quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Novas oportunidades

Há sempre uns peralvilhos que delas desdenham. Por indolência endémica entranhada e parasitismo atávico, disfarçados de intelectual superioridade. Recomendar-lhes um pouco de vaselina é um gesto de caridade.Antes do curso!
Durante o curso!
Depois do curso!
Doutoramento honoris causa, à vista das ruínas de Calábria!

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Primavera árabe

Tunísia, Líbia, Egipto, Yémen, Síria...
As patranhas que estes gajos se lembram de nos meter na cabeça!

Cantistas

Fôramos nós um povo ilustrado, conhecedor da história e atento aos seus sinais, e já saberíamos que os tempos actuais de penúria e desespero não têm nada de inédito. Antes foram uma constante, numa história desgraçada.
Desde a inútil aventura de Ceuta, que teve início na temeridade duma rapaziada de corte aventureira, para terminar na catástrofe de Alcácer, só variou a oportunidade dos factores. Na essência, raro saímos da beira do precipício.
Nunca tivemos a sageza, nem o merecimento, de aprendermos com os erros as devidas lições. Porque sempre nos dirigiram, e manusearam, elites de corruptos e traidores, que governaram a vida à custa das nossas misérias. Nesse aspecto os últimos trinta anos são exemplo transparente. Só o não vê quem não quer.
Nos picos mais agudos e aflitivos dessa errância, que mal merece o nome de percurso histórico, sempre as elites dirigentes abasteceram a escudela do povo com mitos, balelas épicas e trovas à la Bandarra. E ainda hoje continuam a fazê-lo, com a ajuda inconsciente duns quantos palermas úteis, que se prestam a adoçar-nos a amarga pílula dum suposto destino histórico e duma imaginária gesta imperial. Bastas vezes donde menos se espera.
É o caso do Fausto (Bordalo Dias), que em tempos, "por este rio acima", nos brindou com um disco de puro génio. Ateve-se, nessa altura, aos ecos da Peregrinação, do Fernão Mendes Pinto.
Agora resolveu dar-lhe continuidade, atento a outras memórias, a diferentes pesquisas, a estranhos depoimentos. No quadro dum império de pura ficção, que desde o início alienou o povo inteiro e agrilhoou o país à decadência e ao subdesenvolvimento, a música de Fausto vem confrontar-nos com quê?!
"Os motivos principais privilegiei-os neste disco. Há os que partiram pelo sonho, pela descoberta, e há os que o fizeram pela conquista de mercados. O Luís Cadamosto, que me inspira a dado momento, partiu para negociar cavalos e trazer ouro, especiarias. Privilegiei os sonhadores, os viajantes da descoberta e as gentes do negócio, que vinham para a troca. Procurei esquecer os expedicionários. (...)
As próprias expedições galvanizavam a população portuguesa até ao séc XIX. As multidões vinham para a rua ovacioná-los no regresso. Tiveram tanto impacto como uma viagem à Lua. Havia esse maravilhamento pelo desconhecido, que vinha já do séc XVI, mas que avançou até ao séc XIX, uma coisa espantosa.
" (do último ATUAL)
Não sei de que literaturas épicas se alimenta a trova do cantista. Sei só que o seu efeito é mais tóxico e mais alienante que o dos que fazem vida a promover o fado como património geral da humanidade. Essa cantiga doente, (está bem, pronto, plangente e fatalista!) que uma fidalguia viciosa apadrinhou.

domingo, 20 de novembro de 2011

Ele há coisas...

Nem sabendo que é verdade se acredita!

