sábado, 31 de maio de 2014

Enrico Caruso

Una furtiva lagrima - Donizetti (registo de 1904?)

Grieg

Anna Netrebko.

Pontualidades

Quando havia máquinas a vapor, os despertadores da Inglaterra e da Irlanda não eram muito fiáveis. Seguiam o ar do tempo.
Usavam o varapau, o bastão, a cana da Índia, e zarabatanas que disparavam ervilhas, para acordar os preguiçosos. Um tal serviço era remunerado.
Ora os suíços (que no tempo do Vasco da Gama não passavam de montanheses a viver nos Alpes, cobertos com peles de urso), resolveram dedicar-se a coisas úteis e acabaram por inventar os chocolates, as vacas que davam leite, as máquinas de precisão e os relógios. 
É verdade que arruinaram o mercado dos despertadores a vapor. Mas os ingleses ganharam uma pontualidade que ainda hoje faz inveja aos preguiçosos.

Alma até Almeida, caralho!

Foi este sarro tóxico e aparelhista (que não falta no PS) que escolheu o Seguro como SG do partido em 2011. Para gáudio e serviço da direita dos escroques. Para mal deste PS e do país.
Uns e outros vivem com o Sócrates atravessado nos miolos. Mas verdade seja dita que, ao marquês de Pombal, os fidalgotes decadentes e empoados fizeram muito pior, mal chegou a Viradeira.

sexta-feira, 30 de maio de 2014

A finança

Que surpresa, no centro do furacão!

Ironia

Da boa.

Uma voz

Por exemplo.

Ó ortodoxos marados!

Nem só as leituras da bíblia são científicas e úteis!

Penas

Décadas de acumulação juntaram nas estantes um ror de livralhada: ficção narrativa e poesia dominantemente portuguesas, crítica, ensaio, história, sociologia, biografia quando há, aqui e ali intromissões alienígenas mais badaladas. Se algum há que sublinhar é o surpreendente trabalho dum improvável génio indígena - Haja Luz! - de Jorge Calado, obra que sintetiza e amalgama ciências, artes e culturas e nos deixa surpresa, admiração e muito orgulho.
Mudanças que estão no horizonte, e um certo horror a espólios inúteis, (porque pessoalizados, avaros, e encarcerados numa lastimosa solidão), levam-me a desfazer-me de noventa por cento do que por ali anda nas estantes. Se tem alguma utilidade, pois vá ser útil onde fizer falta!
Já comecei o empacotamento. E nunca tinha sentido, nem imaginava a crescer-me no peito, esta síndrome estranha: o que sente um pardal que arranca as penas.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

O país

Dos marinheiros (Episódio 33, min. 02:17).

Situação

A vôo de pássaro.

sábado, 24 de maio de 2014

Nascer do sol na Calábria

[clicar!]
(Foto de Ana Cardinal)
Um dia destes conto-te onde é!

Pablo Sarasate

Zigeunerweisen. Perlman - Levine

J - Ph. Rameau

Forêts paisibles, Les Indes Galantes.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Em verdade em verdade vos digo 3

O voto é a arma do povo, concedamos. Mas tem um duro espinho, como a rosa. É preciso ajustar exactamente o retículo sobre o alvo, para não sair o tiro pela culatra. É frequente e é triste, desperdiçar assim a munição.
Dicas que podem ser úteis:
Não tendo um alvo a visar pela positiva (é frequente, como hoje!), é avisado escolher alvo pela negativa. O poeta dizia "sei que não vou por aí!". Em todo o caso, escolher! 
E também votar no mal menor é um aceitável recurso, (bastantes vezes o único), ao contrário do que afirmam os radicais ortodoxos, sectários e inúteis. Esses orientam-se por dogmas de palha, salvaguardam nichos de mercado eleitoral, e alimentam-se das angústias do povo. Sabem muito bem que "quanto pior, melhor". 
A falácia de que o PS é igual ao PPD, se não for ainda pior, é uma análise científica que já vem de há cem anos e ainda dura. Nesse momento da tragédia alemã, os dirigentes comunistas alemães, opondo-se ao governo social-democrata da República de Weimar, proclamavam ao povo, a mando de Stalin, "que venha Hitler, nós seguiremos Hitler!". Viu-se no que é que isso deu. 
Em 2009, o Mário Nogueira descia triunfante a Avenida, com 300 mil professores pela trela, contra a avaliação da ministra sinistra. Com isso foi à vida a maioria absoluta no 2º governo de Sócrates. E os professores também foram. E nós com eles.
Em 2011, dizia Louçã que "recusar o PEC 4 era já o início da saída da crise". O guru dizia isto sem se rir.
Quanto aos ricos, a história informa que os ricos têm sempre razão. Já que, quando a não têm, vem a fraqueza dos pobres oferecer-lha. Mas isto só é verdade quando os pobres são inconscientes, ignorantes, e alienados, e toscos, (podem, eles podem ser outra coisa!) e acabam a merecer tudo o que têm. E não têm.

Estes burguesotes imbecis

Auto-caluniam-se de criativos. O que eles criam é esta merda. E sabem muito bem porquê.

É isso!

