sábado, 31 de dezembro de 2011

2012

Portugal volta, enfim, ao que sempre foi, desde que há cinco séculos lhe arrancaram as raízes e lhe sangraram a seiva. Um país precário e inviável, a tactear na escudela vazia os mitos e as balelas que uns farsantes lhe estendem para o calar; agrilhoado a um fadário que desde então se repete, mudando os pormenores.
É um país assim, amedrontado e tosco, que satisfaz as elites, para quem o povo geral é gado de exportação.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Ecos da Sonora - XLIII (2)

Há-de ser apenas conjugação astral nefasta.
Mas desde que o Relvas tomou conta disto, o trabalho de gravação da Sonora baixou 60%.
E na verdade, se aos indígenas inteiros tão pouco diz a leitura, por que havemos nós de nos preocupar com uns cabrões que sofrem de cataratas?
Leitores contratados, tudo fora!

Maquinistas

Comboios parados três dias no Natal, páram outros três no Ano Novo.
Não admira.
Se a melhor nata do país há muito que abriu falência, por que não há-de a elite proletária assumir-se em bancarrota?

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Canalhas patriotas

(...)
"O exército é o espelho da nação, e isto era o que se lia nos panfletos colados a esmo nas ruas da cidade, virava-se uma esquina e logo tropeçavam os olhos naqueles rectângulos de cor envergonhada e baça, não tão baixos que pudesse mão herética meter-lhes a unha e silenciá-los, nem tão altos que risco houvesse de perder-se na atmosfera da tarde a jaculatória patriótica, o exército português é tão bom como os melhores. Muito melhor que os melhores, diremos nós para que a verdade se saiba, pois convém a César dar o que de César é, e para o provar vamos ali à foz do Massanza, um destacamento avançado onde um pelotão de atiradores vai defendendo a soberania, do outro lado do rio alastra na paisagem, entre arames farpados, uma sanzala de realojados, que estendem ao sol as misérias da lepra.
Um dia os rústicos soldados saíram dos abrigos e deram-se a construir uma pista de aterragem, tinham-lhes prometido uma avioneta que poisaria ali uma vez por quinzena, não há nada melhor para romper o isolamento, para resistir à loucura ou receber o correio que houver, sempre se tem a ilusão duma ligação ao mundo. À custa de tempo e de suor aplainaram à mão esta faixa com dez metros de largo, esquartejaram umas dúzias de mangueiras bravas que arrastaram para as bermas, a pista começava logo à beira do rio e alongava-se até tropeçar ao fundo na colina, o resto do milagre haviam de fazê-lo os aviadores. E um deles o terá feito, uma vez sem exemplo, aterrou um dia a passarola mas só saiu dali deixando atrás a carga toda e metade da gasolina, que a pista foi celebrada com cerveja mas não ia além de sessenta metros mal medidos, tudo quanto podemos fazer é passar em voo rasante e largar os sacos de biscoitos e massa, é largar as latas da marmelada e do atum, é largar os sacos do chouriço e da carne, se a houver.
E foi a partir daí que toda a canzoada da sanzala passou a regular a vida por um estranho calendário, mal se ouve ao longe o roncar dum avião e logo os bichos se põem a atravessar o rio, espadanando na água as patas frenéticas. Cada um escolhe o seu terreno ao longo da pista, e é vê-los a disputar aos irados soldados os restos dalgum saco rebentado, lá vai este a fugir para o mato com um par de chouriços nos dentes, aquele abocanhou um pão, a princípio ainda se ouviam tiros e rajadas a afugentar os bichos, agora já nem isso, toda a gente afinal concluiu que a vida custa a todos, que todos ficam parecidos no retrato, o exército português é melhor do que os melhores."
(...)

[Veio-me à lembrança a peripécia, ao tropeçar neste vómito dum canalha patriota. Ao tempo dos acontecimentos, andava ele ainda nos primeiros ensaios de paralelas assimétricas, nos tomates do avô.]