Cores

Ai lua fútil, lua dúctil, lua inútil!
Até tu te puseste laranja!

sábado, 19 de novembro de 2011

A primeira vez

Nessa altura não trabalhavam em Angola inteira mais que cinquenta portugueses. E a imprensa de Lisboa, já então povoada de marafonas míopes, chamava-lhes mercenários. Hoje são centenas de milhar, e a imprensa deixou de os insultar.
Nas ruas de Luanda, todas as manhãs, via-se passar o autocarro espanhol, que levava os meninos para a escola. E passava o autocarro ialiano, e o brasileiro, e o francês, a levarem para a escola os seus meninos. Não se via o autocarro português por não haver meninos para levar, nem uma escola para eles.
Um dia entrou-me no corpo um paludismo selvagem, que voltara aos charcos da cidade. Chamavam-lhe cerebral, e era fatal. E o Diógenes, um médico cubano com quem eu repartia garrafas de vinho do Douro, levou-me para o hospital. Após três dias nos cuidados intensivos fui parar à mesma enfermaria que vinte anos antes me acolhera.
Lembrei-me então do enfermeiro solícito, e das maxilas que deixaram de abrir. E estranhei o ambiente, que já não era o mesmo. Mas o pior de tudo era a dieta intragável.
Na cama ao lado estava um velho negro, a convalescer não sei de que mazela. E a família lá vinha todos os dias, mimá-lo com vitualhas, à hora do almoço.
Não sei o que ele viu no meu olhar. Sei só que um dia me estendeu um prato de comida, e me obrigou a aceitá-lo, num gesto que repetiu enquanto lá fiquei.
A mim custou-me um pouco, da primeira vez. Mas quando o cubano me deu alta já me tinha esquecido do enfermeiro antigo.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Vai lá ver!

Dá algum trabalho ao bestunto.
Mas ajuda a ver melhor, nesta fumarada.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Pela tua saúde anímica

Faz uma pausa no fado, essa coisa doente.
E, se fores do Porto, compara o conceito de concert-hall, em que o público rodeia o palco, com o que te impingiram por uma fortuna na sala 1 da Casa da Música. Tudo foi nela sacrificado à forma, atitude comum nos pacóvios que fazem tudo para espantar o mundo.
A coisa passa se estiveres perante uma orquestra. Mas um quinteto de câmara nem o vês, a 50 metros de distância.

domingo, 13 de novembro de 2011

Calinadas

Ao Otelo não lhe agradam sobressaltos militares a desfilar pela rua. Muito embora eles existam por essa Europa fora há muitos anos.
Diz ele que, passados certos limites, só lhes compete destravar as culatras e despachar o governo. E que oitocentos soldados lhe bastariam para isso.
Uma calinada assim vem no seguimento de outras e atiça comentários.
É verdade que os indecisos limites há muito tempo foram ultrapassados.
É verdade que, desde há 25 anos, certas cliques dirigentes a quem o poder caiu um dia no regaço seriam para os portugueses motivo de vergonha, se antes disso já não fossem um exemplo de traição.
É verdade que, não fora a barcaça europeia em que Portugal mal navega, já tinha tido lugar um pronunciamento na segunda metade da década de oitenta.
É verdade que os pouquíssimos soldados bastantes a Otelo para dar ao governo um bom despacho já nem sequer existem, pois nem isso resistiu à nobre gente que nos tem governado.
É verdade que o governo hoje em funções foi eleito por uns quantos portugueses, e foi diligentemente amamentado pelos partidos encartados na revolução.
De forma que, jogando assim tão bem a mocha com a cornuda, o melhor será tirar daí o sentido e esquecer a peripécia.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Equívocos amargos

Um conde obscuro, que hoje ninguém recorda, deixou o nome à quinta. E havia nela, em tempos, um castanheiro velho, onde as cegonhas criavam os filhos. O resto era um sertão, ali no arrabalde, pisoteado por vacas de brinco na orelha.
Um dia chegou à vila a febre do progresso, um dia tinha que ser. E um empreendedor, que viera do mar ainda rapazola, quando as caravelas regressaram todas à praia das nossas lágrimas, encomendou-se a um banqueiro e urbanizou a quinta.
As casas são branquinhas, à mansa luz do poente. São quase todas iguais, e têm bonitos telhados vermelhos. Algumas são habitadas.
Foi assim que a vila passou a cidade, e o empreendedor deixou de andar a pé. Agora alterna entre um blindado BM e um Porsche dos melhores, se está curto de tempo.
Dizem que já mandou vir um Maserati. Só está à espera que diminua a lista dos tantos geradores de equívocos amargos.

