ninguém ali passava àquela hora.
O Tunante recolheu as mantas, fechou a porta da loja. Uma ninfa desfolhada dava casamento certo, era raspar-se um homem para o Brasil ou sujeitar-se aos códigos. Porém, em sendo o festim a meias, era ela assumida marafona e os códigos sossegavam. Cumprisse o amigo a sua parte e ficava o problema resolvido.
Quando o Outono chegou, depois das primeiras chuvas, o Tunante subiu para a camioneta e foi recolher à aldeia uns contratos de centeio. Bem o avisaram as sibilas, que desfizesse o negócio, que por lá tinha a morte prometida. Mas ele guardou a sovaqueira no casaco e lá subiu a encosta, a governar a vida. Um homem não saiu para outra coisa das mãos do criador.
O pai da ninfa já estava à espera dele, sentado no balcão. E quando o viu saltar da camioneta, de machado nas unhas foi-se a ele. O outro ficou surpreendido, não podia acreditar. Estendeu a mão à sovaqueira e pôs-se a ladear, queria ver se era verdade. Mas o homem trazia no carão a fúria dum deus irado, como quem chega duma tragédia antiga, o melhor era levar a coisa a sério. E desatou a correr.
As mulheres espreitavam à janela, havia gente que parava pelas hortas, a olhar, silenciosa. A própria tarde parou, a ver um homem cavalgar estrada abaixo, atrás doutro que fugia. Quando o sentia mais perto, virava o braço para trás e disparava. Disparou à passagem do ribeiro, e à horta da Teresa Còta, e à subida do negrilho, e à curva da fraga grande.
Agora chegámos nós à fundeira da encosta, e já cruzámos a estrada, e temos à nossa frente o açude da ribeira. Não nos sobra mais que um tiro, e já nos queima o pescoço o bafo de um deus irado. O Tunante apontou-lhe ao coração a disparou. E o machado, que lá vinha como um raio, enterrou-se-lhe num ombro.
Mas vem dalém um pastor, a correr em altos berros, vem salvar esta desgraça. O primeiro já está morto, nada podemos fazer. Para que nos serve o segundo, um vagabundo. E num golpe de machado abriu-lhe a cabeça ao meio.
[A publicar]