O cabrão do Sócrates! Que diz mais!

terça-feira, 20 de maio de 2014

Estes cabrões

Fazem o mal e juntam-lhe a caramunha. As seitas dos idiotas úteis aplaudem.

Zero, ou menos

O rapaz estava a nascer em Los Angeles, naquela noite medonha em que eu atravessei o Atlântico há 50 anos, dentro da barriga dum velho Skymaster que sobrevivera à ponte aérea de Berlim. A ideia era ir à ilha Terceira, ao bar dos americanos que era o que mais estava à mão, provar uma coca-cola, despir-me de tiques primitivos e atavismos milenares, e tomar o primeiro banho de pós-modernidade. No fundo, civilizar-me.
O Ellis saiu do aconchego das coxas da mãe no exacto momento em que um cowboy do Texas estendeu o braço para dentro do balcão, sacou de lá uma garrafa de rum e a despejou em volta. Depois faiscou o Zippo e incendiou o bar. E tudo acabou em bem, porque o barista indígena descarregou dois extintores nas labaredas e transformou aquilo tudo numa performance do Santa Claus.
Vinte anos mais tarde o Ellis escreveu um livro (a que chamou romance), e não é mais que uma sequência de fotos da sociedade coeva da América. Um jovem narrador vem passar um mês de férias à costa Leste, e no fim talvez volte para a universidade, mas ainda não é certo. Os figurantes, todos muito semelhantes, não passarão duma dúzia. Por isso não variam muito, na sucessão de instantâneos que serão uma centena mas podiam ser dez mil.
O psiquiatra que me trata durante as quatro semanas de férias é novo, conduz um 450 SL e tem uma casa em Malibu. Costumo sentar-me no seu consultório, em Westwood, com as persianas fechadas e com os óculos de sol, fumando cigarros, alguns de cravo-da-Índia, só para irritá-lo, e algumas vezes choro. À vezes grito-lhe e ele grita comigo. Conto-lhe que tenho fantasias sexuais bizarras e o interesse dele aumenta a olhos vistos. Começo a rir-me sem razão e depois sinto-me subitamente enjoado. Às vezes minto-lhe. Ele conta-me coisas acerca da amante e das reparações que estão a ser feitas na outra casa em Tanhoe, eu fecho os olhos e acendo outro cigarro, cerrando os dentes. Às vezes, simplesmente, levanto-me e saio. 
O romancinho veio à luz em Nova Iorque, em 1985, e a coisa foi de tal ordem que o Ellis passou a ocupar uma posição fulcral na novíssima geração da literatura norte-americana. A Teorema editou-o em Lisboa em 1987, numa tradução irrepreensível. 
Realmente está lá tudo, ainda hoje, a boiar na espuma da rebentação. Dez por cento dos americanos, em contagem generosa, não fazem outra coisa que não seja pensar, investigar, elaborar e produzir ideias, mesmo que não lembrem ao diabo. Os restantes apertam parafusos no turno de trabalho, mas não sabem fazer contas, nem entenderão a bula dum medicamento, nem sabem onde fica o resto do mundo, nem precisam de o saber. As figuras que povoam o portfolio do Ellis snifam linhas de coca, têm um dealer por perto, consomem quanto aparece, mormente fatos de banho e óculos de sol coloridos, e restaurantes e bares que estão na moda, e Ferraris e Porsches e Mercedes de alta gama. E esvaziam garrafas no balcão, enquanto o mundo inteiro vai descarregando extintores e amarguras em cima das labaredas.
(...) Quando chegamos ao apartamento de Rip, em Wilshire, ele leva-nos logo ao quarto de dormir onde está uma miúda nua, nova e realmente bonita, deitada no colchão. As pernas estão abertas e amarradas aos pés da cama e os braços estão atados por cima da cabeça. A vagina parece seca e tem uma espécie de urticária, e vê-se que lhe raparam os pêlos. Geme constantemente, murmurando algumas palavras (...). Spin espeta-lhe a seringa no braço. Eu limito-me a olhar. Trent exclama «Huau!». Rip diz qualquer coisa que não se percebe.
- Ela tem doze anos!
- E é apertada, meu - ri Spin. (...)
Ross está a jogar Centipede na sala, mas o som do jogo de vídeo chega até ao quarto onde estamos. Spin mete uma cassete na aparelhagem e depois despe a camisa e os jeans. Está de pau feito e mete-o na boca da miúda. Vira-se para nós e diz: - Podem ficar a ver, se quiserem. (...)
- Ei, não olhes para mim como se eu fosse uma espécie de escumalha ou coisa parecida, porque não sou.
- É que... - a voz começa a falhar-me.
- É o quê? - quer saber Rip.
- É que... eu acho que não está certo.
- O que é que está certo? Se queres uma coisa, tens direito a tê-la; se te apetece fazer qualquer coisa, tens direito a fazê-la.
Encosto-me à parede. Oiço Spin a gemer no quarto de dormir, e em seguida o som de uma palmada, talvez na cara. (...)

Escrito na casa de banho do Pages, por baixo de "Julian faz muito bem broche e morreu", está: «Quero é que o papá e a mamã se fodam. Vão fazer minete! Vão fazer broche! Quero é que vocês morram, porque foi isso que vocês me fizeram - deixaram-me morrer. Não há saída para vocês. A vossa filha é iraniana e o vosso filho paneleiro. Vocês podem apodrecer no inferno, atolados de merda. Vocês podem morrer queimados, seus atrasados de merda. Morram, seus cabrões! Morram!