Palavra de brigadeiro (4)

(...)
O avião lá caiu, lá se despedaçou, mas eu já não vi como. E a partir de agora é só um filme queimado que lhe posso mostrar, onde poucas sequências se aproveitam.
Na primeira dou comigo dentro dum charco. Sinto o lodo nas pernas enterradas, as ervas podres a enrolarem-se aos joelhos, e um clarão de alerta a explodir-me na cabeça: - Preciso de sair daqui!!!
Já a meio da encosta dum morro. Estou parado, voltei-me para trás, pergunto, a quem: - Como é que vou daqui para o Toto?!
Cheguei, parece-me, ao cimo do morro. Difusos, entrevejo vultos baços, vermelhos, lá em baixo, e grito: - Quem são vocês?! Que horas são?!
Agora já vou picada fora, no jipe da tropa. As pontas do capim, debruçadas na berma, vêm lamber-me a cara ensanguentada, deixam-me ferroadas na pasta amassada dos olhos. Um soldado cobre-me com o peito, parece a minha mãe.
A partir daqui, a história adquire maior constância. As sequências aproveitáveis tornam-se mais longas, aparecem encadeados de pensamentos, começam a jorrar tempestades emotivas. Reaparece o desconforto do medo, aqui e ali sinto-me vulnerável.
Agora estou já no quartel do exército, estendido na maca baixa, inundado pela euforia de me encontrar a salvo. Agito as pernas no ar, experimento músculos e dobradiças, lanço anátemas contra a guerra e todos os seus chefes, obtenho do brigadeiro a palavra de honra de que não fico cego. Chega-me pela primeira vez o gosto da fraude, sinto-me violado por dentro.
E estou já no aeródromo, rodeado da minha gente da força aérea. Aguardo o avião que vem buscar-me, deitado no chão duma ambulância verde. A ventoinha do tecto rodopia teimosa, agita um pouco a atmosfera quente. Apercebo-me do tempo, do sol, dou conta de que a tarde já vai longa. Num desespero que não entendo, agarro a mão dum amigo. Respiro a angústia contida dos meus camaradas, enterrado num cataclismo de emoções que não sei descrever. Aparece-me clara a ideia de que os comandos da base aérea não vão perder a oportunidade de fazer contas comigo. Pagar-lhes-ei, desta vez, a insubmissão, as resistências passivas, as heresias velhas e as novas. Os bonzos não me deixarão escapar. Este pensamento atormenta-me, dói-me, exposto assim e indefeso, como se tivesse acabado de sair do útero da minha mãe.
Estou já no chão dum avião, imagino-me sobre os Dembos. Em viagem para Luanda, mergulhado num agressivo bater de ferragens e latas, que me provocam dores insuportáveis. Queixo-me ao médico, que me cobre os ouvidos com algodão em rama. Sem nenhum efeito.
Já no aeroporto, transferem-me para uma ambulância. É claramente noite. Alguém recomenda aos enfermeiros muita pressa e muito cuidado.
Eis-me enfim na urgência do hospital militar. Há outras macas no chão, à minha volta. Vultos perpassam, com fardas de gente importante. Um padre aproxima-se, debruça-se sobre a minha cabeça. Lembra-me que sou filho de Deus, e que como tal devo encarar todas as provações. E que devo estar preparado para o sacrifício supremo, se tal for a sua vontade omnipotente.
