segunda-feira, 31 de março de 2014

Vidas 7

De Maccarty, em Belém
Para Q. no Campo Grande
3 de Novembro

Cheguei anteontem de manhã à barra. Sentimos um grande choque e pensámos que o barco tinha batido no fundo. (...) Uma meia hora depois sentimos novo choque, ao mesmo tempo que o barco foi atirado pelas altas ondas quase até às nuvens. Há 34 anos que ando no mar, já afrontei muito mau tempo e muitos perigos, e perdi mesmo 5 navios. Mas nunca vi ondas tão altas e mar tão bravio como este. (...)
Estive na casa do vice-cônsul inglês, que me disse ter ouvido dizer que o senhor está vivo, mas não sabia onde se encontra. (...) Eu concordo que o portador desta carta é caro acima de todas as medidas; mas estou contente por ter encontrado alguém disposto a levar-lha. (...)

domingo, 30 de março de 2014

Vidas 6

De Brey, em Lisboa
Para Q. no Campo Grande
2 de Novembro

Quando ontem me vestia, ouvi um forte ruído que me assustou; pensei que o nosso armazém, cheio de produtos, ia desabar. Achei estranho quando vi as cadeiras, mesas e espelhos moverem-se (...). Sei que me arrastei por um buraco para chegar à rua, a qual me pareceu desconhecida, de tal modo que não sabia onde estava. (...)
Dali vi a margem do rio, para onde muita gente se dirigia. No caminho vi muitos mortos e miseráveis. Fiquei estupefacto quando, antes de chegar, vi o barco e a água serem atirados ao ar e caírem novamente. (...) Entretanto o povo juntava-se no Terreiro do Paço, onde um contava o seu destino, outro se lamentava, gemia e uivava. (...) Passadas duas horas o fogo tinha rompido em muitos lugares da cidade. Quando chegou perto da sua casa (o velho Gens) viu a filha Doroteia enterrada até ao pescoço. O velho ficou calado na minha frente, olhou para a filha, e como não podia ajudá-la corriam-lhe as lágrimas pelas faces. Finalmente, como o fogo se aproximava cada vez mais, foi ele comigo para o Terreiro do Paço, onde a restante família se encontrava com os bens que conseguira salvar.
Quando veio a noite, era uma visão terrível, pois parecia que estávamos no meio do fogo. E quando às 9 horas a alfândega e o palácio do rei pegaram fogo, voavam as faúlhas sobre o Terreiro do Paço como se nevasse. (...)
Não podíamos ir para a cidade por causa do fogo intenso, e também não para a margem do rio, com medo de que continuasse a afundar-se, como já tinha acontecido a uma grande parte. (...) Com este barco irei até Marvila, e depois pelo campo até sua casa. (...)

sábado, 29 de março de 2014

Feiras

Novas

W. A. Mozart

A La Turca!

G. F. Händel

Sarabande

A. Corelli

La Follia.

Há cem anos... 5

«(...) Enquanto os olhos do mundo se fixavam em Genebra, onde prosseguiam os debates intermináveis (que falavam de paz e desarmamento), poucos percebiam que, de 1925 em diante, os delegados da indústria pesada francesa e alemã se encontravam regularmente, ora em Paris, ora em Berlim. Tanto a indústria metalúrgica alemã como a francesa sofriam grandes prejuízos em consequência da suspensão dos contratos de armamento, e em desespero buscavam meios de dar um novo impulso aos negócios. Isto não se podia fazer sem uma colaboração íntima. Em Maio de 1925 Arnold Rechberg, consultor dos trusts de Hugenberg e Thyssen para as relações públicas, veio a Paris propor o equipamento pela França de um exército alemão de 800 mil homens, que devia marchar sobre a Rússia e destruir o regime bolchevista. O marechal Foch e o presidente Poincaré receberam o emissário alemão em companhia de Robert Pinaud e Charles Laurent, directores do Comité des Forges, o trust francês do aço.
Ao cabo de vários dias de negociações, François Coty anunciou triunfante no seu jornal, Figaro, que Poincaré tinha aprovado um plano para estabelecer o condomínio franco-alemão sobre o vasto mercado russo. (...) O plano foi inutilizado por Lloyd George, que temia a extensão da influência francesa na Europa. Mas já se havia estabelecido o contacto entre os fabricantes de canhões franceses e alemães. Nunca mais ele foi rompido. A indústria francesa consentiu no rearmamento da Alemanha já em 1925, como único meio de estimular o mercado interno francês. (...)
Paul Faure revelou no parlamento francês que Schneider-Creusot, o gigantesco trust francês de canhões, estava a fornecer fundos ao nascente partido nazi de Adolfo Hitler, e que Skoda, o trust checoslovaco de armamentos, abastecia a Alemanha de artilharia, pólvora e munições a crédito. 
Por que razão iria Hitler receber dinheiro francês, checoslovaco e inglês? A resposta é simples, basta ler o livro do Führer, Mein Kampf. O chefe do partido em ascensão anunciava que o seu primeiro empenho, ao conquistar o poder, seria o de rearmar o Reich. (...) As fábricas de armamentos em toda a Europa andavam ao léu, os dividendos evaporavam-se, as cotações da bolsa baixavam cada vez mais. E não se avistava no horizonte uma só nuvem que desse algum impulso à mortífera indústria das armas. Não seria um favor do céu, se Hitler alcançasse o poder e tornasse a Alemanha novamente perigosa?»
[Estes Dias Tumultuosos, Pierre van Paassen, Lx 1946]