Serviço público

Por ser de leitura obrigatória, transcreve-se O Fantasma de Paris, texto de Miguel Sousa Tavares no último Expresso:

"Uma curta e inócua declaração de José Sócrates em Paris, numa palestra informal, foi o suficiente para agitar todo o país político e desenterrar os ódios adormecidos contra o homem que nos governou até Junho passado. Como qualquer pessoa de boa fé percebeu, mesmo truncada e fora de contexto e mesmo antes de explicada pelo seu autor, a frase de Sócrates limitava-se a constatar uma evidência: que nem Portugal nem qualquer outro país pode ser confrontado com a demonstração de que seria capaz de pagar de imediato toda a sua dívida externa; tem apenas de a gerir, mantendo-a sob controlo.
Para quem não saiba, Portugal acabou de pagar, há um par de anos, dívidas que vinham do tempo da implantação da República, e o mesmo fez a Alemanha, por exemplo, com dívidas dos anos vinte do século passado. A razão por que os países acumulam dívida é a mesma razão pela qual a acumulam as empresas e as famílias: para se poderem desenvolver.
Salazar não acumulou dívidas, mas em compensação entregou o país mais pobre da Europa, a seguir à Albânia. Os países não são supostos poder e dever pagar toda a sua dívida de imediato, por intimação dos mercados ou das agências de rating, tal como não são as famílias e as empresas. Aquilo que interessa, e que Sócrates destacou, é saber gerir a dívida: não deixar que o seu custo, o chamado serviço da dívida (amortização mais juros) atinja um ponto em que se torna mais elevado do que os benefícios proporcionados pelos empréstimos contraídos - porque aí o que estamos a fazer é a roubar as gerações seguintes.
Foi isso que nos escapou nos últimos anos - a nós e a toda a Europa e Estados Unidos. Assim, tanto Maastricht como a recente cimeira europeia de Bruxelas, não pretenderam proibir em absoluto o défice e as dívidas, mas estabelecer-lhes limites considerados sustentáveis - 3% do PIB antes e 0,5% agora para o défice, e 60% para a dívida acumulada.
A esta luz, temos de ler nas reacções quase histéricas às palavras de Sócrates (exceptuou-se Passos Coelho) uma explicação de outro tipo: o país, civil e político, procura afanosamente um bode expiatório para os males que o atingiram, e José Sócrates é o alvo talhado à medida. Pouco importa, aliás, que a crise tenha nascido de fora para dentro, e que atinja por igual todo o mundo em que vivemos: encontrar um culpado nosso serve de catarse para nos livrar a todos da culpa colectiva pelos erros que foram exclusivamente nossos. Convém, pois, fazer um exercício que os portugueses detestam: refrescar a memória. (..)

(Continuar a leitura AQUI)

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

De corno em riste


Sempre que ouço o Relvas a referir-se à cultura, à tradição e à história de Portugal (como hoje aconteceu), vem-me à lembrança um rinoceronte de África.
À uma por trazerem os dois, lá dentro do bestunto, a finura de espírito dum sertão remoto.
E às duas porque investem ambos sempre de corno em riste.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Lá a calari!!!

A enxurrada do Natal, mesmo carregado de promessas de penúria, não poupa os escaparates. O mercado, sempre atento e oportuno, desfaz-se mais uma vez em produtos e objectos de consumo. Nos tempos que correm, não é com literatura séria que se faz negócio e que os melões se compram. E os leitores, esses coitados, há muito que só contam enfileirados no rol de consumidores, alienados e acríticos.
Não falta oferta para todos os gostos, o mais dela afiançado pelo prémio Saramago, pobre dele. Lá aparece o Peixoto a pedir colo, como é hábito, e a desfilar dinastias inteiras de Alziras familiares em piqueniques campestres. O hugo mãe reincide no seu requentado neo-realismo, povoado de proletários canhestros, com títulos assarapantados e um estranho fraseado onde ecoam exotismos de quimbos muito remotos. Já o Tordo é de discurso e técnica mais cosmopolitas. Pena é que lá dentro haja tão pouco, no que respeita a densidade e substância. O Tavares sabe o que é a literatura. E põe em prática as suas qualidades quando não perde tempo com enigmas e charadas, à espera que chegue um dia o Nobel que umas pítias já lhe garantiram.
Sobra aos especialistas da matéria, e aos divulgadores domésticos, o estendal dos produtos literários da fábrica anglo-saxã, que nos colonizam e distraem, e nos convencem de que tomamos banho no tanque da cultura. Uns e outros se levam a sério extremamente, o que está longe de ser um bom sinal.
É neste contexto que o leitor muito ganha, e mais ainda poupa, se os deixar a todos em sossego. Ponha a rodar um disco do Erik Satie e recue 30 anos, que foi quando o Mário de Carvalho deu à luz estes Casos do Beco das Sardinheiras que nos levam a uma certa Lisboa, e de que se deixa aqui abaixo um gostinho com O Tombo da Lua. A técnica deste escriba é primitiva, mas clicar talvez ajude a ler.



sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Ecos da Sonora - XLIII (1)