Já nessa altura o Ellis viu muito bem esse relativismo pós-moderno. E agora, que passaram 30 anos, começa isto tudo a ficar cheio de imitações (mentais, ideológicas, estéticas e literárias), que nasceram num sertão e o tomam por modelo. Mas são tudo produtos contrafeitos e serôdios.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

"Nem o PCP nem o Bloco cumprem o seu papel"

Cumprissem-no eles, e outro galo cantaria no poleiro!

O meu avô andou na guerra

O título é belíssimo, embora enganador. Porque quem conta é o avô e não o neto. Este é apenas o destinatário dum relato sobre o que foi a guerra colonial, onde o seu avô andou.
O mercado está mais ou menos cheio de histórias da guerra, de valor histórico e literário variado e discutível. O que este nos traz de inovador e de útil é que não fala da guerra. Não contém heroicidades nem celebra epopeias de papel. Mas oferece uma perspectiva incomum, que é a da entrada de seiscentos futricas nas fileiras do exército, e as peripécias da formação dum batalhão que irá servir a pátria num sertão. É isto que este neto nunca teria a sorte de conhecer, senão através do relato deste avô.
Depois é chegar a um cu-de-judas no centro de Cabinda, (onde nada existe além de ruínas de antigas explorações de madeiras e duns resquícios de vida comercial desaparecida desde as chacinas de 61), fazer daquilo um quartel, derreter por lá setecentos e tal dias da curta vida, e regressar a Portugal no mesmo paquete Vera Cruz, aliviado dumas dezenas de baixas que faltaram ao embarque.
"A partir de agora é só mais um esforço para continuar a andar por aí, a ler histórias de fadas, princesas e lobos-maus aos netos. E quando eles perceberem que não existem fadas nem princesas - lobos-maus nunca se sabe - contar-lhes que o avô andou na guerra".

domingo, 18 de maio de 2014

"Estados críticos"

O que será ele isso!

Lisboa

Visitar a capital na floração dos jacarandás é um passatempo duplamente festivo. Os olhos rejubilam nos peitos que as mulheres abrem ao sol do equinócio. E a cidade, para quem o reino inteiro se desperdiça há séculos, enfeita-se destas floras exóticas que foi buscar aos trópicos, e lhe permitem fingir que nem tudo foram pesadas penas perdidas. O povoléu diz que são assim as vozes do Velho do Restelo. E pronto!

sábado, 17 de maio de 2014

Gargantas

Mil vozes gorjeiam à primavera.
Mas cai a noite e só
o rouxinol se ouve.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

O Albertino

Alcança-se Folgosinho depois de muitas curvas, serra acima, e logo se vai dar ao Adro de Viriato, o vingador da traição de Alba. Com razão ou sem ela, os celtiberos da terra consideram-no seu filho, guardam-lhe uma estátua num jardim e lá saberão que traições aqui houve, e que vinganças. O visitante não sabe, nem tem agora tempo de ir averiguar.
O povoado está encostado à serra, montado num espigão a meia encosta, cercado de castanheiros, e moitas de carvalhos, e tapetes de maias amarelas. É um lugar retirado, por isso o procuraram os judeus em tempos de escuridão. De inverno enovela-se em si mesmo, a proteger-se das neves. Mas nesta altura do ano assume o privilégio da paisagem, e abre-se aos longes de Linhares, de Celorico, de Fornos, de Trancoso a diluir-se já no horizonte, de Viseu indistinto nas tremulinas do Dão, do Caramulo a perder-se lá para os lados do mar.  
Na capela do Senhor São Faustino está um São Sebastião estropiado, que perdeu pedaços no martírio. E a deslado, num afloramento de quartzo, fizeram esta alcáçova que ainda chamam castelo, para a torre do relógio. 
Ao meio dia o sino põe-se a dar horas e assusta o visitante, que aproveita o sobressalto e já se põe a mexer, porque estão a chegar os autocarros. Trazem revoadas de comensais que vêm à procura dos pitéus do Albertino.
Quando voltou das guerras da Guiné, há meio século, herdou da mãe uma taberna caída na ruína, por causa dos calotes dos clientes que bebiam sem pagar, que não havia dinheiros. Agora o Albertino não tem mãos a medir, e as excursões de turistas não o largam.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Em verdade em verdade vos digo 2

O descaramento e a falta de vergonha destes filhos da puta não conhece limites.

