1. Nisto da literatura é como em tudo, nos tempos nefastos que aí andam. Se o leitor baixa a guarda, afrouxa a exigência crítica, e se entrega desarmado a publicistas, agentes da opinião literária e editores que oficiam ao mercado, o mais certo é acabar depenado, a acumular a um canto genialidades inúteis, que nunca passam da página vinte.
2. Confessa este leitor o seu parti-pris pelas obras indígenas, as únicas que ousa ler no original. Por causa da desgraça da tradução.
[Na messe que enlourece estremece a quermesse
O sol celestial girassol esmorece
E as cantilenas de serenos sons amenos
Fogem fluindo à fina flor dos fenos.
Claro que na poesia o caso é ainda mais grave. Imagina-se isto traduzido sem perdas fatais?!]
Ele há traduções boas e más. Em todo o caso há sempre uma harmonia, uma toada melódica, um jogo de sonoridades, um ritmo qualquer que se perdeu, na transição da língua.
3. E, olhando em volta, estava este leitor a pontos de encomendar um requiem pela literatura indígena que asila aí pelos escaparates, quando lhe caiu nas mãos O Retorno, de Dulce Maria Cardoso. Ficou tão emocionado que leu o livrinho duas vezes, e andou dois meses sem palavras para o dizer: a encomenda do requiem era precipitada.
4. O livrinho, da Tinta da China, é um objecto fisicamente irrepreensível, daqueles que dá gosto manusear. E tem lá dentro um exercício de muita inteligência e grande encantamento.
O tema é o regresso das caravelas, em 1975, quando os fogos de santelmo do império finalmente se extinguiram. E o assunto é o último dia duma família de colonos em Luanda, e os dolorosos meses que se seguiram num hotel de cinco estrelas do Estoril.
Andam por aí dezenas de trabalhos espúrios sobre o drama dos retornados, o furor cego que os possuiu, e as lamentações da vida que perderam e por lá ficou, por culpa duns traidores ou duns cobardes míticos. Até aparecer este Retorno (frágil título!) que põe o dedo no sangue da ferida e iguala na mesma tragédia os portugueses de África e os da metrópole.
Nenhum outro mostra, como este, a violência que viveram uns e outros. Os de cá não escondem o que pensam dos de lá. E os de lá, com discutíveis razões, não se coíbem de dizer o que pensam dos de cá.
Eleger como narrador um miúdo de 15 anos, num registo narrativo perfeitamente adequado à sua condição, é uma das chaves do sucesso deste romance. Porque ele não se sujeita ao discurso politicamente correcto, nem é tolhido por preconceitos de adultos, nem teme os estigmas dum discurso racista. Limita-se a dar voz a um mundo que é o seu.
Ler e reler este livro é uma emoção de grande utilidade. Porém este facto traz ao leitor a ideia de que o mesmo não terá grande futuro. Aos portugueses interessam pouco as realidades da história.
5. Mas não há rosa que não tenha o seu espinho. Um tal drama colectivo, um tão doloroso impasse da história e um tão fundo sofrimento humano alguma causa hão-de ter, algum deus terão como culpado, algum vilão como agente. Era aqui o momento de os apontar com clareza, ou sequer de os sugerir, para elucidação geral. E isso não é feito.
6. Há um momento, escasso, a páginas 188, em que parece que o abcesso vai ser lancetado, sem o ser:
“Estacionamos no princípio do cais e os contentores perdem-se de vista ao longo da margem do rio. O sr. Belchior diz que os contentores são as sobras do império, não deixa de ter piada que estejam a apodrecer no mesmo sítio de onde o império começou, alguma coisa isto quer dizer, alguma coisa devemos aprender com isto, tudo na vida tem os seus porquês.”
Seria pedir demais, uma vez que aos portugueses sempre repugnou a crueza da história, quando a realidade lhes foi tantas vezes excessiva.
A atestá-lo vem a citação, com que a autora encerra o seu trabalho:
Las cosas que se mueren
No se deben tocar.
(Dulce María Loynaz)
Neste caso é mentira e grande pena!