OS DONOS DE PORTUGAL - Cem anos de poder económico (1910-2010)
Jorge Costa.Luís Fazenda.Cecília Honório.Francisco Louçã.Fernando Rosas
Edições Afrontamento, Porto, 2010

Da Introdução:

(...) Se o livro tem uma lição é esta: a burguesia portuguesa foi sempre incapaz de democratizar a modernização do país. Não é que não queira ou que não possa, mas, simplesmente, rejeita a repartição social porque a sua acumulação, garantida e protegida pela força do Estado, lhe permitiu beneficiar da maior desigualdade social do espaço europeu.
O resultado é uma estratégia, não é uma contingência; é um sucesso devastador e mesmo intrigante, mas não é uma inconveniência para os donos de Portugal. Como veremos nas páginas que seguem, essa conclusão é a mais importante do livro: os donos de Portugal são o problema de Portugal.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Gramática

"Nós não estamos ainda em condições de dizer qual terá sido a 31 de Dezembro o défice de 2011".
[Passos Coelho]
E o que é que se faz disto, sem ter à mão a gramática dos orangotangos!...

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Desmancha-prazeres

Entrar na biblioteca, ou no Centro Cultural, dum qualquer desertificado concelho do interior, é sempre um exercício de muito proveito e grande inspiração. Pois que se ganha em disponibilidade e atenção das hospedeiras o muito que se perde no vazio de utentes.
Veja-se aqui este Portugal nos Mares Vol. I, de Oliveira Martins, Edit. Ulmeiro, s. d., pág. 111:

"De 1497 a 1612 armou o governo português para a Índia 806 naus que à razão de 125 mil cruzados representam 100 milhões e 750 mil cruzados. Computando o cruzado a 2.057 rs. de hoje, temos um custo dos navios, sem cargas, que atinge a soma de entre 207 e 208 mil contos de réis, o que importa um orçamento anual de cerca de 2.000 contos de réis só para construções.
Basta o enunciado destes algarismos para se fazer ideia das consequências financeiras da aventura da Índia. Incontestavelmente, a pimenta foi um mau negócio para o Tesouro de S. A.; e a Índia, como negócio, foi pior ainda para a economia portuguesa. Esterilizou uma sociedade que no séc. XIV, ainda no séc. XV, se desenvolvia normalmente, como riqueza e população, e corrompeu-a esterilizando-a. A pobreza trouxe consigo os vícios inerentes, e juntou-os aos vícios da vaidade e da dissipação.
Diz um escritor que D. Manuel conquistou na África, na Ásia e na América, o direito de gastar muitos milhões; tudo isto é verdade; mas verdade é também que a nossa ruína foi o preço do maior acto da civilização nos tempos modernos. Valha-nos a consciência dessa glória, perante o espectáculo das nossas misérias.
Com a Índia aparece entre nós pela primeira vez a instituição da dívida consolidada; é D. Manuel que a inicia, criando os padrões de juros reais; é no seu tempo que se esgotam os antigos tesouros soberanos, verdadeiras caixas económicas dos povos; Entra-se no período do capitalismo moderno que, desde então, através de sucessivos jubiléus, ou pontos, vem a parar na dívida monstruosa que actualmente nos esmaga.
Os embaraços financeiros, criados pelo poder marítimo português, existem já no tempo de D. Manuel: prova é o pedir emprestado; mas atingem proporções de crise no tempo de D. João III, quando os padrões, emitidos antes a 5 e a 6 por cento, sobem a 8 e a mais; quando a dívida flutuante, obtida por meio dos câmbios de Flandres, se contratava a tal preço que se dobra o dinheiro em quatro anos, por não haver já quem quisesse comprar os padrões da dívida fundada. (...)
É deplorável: já nesse tempo - nada há novo sob o sol! - se recorria ao sofisma de chamar extraordinárias a despesas que todavia se repetiam constantemente. (...)
Compreende-se pois o estado agudo da crise, que fazia dizer ao conde de Castanheira:
'Quando cuido nas coisas que Vossa Alteza é obrigado a suster e o modo de que está sua fazenda, representam-se-me tantas desesperações que muitas vezes me parece que vêm mais de a minha compleição melancólica que doutra coisa.
Des que se começou a tomar dinheiro a câmbio até agora, nunca se outra coisa fez, e quase se não sustém dal as despesas de Vossa Alteza. E porque ainda isto não bastava para se remediarem, se começaram a vender juros (padrões)... e o pior é que já agora não há quem os compre
'.
A compleição melancólica do conde de Castanheira antevia a sorte do país e o termo da viagem iniciada em 1498. O mar devorou-nos; a Pátria naufragou como essa Marinha que, levando-lhe a bandeira por todos os mares, se pode dizer que levou também consigo o sangue, a virtude e a força das populações vivas que tinham aclamado o Mestre de Aviz.
Antes de morrer em África, D. Sebastião teve um Alcácer-Quibir financeiro, quando foi necessário declarar a bancarrota, reduzindo o capital e os juros aos Padrões e vendendo-os à força, porque já desde o tempo do seu avô ninguém os queria comprar. Só os judeus de Flandres emprestavam a Portugal em condições em que se dobra o dinheiro em quatro anos...
"