Surpreendeu-me, com franqueza, a presença do padre. Vi-lhe claramente o significado mas considerei-a descabida, avaliando o meu próprio estado. A bem dizer assustou-me. Abriu brechas na minha segurança íntima, no último reduto em que me achava. Não sei se lhe devolvi uma palavra.
As últimas imagens são da sala de raios X. Estendido numa grande mesa, cercam-me tubos e olhos de máquinas. Sinto um vómito violento. Peço ajuda a um enfermeiro, que me ampara, debruçado sobre um balde de plástico verde. Vomito do fundo das entranhas, e oiço o enfermeiro comentar: - Este vem bonito! Só já vomita sangue! – Foi o mais macabro cumprimento que já me dirigiram. Deixou-me desamparado e aflito. Introduziu na minha fortaleza uma dúvida inimiga e perversa.
Valeu-me, de novo, este repetido baixar do pano, este gelar-se-me por dentro a ideia e a lembrança. E ainda não sei, talvez estas horas todas que eu vivi mas que não foram minhas… O que são estes lampejos de consciência que aparecem, furtivos, em que eu penso, e ajo, e sinto, e tudo o resto que não passou por mim, e que eu não guardo, e que nem ao de leve me arranhou, mas onde eu também actuo, e avanço, e recuo?!
Comecei a sentir pesada a língua, a invadir-me o peito aquela opressão de incapacidade e esgotamento que voltava sempre, mais forte do que eu. Soergui-me nos cotovelos, resisti, dei pelo pijama inundado de suor nas axilas.
Enfim, fiquei aqui, e dos primeiros tempos não guardo lembrança. Dias e dias que não foram meus, sabe o que é, até começar a acordar.
Vieram então pesadelos fantásticos, febris, escuros como fundos de poços. Olhava-me num espelho de corpo inteiro e desvendava uma barriga transparente, com pele de celofane, assim como um manequim de sala de anatomia. Deslizava sobre mim as mãos e não achava pernas, e ficava atordoado, a mim mesmo estranho, na penumbra surreal duma atmosfera de homens-cestos. Tinha uma coluna reconstruída, descarnada a espaços, com vértebras lisas e brilhantes talhadas em chifre cinzento. O pescoço alto, desproporcionadamente longo e fino. A minha cabeça tinha partes restauradas, com entalhamentos de baquelite castanha. Tudo funcionava, porém, na perfeição, obra-prima dum macabro Frankenstein.
Venho, assim, regressando desta viagem ao fundo das trevas, aos magmas de fim do mundo, onde já não há medos nem há emoções. Onde o sol e a paixão, o verde das florestas e o falar das gentes se dissolvem num vasto lago escuro, opaco, mineral.
E mais não me disse a língua naquela circunstância. Mais diria se o torpor não tivesse chegado, definitivo, urgente, fóssil.
A quarentona não cheguei a vê-la, sentia apenas latejarem-me os pontos nas pálpebras cosidas, por baixo dos esfregões de palha-de-aço. Enquanto iam renascendo, mais vivos, os olhos que não perdi, palavra de brigadeiro.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Palavra de brigadeiro (3)