A cinturinha de vespa e o B52

Um belo dia chegou ao planalto uma notícia fausta, a Olga Prats dava no cineteatro da capital da província um recital de piano. Era evento muito raro, ainda para mais na folga dum domingo e a horas muito decentes. Logo me veio à cabeça que o Auster era o meio adequado aos cinquenta quilómetros da ida, e aos outros tantos da volta. Mais rápido e mais seguro que o jipão de volante à esquerda, oferecido à esquadra pelos sul-africanos ricos. Isso foi o que eu pensei, e o capitão anuiu.
Mal engolido o almoço, embarquei na passarola e ala moleiro! E aterrei sem sobressaltos, a carregar na roda esquerda, como era hábito meu.
Era ainda muito cedo para a hora do recital. E decidi visitar uma donzela que há uns tempos conhecera em festa de aniversário. Muito precisada disso andava ela, a desditosa, constou que vinha das mãos dum alferes do arre-macho, embarcado para a metrópole quando lhe chegou o tempo. Ora toda a gente sabe que a mordedura dum cão melhor se cura com o pêlo de cão igual.
Mão aqui, braço acolá, tinha ela a cinturinha mais marcada que alguma vez torneei. Nunca mais vi outra igual e a tarde passou num ai. Até a Olga Prats guardou um silêncio cúmplice, e quando olhei para a janela a noite estava a chegar.
Corri num táxi para o aeroporto, pus em marcha a tactear, dispensei as leis do manual. Entrei na pista, abri-lhe as goelas todas, e seja o que Deus quiser, que o crepúsculo é fugaz.
Por duas vezes ainda faisquei o isqueiro, para ver a pressão do óleo e a velocidade de subida. E o painel dos instrumentos, já de si rudimentar, reduziu-se ao cantar do motor e à conversa muda das vibrações nos comandos. Um manto escuro confundia a noite e a mancha do horizonte, sobre os montes em volta da cidade. Nivelei mal me pareceu, e uns faróis a farejar numa estrada balizavam a rota aproximada.
Em breve apareceu no rádio a voz distante do controlador, a lançar à noite chamadas insistentes. A primeira vez nem queria acreditar, pus-me a imaginar a cena, a esquadra inteira de alerta à minha espera a tais horas. E eu senti-me tão exposto e miserável que mesmo a cinturinha de vespa me desertou da lembrança.
Lá tranquilizei a torre, dei-lhe um tempo estimado casual, abandonei-me à cegueira da noite. Até que apareceu no horizonte a dupla faixa de luzes de iluminação. Afinal o céu não me caíra em cima e eu sosseguei finalmente, dei uma folga ao motor. Tinha sido accionada metade da iluminação da pista principal, que funcionava a tochas de petróleo. 
Quando as rodas afloraram o asfalto, a mão direita deixou o motor abandonado a si próprio. Era preciso ocupar-se do manche, usualmente entregue à mão esquerda. Mas essa era necessária para recolher os flaps, manobrando uma alavanca que baixava do tecto, fazia-me lembrar o tubo da bazuca e bloqueava a abertura da porta. Com os flaps recolhidos, tudo voltava às posições normais.
Embora às apalpadelas, a boa da passarola não se desviou um milímetro do eixo da pista. E ainda bem. Um cavalo de pau naquelas circunstâncias não seria bom de ver. O capitão aguardava-me em silêncio atrás da secretária, com os regulamentos na mão. E eu nem comentei a Olga Prats, nem o Bruno Pizzamiglio, nem meti ao barulho a cinturinha da vespa. Pendurei ao peito a corda do penitente e estendi o pescoço ao veredicto. 
O capitão comandava bem melhor do que eu pensava. Do B 52 não havia que dizer. Mas o Auster era mais fiel que nós os três.

terça-feira, 6 de maio de 2014

40 anos

Do PPD?! 
Foda-se! 
E Portugal ainda existe?!

O último maçaricão-esquimó 36

(Cont.)
           Depois de cada uma destas manifestações amorosas, a tensão diminuía por algumas horas. Tratava-se de um expediente, mas eles ficavam satisfeitos. A união dos corpos só viria depois.
            E avançavam continuamente para Norte, vencendo umas centenas de quilómetros por noite. O desenvolvimento sexual do macho decorria mais acelerado, ele estava já pronto para o acasalamento. O seu desejo tornara-se indomável, e passava quase todo o dia cortejando ardentemente a fêmea. Porém, de cada vez que lhe trazia alimento, a excitação dela diminuía, e tudo ficava por ali.