(Entre ontem e hoje, só o voo das moscas é que mudou!)

O último maçaricão-esquimó 25

(Cont.)
8
             A chegada da fêmea foi um ponto culminante estranhamente desdramatizado, depois de uma vida de eterna espera. O maçaricão estava no meio de algumas tarambolas, junto à água, e procurava alimento. De repente a fêmea estava ali! Tinha poisado a menos de um metro de distância, e ele podia observar-lhe cada pena da plumagem. Chegara com mais nove tarambolas. Silenciosamente tinham-se deixado planar sem que ninguém as notasse, salvo uma tarambola que se mantinha alerta às aves de rapina, enquanto as outras comiam. A fêmea fechou vagarosamente as asas, num movimento mais gracioso que o das companheiras. E voltou para ele o longo bico recurvado.
            Ela pulou então sobre as altas pernas esverdeadas, e saiu-lhe da garganta um gorjeio suave. Ele pôs-se também aos pulos e respondeu baixinho.
            Reconheceram-se sem reflectir, num súbito processo intuitivo. O macho sabia que se tinha enganado muitas vezes, sabia que os maçaricões-norte-americanos, confusamente parecidos, passavam o Inverno muito mais a Norte, no mar das Caraíbas. Aqui, no Sul profundo, ele só encontraria maçaricões da sua espécie. Este era mais pequeno do que os outros, e de um castanho mais claro, tal como ele próprio. Na verdade, os seus pensamentos eram fugidios e informes. Mas a voz, a atitude, os movimentos da outra ave, mais do que o seu aspecto, disseram-lhe imediatamente que a sua fêmea chegara.
            Nunca tinha visto um companheiro da espécie, e a fêmea provavelmente também não. Ambos tinham procurado, na América do Norte e do Sul, sem saberem exactamente o quê. Mas, logo que o acaso os juntou, o instinto velho de gerações permitiu-lhes reconhecerem-se sem qualquer hesitação, uma vez que o maçaricão tinha sido uma das aves mais difundidas em toda a América.
            Durante um minuto ficaram ali imóveis, espreitando-se e saltitando. O macho estava excitado de contentamento. Finalmente podia calar o seu desejo da fêmea, que durante a vida inteira fora surgindo e desaparecendo, sem nunca ter sido satisfeito. Um pequeno caracol rastejava à sua frente, na água baixa. O maçaricão partiu-lhe a casca com uma bicada, mas não o comeu. Com o pescoço esticado e a plumagem tufada pavoneava-se em frente da fêmea. Constrangido e algo desajeitado, chegou-se junto dela e ofereceu-lho. A fêmea, com as asas um pouco abertas e todo o corpo a tremer, aproximou-se dele. Picou o caracol e engoliu-o de imediato.
            O macho alimentou a fêmea, apresentou-se como companheiro e a fêmea aceitou-o. E assim começou o jogo nupcial. Nenhum deles mostrara qualquer excitação exterior, qualquer alegria exibicionista. O macho deu o caracol à fêmea, esta recebeu-o, o casamento estava selado.
(Cont.)