(...)
- Imagino que a senhora dispõe de pouco tempo para estas conversas, que tem uma vida enervantemente carregada de compromissos, que isto é para si apenas um descargo de consciência, uma injecção de morfina no cancro da existência. Sei que gosta de passar por aqui para que se saiba que esteve cá, armada em Santa Isabel da tropa, abrindo o regaço generoso aos massacrados da guerra, distribuindo larachas ridículas, ou livrinhos de cordel já surrados de tanto peregrinarem de mão em mão. Sei que gosta de passar por aqui como cão por vinha que foi vindimada, envolta nas liturgias beatas duma visitinha pascal – breve, breve, que a malta é muita! – e deixar atrás de si um rasto de perfume de fêmea.
Senti-me cáustico, injusto, infame. Uma cobardia de novato ameaçou-me a garganta. Mas ainda assim me saiu a voz como se não fosse minha.
- Aqui estou há três semanas. Julgo que não me engano, muito embora os rigores do tempo me tenham escapado. Conheço os meus companheiros pelo ouvido, e comecei a ver as horas na voz do enfermeiro que me traz o almoço. Já tenho tentado, nos momentos em que estou desperto, ligar as vozes destes colegas de camarata às suas histórias pessoais, captar-lhes as inflexões, os maneirismos, e pintar-lhes o retrato robot, como fazem os polícias enganados pelos ladrões. Aquele além do meio, por exemplo, há-de ser um macaco de focinho quadrangular e obtuso. Raciocina linearmente, agarrado ao sentido imediato das coisas, tem a casca dura e o pêlo hirsuto, faltam-lhe na ascendência gerações de banho morno quotidiano. Aquele lá do fundo chegou há um par de dias, traz umas lascas de caveira a menos por certos maus encontros que teve, ao que me consta. Não fala, não o conheço. Há um aí para a direita que não se cansa de engolir noticiários. Homem paciente, liga o transístor à hora certa, como quem peneira leitos de rios à espera de ouro. Nem chega a excitar-se, pois nem reflexos de mica lhe aparecem no fundo do crivo. E desliga sempre o aparelho no fim das notícias. Deve ser um tipo de olhar ansioso, eu vejo-o ruminante, pouco falador, a guardar no peito uma esperança não sei de quê.
Pouco falamos, enterrado cada um na sua fortaleza. As nossas conversas são como folhas amarelas de Outono, limitam-se a cair umas atrás das outras. Somos uma armada de barcos naufragados, cada um a tratos com a sua procela pessoal, aferrado às suas bóias interiores.
Eu entrei aqui feito num bolo, mais morto que vivo. Vim dos matos do norte, onde me espetei com um avião pelo chão adentro. A ganância do alvo a fugir, sabe o que é, aquele fascínio de o ter no visor e as putas das balas perdidas não se sabe por onde. Não custa nada prolongar o passe mais uns décimos de segundo, pode ser, enfim, que o pundonor se salve, e o alto conceito em que nos temos a nós próprios, se formos imbecis até tal ponto, como é frequente, sabe como é?
Imagine pois que o meu alvo era um bicho do mato, um pacação, não sei se já tem visto. Apanhou com o avião ao longo do espinhaço, lá ficou ele e eu, pelos vistos eu em bem melhor estado! Bem sei, mas não me interrompa para me recriminar. Já sei que, se foi mal, o mal está feito. Já tive aqui uns visitantes pressurosos a recolher-me o depoimento, prontinhos a alindar-me a folha de serviços com algum floreado do regulamento infringido. Mas sempre lhe direi que o fiz para evitar a fome e o mau passadio, o meu e o dos companheiros. Por isso, bem ou mal, depende só da moral.
Quando senti o avião a esfregar a barriga no capim, puxei-o, e ele recuperou. Mas já não vinha inteiro, metade duma asa saltara no choque violento que me projectou a têmpora direita contra os ferros da carlinga. Partiu-se o capacete que me rasgou os olhos, e o choque deixou-se num estado de sonambulismo inconsciente, em que o fio da memória se me cortou. Não foi porém tão rápido que eu não tivesse visto avançar direito a mim, distinto e inevitável, o manto escuro do aniquilamento. Passou-me na cabeça um clarão de raiva. Mas logo me inundou um tranquilo sentimento de entrega, de renúncia pacata, de submissão quase doce.
(...)