            Maio ia a meio. A ondulante planície canadiana, lavrada de fresco, fumegava ao sol. Os maçaricões seguiam de perto a máquina enorme, que ribombava como a rebentação do mar. As minhocas eram gordas, e, antes de eles as engolirem, ficavam alguns segundos ao sol, revolvendo-se em contracções convulsas. Na tundra começava a derreter a neve. Nos ovários da fêmea, o primeiro de quatro ovos estava pronto a ser fecundado.
            O macho elevou-se no ar, o seu canto forte soou impetuoso. Pairava lá no alto, sobre o terreno escuro da planície, onde uma faixa acabava de ser lavrada. O bramido da máquina parou de súbito, e o maçaricão mal se deu conta disso. Tinha todos os sentidos concentrados na fêmea, que lá em baixo tremia de excitação, acocorada no solo escuro. O homem estava imóvel em cima do tractor, a cabeça deitada para trás. Olhava para cima, e com a mão protegia os olhos do intenso brilho do sol. O maçaricão deixou-se cair, a fêmea soltou um grito estridente. Ele apanhou do chão uma minhoca e avançou para ela. De pescoço estendido, batia fortemente as asas, ao mesmo tempo que viu o homem saltar do tractor e correr para a estaca duma sebe, onde tinha pendurado o casaco. Em circunstâncias normais, mesmo os próprios maçaricões teriam então fugido assustados. Porém, tendo-se deixado alimentar, a fêmea continuava ainda a bater as asas, numa agitação apaixonada. Ela rendia-se à cópula, e, no êxtase do acasalamento, ambos ficaram cegos perante o que se passava em redor.
            Um estampido ecoou no céu claro, e o seu trovejar parecia vir de todos os lados. A terra espirrou em volta das aves, crepitante como pedras de granizo.
            O macho fugiu, mantendo-se rente ao solo. Assim podia fugir mais depressa, pois em subida seria menor a velocidade. Até que se deu conta de que a fêmea não estava junto dele. Voltou atrás, com gritos roucos e penetrantes de aflição. O corpo castanho dela estava ainda inclinado no solo. O macho pairava sobre ela e gritava como louco.
            Então um segundo trovão ribombou sobre eles. Uma pancada violenta e invisível atingiu-o e arrancou-lhe duas rémiges de uma das asas. Rodopiou no ar e abateu-se ao lado da fêmea, completamente surdo. Estava espantado, confuso, perante um inimigo que atacava sem que ele pudesse vê-lo. Novamente levantou voo. Depois venceu o medo e voltou para junto da fêmea. Ela estava de pé e gritava, rouca de medo. Batia as asas em vão, até que, lentamente, conseguiu levantar voo. Penosamente ganhou velocidade e altitude. O macho aproximou-se, voando rente a ela.
            Ele gritava alto, mas ela emudecera. Voaram durante alguns minutos, até deixarem para trás o campo com o terrível trovão no céu quente. Mas a fêmea era lenta, cada vez se atrasava mais. O macho veio até ela, incitou-a a voar, e colocou-se de novo à frente.
            O voo dela era cada vez mais lento e desajeitado. Deixou de controlar uma asa e isso desequilibrou-a. A plumagem macia do peito tornou-se-lhe escura e húmida. Ela chamou de novo por ele, e não eram gritos de medo, mas gorjeios doces de ternura.
            De súbito despenhou-se no solo. As asas batiam ainda, parecia o vibrar excitado do acasalamento, e o seu corpo rodopiou, até se imobilizar no chão húmido.
            O macho gritou, ela devia segui-lo. Ele ainda tinha medo do chão firme. Mas a fêmea não se mexia e ele manteve-se a circular. Ela devia ter ouvido a sua censura, porém não respondeu.
            Longo tempo depois venceu o medo e poisou a seu lado. Protector, limpou-lhe as penas com o bico. A noite chegou e a tundra atraía-o, chamava-o, pois era tempo de fazer o ninho. Levantou voo várias vezes, chamou-a, voltou atrás, e ela não o seguiu. Finalmente adormeceu encostado a ela.
            De manhã elevou-se no céu acinzentado. Dilatou os pulmões e fez ecoar o seu canto nupcial. Cortejou-a. Quis dar-lhe comida, ela não a aceitou. E a tundra chamava imperiosamente. Ele levantou de novo, chamou-a mais uma vez. Depois ganhou altitude e afastou-se. O sol nascente brilhava rosado na sua plumagem e ele dirigiu-se para o Norte. Silencioso e sozinho.

            Na tundra, os charcos de água derretida, os montes de cascalho e os pequenos prados na curva do rio não tinham mudado. O longo voo tinha esgotado o maçaricão. Mas, quando uma tarambola-dourada se aproximou demasiado da sua reserva, avançou para ela e atacou. O verão polar era curto. Ele tinha que manter a reserva pronta para a fêmea. O instinto dizia-lhe que ela em breve iria chegar.

O CORREDOR DA MORTE
            L. L. Snyder
            As aves do Árctico Canadiano
            Imprensa da Universidade de Toronto
            em colaboração com o Museu Real
            de Zoologia e Paleontologia do Ontário
            1955

            Maçaricão-esquimó, Numenius borealis.

            Presumivelmente extinto... Visto pela última vez perto de Galveston (Texas), a 29 de Abril de 1945. Antigamente muito disseminado...

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Saídas limpas

Para entradas muuuiiito sujas. Não é assim ó Jerónimo, ó Louçã, ó palhacitos de turno?! 

Vai ali espreitar para as raizinhas

Sem nebulosos e inúteis cortinados académicos.

Venha ele quando vier

Esse dia inadiável já vem tarde.

Equívocos e enganos

O discurso histórico outra coisa não é senão a narrativa das elites, àcerca das matérias de que é feita a vida das colectividades humanas. E sabemos muito bem que, no discurso sobre a história, o mito ocupa o lugar da realidade, sempre que isso serve o interesse das elites que o produzem. 
Em 1415, com a malfadada ida a Ceuta, teve lugar em Portugal a primeira "rapaziada de corte". Há-de parecer uma expressão sacrílega, a ouvidos ditos "patriotas". Porém, bem esmiuçada a coisa, a ida a Ceuta foi o primeiro passo dum enorme engano que viria a transformar os portugueses em gado de exportação. Ao longo de séculos de peripécias que apenas serviram uma estreita fidalguia indígena e os interesses de Roma.
Mas as elites depressa substituíram a realidade pelo mito. E Ceuta ficou a ser, no discurso sobre a história, o início da nossa "gesta gloriosa". Ainda hoje assim é, na boca dos geradores de equívocos amargos. Conforme se pode ver, neste crepúsculo a que outra "rapaziada" nos levou.