domingo, 4 de dezembro de 2011

Os cabrões do Norte

Viciados, desde há séculos, em paraísos artificiais, estamos sempre prontos a voltar a eles.
Os visionários recolheram já um milhão de fundos para a igreja do Restelo, tudo bem. Mas a dolorosa vai em três milhões.
Portantos o problema está nos calvinistas e nos luteranos, essa corja de cabrões do Norte, que se recusam a pagar.

[Imagem e detalhes saqueados AQUI]

sábado, 3 de dezembro de 2011

Mentira e grande pena

1. Nisto da literatura é como em tudo, nos tempos nefastos que aí andam. Se o leitor baixa a guarda, afrouxa a exigência crítica, e se entrega desarmado a publicistas, agentes da opinião literária e editores que oficiam ao mercado, o mais certo é acabar depenado, a acumular a um canto genialidades inúteis, que nunca passam da página vinte.
2. Confessa este leitor o seu parti-pris pelas obras indígenas, as únicas que ousa ler no original. Por causa da desgraça da tradução.
[Na messe que enlourece estremece a quermesse
O sol celestial girassol esmorece
E as cantilenas de serenos sons amenos
Fogem fluindo à fina flor dos fenos.

Claro que na poesia o caso é ainda mais grave. Imagina-se isto traduzido sem perdas fatais?!]
Ele há traduções boas e más. Em todo o caso há sempre uma harmonia, uma toada melódica, um jogo de sonoridades, um ritmo qualquer que se perdeu, na transição da língua.
3. E, olhando em volta, estava este leitor a pontos de encomendar um requiem pela literatura indígena que asila aí pelos escaparates, quando lhe caiu nas mãos O Retorno, de Dulce Maria Cardoso. Ficou tão emocionado que leu o livrinho duas vezes, e andou dois meses sem palavras para o dizer: a encomenda do requiem era precipitada.
4. O livrinho, da Tinta da China, é um objecto fisicamente irrepreensível, daqueles que dá gosto manusear. E tem lá dentro um exercício de muita inteligência e grande encantamento.
O tema é o regresso das caravelas, em 1975, quando os fogos de santelmo do império finalmente se extinguiram. E o assunto é o último dia duma família de colonos em Luanda, e os dolorosos meses que se seguiram num hotel de cinco estrelas do Estoril.
Andam por aí dezenas de trabalhos espúrios sobre o drama dos retornados, o furor cego que os possuiu, e as lamentações da vida que perderam e por lá ficou, por culpa duns traidores ou duns cobardes míticos. Até aparecer este Retorno (frágil título!) que põe o dedo no sangue da ferida e iguala na mesma tragédia os portugueses de África e os da metrópole.
Nenhum outro mostra, como este, a violência que viveram uns e outros. Os de cá não escondem o que pensam dos de lá. E os de lá, com discutíveis razões, não se coíbem de dizer o que pensam dos de cá.
Eleger como narrador um miúdo de 15 anos, num registo narrativo perfeitamente adequado à sua condição, é uma das chaves do sucesso deste romance. Porque ele não se sujeita ao discurso politicamente correcto, nem é tolhido por preconceitos de adultos, nem teme os estigmas dum discurso racista. Limita-se a dar voz a um mundo que é o seu.
Ler e reler este livro é uma emoção de grande utilidade. Porém este facto traz ao leitor a ideia de que o mesmo não terá grande futuro. Aos portugueses interessam pouco as realidades da história.
5. Mas não há rosa que não tenha o seu espinho. Um tal drama colectivo, um tão doloroso impasse da história e um tão fundo sofrimento humano alguma causa hão-de ter, algum deus terão como culpado, algum vilão como agente. Era aqui o momento de os apontar com clareza, ou sequer de os sugerir, para elucidação geral. E isso não é feito.
6. Há um momento, escasso, a páginas 188, em que parece que o abcesso vai ser lancetado, sem o ser:
Estacionamos no princípio do cais e os contentores perdem-se de vista ao longo da margem do rio. O sr. Belchior diz que os contentores são as sobras do império, não deixa de ter piada que estejam a apodrecer no mesmo sítio de onde o império começou, alguma coisa isto quer dizer, alguma coisa devemos aprender com isto, tudo na vida tem os seus porquês.
Seria pedir demais, uma vez que aos portugueses sempre repugnou a crueza da história, quando a realidade lhes foi tantas vezes excessiva.
A atestá-lo vem a citação, com que a autora encerra o seu trabalho:

Las cosas que se mueren
No se deben tocar.

(Dulce María Loynaz)

Neste caso é mentira e grande pena!

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Madona em mausoléu

Na estrada a tabuleta anuncia o Solar dos Brasis, na aldeia chamam-lhe a Casa das Fidalgas. Não sei quem tem razão. Eu fui lá muitas vezes, atraído pela gala das talhas, pela febre das cores a gritar nas madeiras, e a simetria misteriosa das janelas, a fingir horizontes pintados nas paredes. E acabei feito pagão, morto de amores por uma pujante madona de terracota, que escondia promessas carnais num manto azul a esvoaçar. Cheguei a congeminar o caviloso plano de raptar a madona numa noite de inverno.
Nesse tempo era vivo o Gastão, um caseiro que habitava os anexos e olhava pelo conjunto. Fazia bonecos de madeira a canivete, e flautas de cana que vendia aos passantes. Era naquilo tudo a única coisa viva, e queixava-se do IPPAR e das águas no telhado, dos roubos das imagens e da segurança escassa. Levava-me às palmeiras do passal, à mãe-de-água de pedra à beira do ribeiro, numas terras que o fidalgo arrematou, à vinda do Brasil. Tinham sido confiscadas a um marrano qualquer, pela Santa Inquisição.
Subíamos depois ao belvedere e mostrava-me o salão de honra, nos altos do torreão. Pendiam do tecto caixotões de santos, a ameaçar ruína, alguns a desabar por causa das humidades. Finalmente levava-me à capela, onde a santa, à minha frente, se desfraldava num pedestal.
Depois contava-me a história. Que D. Luís se foi ao Brasil, ao ouro, no tempo dele. Que era capitão da armada real, e provedor dos quintos de el-rei em Vila Rica de Ouro Preto, nas minas de Sabará.
- O muito e o pouco passava-lhe pela mão! Era de el-rei, mas quem parte e reparte... - sugeria o Gastão, sem avançar.
- D. Luís tinha em casa uma escrava da Mina, por quem se apaixonou. E trouxe, no regresso a Lisboa, a mulatinha Angélica, que vemos nestes quadros. "Mercê que fez Nossa Senhora, no Instituidor, vendo-se em perigo de morte no sertão do Brasil, em jornada de 900 légoas às Minas do Ouro". E lá estava um dragão pintalgado, a soprar fogo ao fidalgo em terror. "Milagre que fez Nosso Senhor... no mar da Bahía...". E era um barco a adornar, a vela já perdida, o fidalgo no convés a amparar a mulatinha.
- D. Luís era de Santa Marta de Penaguião. E ao ver-se em aflição, prometeu erguer à Senhora da Penha de França esta capela. Ao lado do solar, e dum convento franciscano que não chegou a existir. Onde o meu cavalo parar, aí o santuário hei-de levantar! O cavalo é que escolheu este lugar! - concluía o Gastão.
Mostrava-me depois, num livro dum letrado, que o fidalgo tomara ordens sacras ao fazer sessenta anos, que a mulatinha morreu sem descendência no ano em que assaltaram a Bastilha, e que o Solar dos Brasis é testemunho da boa aplicação em Portugal do ouro de Sabará. Eu sempre vi neste lugar apenas mais um túmulo, entre muitos, onde embalsamaram Portugal. Mas nunca cheguei a dizê-lo ao Gastão.
Não sei se os caixotões acabaram por cair, ou se a madona continua lá, a voar no pedestal. Quando há dias voltei ao Solar dos Brasis o Gastão tinha acabado de morrer. E o IPPAR pôs um telhado novo nos altos do torreão, e trancou as portas e as janelas com grades de ferro chumbadas na ombreira.
Fica-me a pena de não ter assaltado a madona, numa noite de inverno. Mas ainda bem que o Gastão foi embora, sem saber a verdade.