sábado, 5 de novembro de 2011

Palavra de brigadeiro (2)

(...)
Ela chegou perto de mim, trouxe-me às narinas uma nuvem subtil de Cabochard. E eu senti-a tão perto que levei, por instinto, a mão aos olhos, a proteger os esfregões de palha-de-aço que me ocultavam as órbitas.
Cresciam-me as sobrancelhas, pensava eu, enleadas nas cordas dos pontos que sentia arrepanharem-me as pálpebras. Picavam-me, por vezes, do suor, e eu deliciava-me a sentir vivos também os olhos, onde se concentrara enfim o aguilhão do medo, a aflição da cegueira. Traziam-me os soldados no jipe da tropa, picada fora, desajeitados e inseguros como um tio solteirão a quem caiu nas mãos um sobrinho acabado de nascer. Tratavam-me com a solicitude aflita que se dispensa aos casos perdidos, e ter-se-iam estendido no chão, para eu lhes dançar sobre as barrigas. Não eram homens para recusar um último desejo a um qualquer. Um deles empinou-se à frente do jipe, encavalitado sobre mim. Com o dorso ia varrendo as pontas do capim alto que vinham afligir-me a bola de sangue da cara, abandonada no encosto do lugar do morto.
Depois, no quartel, a morfina. Subtil primeiro, em torrentes depois, a euforia da ressurreição. As minhas pernas vivas, os braços a saltar sobre a maca rasteira, a consciência clara e agitada de poder mexer-me, se quisesse.
Não sei onde se me gravou tudo, nem com que olhos acompanhei o que se passou naquelas horas. Sei apenas que o vivi, que alguma parte obscura de mim o sentiu e o guardou. Sei que pisei o limiar onde se está dum lado morto e doutro vivo. E senti o animal de mim inebriado com a redescoberta da vida. Soltei anátemas de fúria contra as hierarquias, os comandantes, os galões, as guerras e as pátrias. Exigi ao brigadeiro a palavra de honra que não ia perder os olhos. Ele deu-ma, e mandou buscar uma camisa verde que lá tinha, passada a ferro, para me vestir.
Mas não tinha voltado ainda a ver a luz do dia. Os olhos eram o centro de mim, e eu tapei-os quando ela chegou. Senti-lhe a mão pousar de leve sobre a minha, tão leve como se ela pudesse viver a minha aflição de cego.
- Mas a ti não te tinha visto ainda! Há quanto tempo estás aqui? Conta-me lá a tua história!
Vi-me transformado num canhão no estaleiro. Eu não era eu, era uma peça do cenário, era um banquinho para as verdadeiras personagens. A intimidade forçada deste contacto fez-me lembrar que eu teria, espetado no alto da carantonha de pau, o ferro de manejo dos bonecos de Santo Aleixo.
Voltei para ela os tubos entrapados das pupilas. A língua pulou-me da garganta como se tivesse deixado de ser minha, como se por trás do seu contorcionismo verbal já não estivesse eu, nem o meu cérebro amarrado nas ligaduras do respeito pelas instituições, afeito ao molde das hierarquias. Senti-me dar um passo para a frente sem o ter sequer imaginado. Fiquei a ouvir-me falar.
(...)

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Um olho no burro...


... e outro no cigano!

Palavra de brigadeiro (1)