Enquanto não silenciam o homem...

...numa floresta de enganos e ilusões.

domingo, 4 de maio de 2014

Cá me queria parecer!

Cheguei há dias do campo, os olhos cheios dos verdes da Primavera, das fragrâncias e dos sons, e da vida que voltou, enfim, à Natureza.
Surpreendeu-me no campo o grande coral dos cucos, nunca ouvi tantos na vida: nos matagais de carvalhos, nos soitos adormecidos, nos freixos da beira de água, nas fragas do Montrangão.
E agora, na televisão, vejo um governo inteirinho a fazer coro às lábias dum farsante. Vem-me à lembrança o grande coral dos cucos, os tais que deixam em casa alheia os filhos. E tudo fica outra vez compreensível.

O último maçaricão-esquimó 35

(Cont.)
11
            Nas pradarias do Nebraska e do Dakota chegara o tempo das sementeiras. Monstros de aço, barulhentos como a rebentação do mar, andavam por aqui e por ali, sobre a lavrada, e faziam longos sulcos regulares. A maior parte das narcejas evitava as ruidosas máquinas e os homens que as conduziam. Pilritos-das-praias e pernas-amarelas interrompiam a busca de alimento e ficavam alerta, quando o lavrador estava ainda a cem metros de distância. À aproximação da máquina levantavam voo, gritavam estridentemente e fugiam. E só voltavam a poisar quando ela estivesse lá longe, a quilómetro e meio de distância. Mas os maçaricões-esquimós não manifestavam qualquer receio. Ao longo da história do seu desenvolvimento, a espécie aprendera que não tinha necessidade de reacções complexas de medo. Possuía asas fortes e voo rápido. Os maçaricões podiam simplesmente ignorar um perigo ameaçador, pois escapavam com facilidade a uma raposa ou a uma ave de rapina, no último momento. Por esse motivo desaparecera a reacção de medo, como acontece a cada capacidade e a cada instinto que ficam sem utilização. Os pilritos confiavam numa apertada vigilância, e os maçaricões na força das suas asas.
            Por isso seguiam de perto as ribombantes máquinas. Ao lavrar, elas punham a descoberto o rico alimento que constituíam as minhocas brancas e as lagartas.
            Ao longo deste tempo, as gónadas tinham aumentado a secreção, de acordo com o ritmo fisiológico anual. O seu desenvolvimento estava exactamente adaptado à velocidade de deslocamento da Primavera para Norte. Tanto os seus corpos como a tundra deviam estar simultaneamente preparados para a construção do ninho e a postura dos ovos. A Primavera era cada vez mais perceptível, aproximava-se do seu ponto alto, e com isso também as emoções das aves eram cada vez mais impetuosas. Com as altas temperaturas do corpo e os rápidos processos metabólicos, elas vivem, aliás, mais depressa e mais intensamente do que todas as outras criaturas. E, do mesmo modo, quando a época de acasalamento se aproxima, fazem a corte e amam com ardor e paixão mais agitados.
            Agora o macho extravasava muitas vezes por dia os seus sentimentos, mostrava o seu amor à fêmea. A sua corte era agora muito mais impetuosa do que antes. Atirava-se de súbito para o ar, agitava as asas e cantava a sua clara e vibrante canção nupcial. Esta era mais melodiosa e doce do que em qualquer outra época do ano. Alguns segundos após, batia violentamente as asas e subia quase na vertical, arrastando as longas pernas, até atingir umas centenas de metros sobre a pradaria. Aí batia as asas e cantava de novo, para que a fêmea ouvisse, enquanto ela gorjeava e saltitava, excitada. Depois deixava-se cair de encontro a ela, recuperava baixo, subia de novo, e poisava finalmente a alguns metros de distância.
            Ele arfava de excitação, cantava alto, respirava profundamente fazendo inchar o pescoço e o peito, tufava a plumagem e estendia as asas, gracioso, sobre o dorso, até a fêmea o convidar a aproximar-se. Ela saltitava, de asas frementes, e fazia ecoar o penetrante apelo com que pedem alimento as crias que mal começam a voar. Ele avançava para ela, cerimonioso, de novo batendo fortemente as asas, quase parecia que andava pelo ar. Peito inchado contra peito inchado, o macho estendia o pescoço e alisava-lhe ternamente as penas castanhas, com o longo bico.
            Isso durava alguns segundos, depois o macho afastava-se. Procurava uma minhoca, regressava junto da fêmea e colocava-lha suavemente no bico. Ela engolia-a. E as penas do pescoço ficavam de novo lisas, as asas paravam de tremer, tudo tinha passado. Até agora, este gesto de ser alimentado constituía o ponto alto do seu amor. Os corpos não estavam ainda prontos para o acasalamento.
(Cont.)

Vieste do fim do mundo

Gisela João.

José Tolentino Mendonça

Quando se extinguiu
o vermelho da papoila
o jardim ficou vazio

[A Papoila e o Monge, Assírio & Alvim, 2013]

sábado, 3 de maio de 2014

O último maçaricão-esquimó 34

(Cont.)
          Mas só ali ficaram durante o dia. Ao cair da noite partiram sozinhos, e duas horas depois poisaram na pradaria enluarada, cento e cinquenta quilómetros para o interior.
            A sua intranquilidade diminuiu, agora contentavam-se com a espera. O instinto dizia-lhes que tinham ultrapassado todos os obstáculos. Os últimos cinco mil quilómetros até ao Árctico passavam pelas grandes planícies dos Estados Unidos e do Canadá, onde nem montes nem cordilheiras lhes dificultavam a rota, e onde havia alimento até ao exagero. Em caso de necessidade, poderiam fazer esse trajecto numa só semana, e por algum tempo sossegou-lhes o impulso migratório. Na melhor das hipóteses, a tundra só estaria pronta para a nidificação dentro de dois meses. Mas isso não o sabiam os maçaricões. Sabiam apenas que, neste começo da Primavera, havia muitos insectos nas pradarias do Texas. E sentiam o desejo de ficar.
            Esperaram três semanas, durante as quais não avançaram mais de cento e cinquenta quilómetros para o interior. Quase todas as noites ouviam passar lá por cima os bandos das aves mais pequenas. Estas não nidificam no Árctico, mas em reservas muito mais a Sul, onde era já Primavera. Quando chegasse o momento, os maçaricões fariam numa noite o que a estas aves demorava três. 
            No princípio de Abril de novo se apoderou deles a velha inquietação. Faziam breves deslocações nocturnas, e lentamente iam acompanhando a Primavera. Voavam de vez em quando várias horas, antes da pausa da alvorada, por vezes ficavam vários dias no mesmo local. Esperavam até que a Primavera avançasse, voavam depois um par de noites até a alcançarem, ultrapassavam-na e esperavam outra vez por ela. O sinal de partida era-lhes dado pelas flores dos salgueiros, nas margens dos riachos. Quando estas abriam e inundavam de pólen as suaves brisas da noite, os maçaricões lançavam-se para o ar. Voavam até chegarem a um local onde os rebentos dos salgueiros ainda estivessem fechados, e onde a ervagem da pradaria tivesse ainda a cor castanha. Enquanto esperavam, comiam com abundância, ovos de gafanhotos que os seus bicos sensíveis detectavam no solo húmido. E, quando os rebentos dos salgueiros brotavam em flor, continuavam a avançar para Norte.
            A cada semana a urgência era maior, pois a Primavera alastrava cada vez mais depressa, pelas vastidões do Norte.

 O CORREDOR DA MORTE

A torda-mergulheira
Publicação quadrienal sobre Ornitologia
Editada pela
Liga de Ornitólogos Americanos
Lancaster (Pensilvânia)
            Comunicações gerais. Híbridos naturais entre Dendroica coronata e D. Auduboni... Colibri-de-bico-grosso (Eugenes fulgens) no Colorado... Maçaricão-esquimó no Texas. Em Março, perto de Galveston (Texas), foram avistados pelo autor e por vários outros observadores dois maçaricões-esquimós, os quais, segundo todos os indícios, estavam acasalados. Encontravam-se no meio de um grande bando de várias espécies de narcejas, entre pilritos-dos-prados e das-praias, abibes, galinholas, bem como garças e centenas de maçaricões-norte-americanos. Todas as aves procuravam alimento num terreno paralelo à costa, composto de zonas arenosas, charcos e pedaços de relva. A proximidade directa entre maçaricões-esquimós e norte-americanos ofereceu uma bela oportunidade para comparações.
            Eram evidentes o menor tamanho do corpo e o bico mais curto dos maçaricões-esquimós. À luz clara do sol da tarde, quando as aves se moviam, podiam reconhecer-se claramente o grande recorte escuro das asas e a falta da risca ao meio da cabeça. Durante uma hora revimos todos os sinais ornitológicos. Isso aconteceu com ajuda de binóculos, a partir duma viatura estacionada a menos de cem metros de distância... Como acontece muitas vezes junto da costa texana do golfo, durante a época de migração da Primavera, uma trovoada na noite anterior, com forte precipitação e ventanias de Sul, obrigou as aves a poisar aqui temporariamente. - Sargento Joseph M. Heiser Junior...

            A MIGRAÇÃO DA PRIMAVERA   (RESUMO)


            A observação de um casal de maçaricões-esquimós na ilha de Galveston (Texas) foi sem dúvida o resultado mais notável. Este é o primeiro registo aceitável desta espécie, desde há vários anos. Ao longo dos últimos vinte anos, apenas aves isoladas foram ocasionalmente avistadas. Tem grande significado o facto de se tratar aqui, provavelmente, de aves acasaladas. Enquanto existir um casal, mantém-se a esperança de que talvez a espécie se não extinga...
(Cont.)