Eu estava há três semanas no hospital, estendido na cama articulada do fundo da enfermaria. Nos primeiros quinze dias dormira sem intervalos, ideia vaga tinha apenas de algumas vezes o enfermeiro me acordar, atrás do seu carrinho de vitualhas. Alçava-me nas manivelas o corpo dobrado em dois, sentava-me na beira da cama para mudar de posição, e alimentava-me a fornalha dos dentes com pequenos pedaços de comida. Eu trazia avariadas as maxilas, apenas abria alguns milímetros os queixais. Mas devorava como um lobo a ração do almoço, num estado de fome que eu nunca assim pudera observar tão irmã da vida. Vinha não sei de que remoto local de mim aquela fome. De um local por certo esvaziado, mas que só os mortos terão vazio. E eu, afinal vivo, sofria aquela fome de o preencher.
Uma vez alimentado, baixava-me o enfermeiro de novo à horizontal. E eu ficava, hibernando, num sono sem limite, como um corpo avarento que amontoa energias. Sem um gesto, sem um pensamento consciente, sem um sinal sequer de comunicação. Rugiam-me tempestades no mais fundo da pele, escalavravam o mais ignorado de mim. Mas na minha cara, que fora sempre um verdadeiro espelho, não perpassava um tremor.
Nos últimos dias comecei a acordar, por lapsos curtos de tempo. Comecei a atentar, silencioso, na voz dos companheiros, até se me diluírem no ouvido as suas deambulações de língua. O nariz, a tempos, ia reconhecendo cheiros de hospital. Cheguei a estar desperto durante uma hora. E lá voltava outra vez aquele sono, que não era bem sono. Era uma prostração, era um limite físico. Além dele nem um passo. Chegava ele e eu ficava aprisionado, naquela ratoeira dum corpo incapaz. Enquanto o sol, entrando na vidraça, ia queimando, intenso de vida, a minha pele.
Um dia à tarde, não sei já por que labirintos se me aventurava o pensamento, salpicou o silêncio de metais brancos da enfermaria o trote bailado de uns sapatos de salto, atacando o soalho fresco de ladrilhos. Alguém tinha visitas.
Rodei a cabeça na direcção da porta. Habituado durante vinte e quatro anos a ver as coisas com os olhos, esqueci-me de que mos tinham obturado.
Ela entrou, desenvolta, espargindo alegrias acrílicas sobre a rapaziada. Éramos nós, os internados, a sua frente de batalha. E estava ela, pois, no seu teatro de operações. A cada um ia distribuindo sorrisos de grafonola, livrinhos policiais e bugigangas, no meio de aspersões de reconforto beato.
Eu seguia-lhe, de ouvido, o deambular. Imaginava-a nos quarenta anos pelo cetim envolvente das cordas vocais, ainda macias. Talvez menos, pelo cirandar seguro dos saltos dos sapatos. Talvez um pouco mais, pela eficácia quase maternal com que distribuía a cada um o seu pacotinho de coragem sintética. Tinha na voz requebros de bairro elegante, e eu imaginei-lhe a silhueta quarentona, cada cabelo no sítio certo do penteado cuidadosamente armado, o peito, ainda altivo, suspenso por elásticos, a harmonia das coxas marcada, a compasso, pelo esteticista, o leito das rugas a aflorar, assoreado pelo macadame das loções hidratantes. Imaginei-lhe o ar sacripanta e farisaico dos naufragados na falsa temência a Deus, no falso amor à Pátria, no serviço falso da Família.
- Só me faltava esta agora! – berrou a minha paciência.
(...)

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

A boiada

E a poeira que ela deixa!

Pois é!

«Um "não", de resto inteiramente provável, terá efeitos catastróficos sobre a economia grega. Levará à bancarrota, ao cancelamento da assistência externa, a uma terrível suspensão de salários e pagamentos.
Para os gregos, seria um suicídio colectivo. Têm agora a arma nas mãos
».
[Lomba, in PÚBLICO de hoje]

E ainda...
E ainda mais...

Pode ser que sim...

... que assim seja.
Mas não é garantido.

A retoma

Em Almendra a azeitona está madura, e as recentes chuvas vieram a tempo de salvar alguma.
Recolhê-la é a única retoma de que é lícito falar. E, mais urgente ainda, de levar à prática.
Qualquer outra não passa de palavreado duns bonecos aventureiros e sem vergonha, que à má fila chegaram ao governo, sem saberem muito bem o que fazer com ele, salvo acumular trapaças e malfeitorias.
Salvo repetir as mesmas fórmulas, já velhas de cinco séculos: reduzir o rebanho à indigência e à penúria, ao grau zero da cidadania, ao medo da fome e à submissão, à emigração, ao despaisamento e à precaridade.
Com o interregno ilusório dos últimos trinta anos, esta pátria tristonha nunca foi a mãe dos portugueses todos. Antes foi a madrasta de gerações infindáveis dos muitos enteados, para benefício duns poucos ínclitos filhos que lhe mamaram sofregamente as tetas. E que ensaiam de novo as fórmulas antigas.
Cá em casa, nos próximos tempos, a retoma é de galochas e luvas. Porque os dedos não são de pechisbeque.