sexta-feira, 2 de maio de 2014

J. S. Bach

Matthäus Passion Magnificat

O último maçaricão esquimó 33

10
            Março chegara. No Canadá, os piscos-de-peito-ruivo, as felosas-assobiadeiras e os borrelhos-de-duas-coleiras faziam já os ninhos. E na costa do Yucatán reinava a impaciência e a excitação migratória. Quando no Inverno acontecia o mesmo, isso não perturbava as aves de arribação. Porém, mal se anunciava fisiologicamente, o novo ciclo de reprodução apressava-as. Procuravam espaço, pois cada casal queria preservar-se. As andorinhas e os andorinhões-das-chaminés, que se alimentam em voo, viajavam de dia e seguiam calmamente a costa mexicana para Norte. Mas a maior parte das aves juntava-se na península do Yucatán, e ali se acumulavam, como um rio que tropeça num obstáculo. Esperavam e juntavam forças, até que, numa noite de vento favorável, levantavam na escuridão do crepúsculo e avançavam para o vasto golfo do México.
            Após dois ou três dias de calmaria, uma tarde o vento levantou-se e a impaciência apoderou-se das aves. Os tordos e os estorninhos iniciavam pequenos voos ao rés da água, experimentavam o vento e as asas e voltavam para trás. Para os maçaricões, a etapa de oitocentos quilómetros sobre o golfo era para fazer numa noite. Mas para as pequenas aves canoras, que voavam duas vezes mais devagar, esta era a etapa mais difícil de toda a viagem. Por isso tinham que escolher o momento da partida com especial cuidado. Durante a tarde, muitas já não regressavam dos seus voos de ensaio. Elevavam-se no ar, pairavam sobre a rebentação e avançavam para o mar alto, até serem apenas pequenos pontos negros, que desapareciam finalmente no azul do céu. Ao pôr-do-sol reinava um estranho sossego na praia. Só os maçaricões e um par de narcejas tinham ficado para trás.
            Quando por fim partiram estava escuro e nascia a lua nova. Nas outras travessias do oceano, os maçaricões e as tarambolas-douradas tinham voado sozinhos. Mas agora tinham companhia, uma vez que outras aves percorriam o mesmo caminho. Duas horas depois, os maçaricões começaram a ultrapassar as aves mais pequenas, que partiram mais cedo. A atmosfera vibrava com chamamentos e gorjeios, por todo o lado faiscavam asas prateadas ao luar. Havia rotas mais fáceis, sobre o mar das Caraíbas e o golfo do México. As aves podiam saltar de ilha em ilha, e ter quase sempre terra firme à vista. Mas as ilhas eram minúsculas e ofereciam pouco alimento. Por essa razão, a maior parte delas voava sobre a terra firme centro-americana até ao Yucatán, e dali directamente sobre o golfo, sem qualquer escala. Os maçaricões ultrapassaram os cucos, que nidificam na Nova Inglaterra, depois os chascos e as pequenas felosas cujas reservas se encontram nos escuros bosques de abetos do Norte, em seguida os tordos-americanos que se dirigem ao Alaska, os estorninhos e as escrevedeiras que se espalham pelas pradarias do centro do continente, e finalmente os tangarás-d’asa-negra, para quem a viagem termina já nas costas da Louisiana. De entre as aves que naquela tarde tinham deixado as praias do Yucatán, só havia uma espécie que os maçaricões não ultrapassavam. Muitos colibris tinham partido também, esses pequenos anões tenazes que não pesam mais que alguns gramas. Iam muito à frente, deixando todos os outros atrás de si. As suas asas minúsculas faziam setenta batidas por segundo. A maior parte das aves precisavam de vinte horas para chegar a terra firme norte-americana. Os maçaricões precisavam de dez, e os colibris apenas de oito.
            Quatro ou cinco horas depois, os maçaricões tinham ultrapassado as aves mais pequenas e voavam sozinhos. De repente o ar tornou-se mais frio e pesado. As asas obtinham mais impulso, e o alísio de Leste rodou para Sul. Pequenos farrapos baixos escureceram a lua, nuvens pesadas e negras começaram a acastelar-se, a noite ficou escura e as águas do golfo despareceram na treva. O vento rodou para Leste, mas logo virou de novo, soprando agora de Norte com fortes rajadas. Os maçaricões rumaram para Oeste, para o manterem de lado. Então começou a chover copiosamente, como uma parede de água erguida diante deles.
            Passada a primeira bátega, o vento e a chuva amainaram um pouco, mas o mau tempo manteve-se durante cinco horas. Só ao nascer do sol é que atingiram céu calmo e transparente. Normalmente continuariam a voar em frente, sobre os charcos e os pântanos salgados da costa do Texas, para depois poisarem, um pouco mais além, nas aluviões das pradarias. Mas o temporal tinha-os esgotado. As rémiges encharcadas colavam-se umas às outras, e já não reagiam adequadamente aos movimentos dos músculos. Mal alcançaram a costa, desceram em voo planado sobre a praia.
            Paralela à costa, corria por baixo deles uma estreita ilha, com dunas de areia e manchas de capim, ao longo de quilómetros. Durante um ou dois minutos os seus olhos procuraram um lugar onde houvesse alimento. Na areia havia numerosos charcos de água, provocados pela chuva da noite. Bandos de narcejas, obrigadas a poisar pelo temporal, rodeavam estas poças, procurando comida ou alisando a plumagem. Os maçaricões sobrevoaram vários bandos de tarambolas e galinholas sobre a duna. Na sua frente havia charcos lamacentos, onde já se encontravam centenas de maçaricões-norte-americanos, que gritaram na sua direcção. Os dois maçaricões abriram as asas e poisaram no meio deles.
(Cont.)

quinta-feira, 1 de maio de 2014