sexta-feira, 28 de março de 2014

Há cem anos... 4

«(...) Parece-me estar vendo a cena da chegada de Brüning, na Gare du Nord. Era a primeira vez que um estadista alemão pisava as calçadas da capital francesa, depois da humilhação de Versalhes. A estação estava negra de povo, todos ávidos de ver a delegação alemã. (...) Subitamente rompe o grito: Vive l'Alemagne! Vive la paix! Vive la fraternité humaine! (...) O chanceler alemão, de todo surpreendido, retribuíra gravemente a saudação. Vi os olhos de Brüning marejarem-se de lágrimas. (...)
Ante a iminência de uma catástrofe geral no Reich, de um desastre económico e financeiro de terrível gravidade, o chanceler de um dos primeiros estados europeus tinha vindo pleitear a causa do Reich com Mr. Pierre Laval. "Foi um acto de desespero, talvez leviano, completamente inesperado, e contudo um acto de coragem e de grandeza" - como disse na ocasião Jean Richard Bloch, no Europe. O povo tinha os mesmos sentimentos, e o instinto das massas raramente se engana. (...)
O chanceler expôs as suas ideias e instou durante duas horas com o ministro dos negócios estrangeiros. Quando viu que não lograva abrandar o coração do francês, caiu de joelhos. Falou da miséria do seu país, da juventude alemã desiludida, do negro desespero da situação, se a França não aliviasse a sua vizinha de alguns dos fardos impostos em Versalhes. Preveniu Laval contra uma derrocada económica, que podia, pelas suas repercussões, arrastar outros países, inclusive a própria França, para um sorvedouro caótico. Mencionou as "forças sinistras" que se preparavam para se arrojar sobre a Alemanha, se ele, Brüning, falhasse. (...)
Laval negou-se a estender a mínima palha de salvação. (...)»
[Estes Dias Tumultuosos, Pierre van Paassen, Lx 1946]

terça-feira, 18 de março de 2014

O último maçaricão-esquimó 24

(Cont.)
        Janeiro chegara. E a longínqua tundra canadiana, a catorze mil e quinhentos quilómetros de distância, seria ainda durante alguns meses a adormecida terra fria das tempestades de neve e das noites sem fim. Mas o maçaricão sentia já o chamamento do Árctico, uma suave emoção interior, um pequeno sinal. As suas gónadas em breve começariam a produzir hormonas, um novo ciclo anual aproximava-se. A princípio era quase imperceptível, mas o processo foi-se tornando lentamente mais forte. Era um sentimento que se distinguia do impulso migratório do Outono. Partir para o Sul tinha sido uma vaga impaciência, sem fim definido. Mas agora só o objectivo contava. A migração era um fenómeno acidental e acessório. O que ele sentia era essencialmente a ânsia, a saudade de casa. Conhecia perfeitamente o destino, não só o Árctico e a tundra, mas o amontoado de cascalho, à beira da curva do rio. Aí havia de chegar também a fêmea, aí havia de ser o ninho.
            E o maçaricão pôs-se a caminho de casa. Seguia de charco em charco, e não fazia grandes trajectos. A indecisão tinha passado. Voava sempre para Norte. Também as outras narcejas sentiam o mesmo, estavam sempre em movimento. O número e a espécie das aves nos charcos mudava de hora a hora. Uma semana depois o maçaricão encontrava-se trezentos quilómetros mais a Norte.


O CORREDOR DA MORTE

            Em anexo ao relatório anual do Instituto Smithsoniano, deve acrescentar-se algo sobre determinadas descobertas científicas. As participações vêm de colaboradores da casa...
            O maçaricão-esquimó e o seu desaparecimento (reedição, revista pelo autor, Myron H. Swenk, dos debates da Sociedade Ornitológica do Nebraska, de 27 de Fevereiro de 1915).           
            Todos os ornitólogos informados concordam entretanto que o maçaricão-esquimó (Numenius borealis) está ameaçado de extinção. Muitos acreditam mesmo que as poucas aves que ainda existem não são suficientes para a renovação dos efectivos. Consideram-no como uma espécie que pertence praticamente ao passado. Se partirmos de situações análogas, parece legítimo este pessimismo. Talvez a história do maçaricão-esquimó, parecida com a do pombo-torcaz, constitua mais uma daquelas tragédias ornitológicas que sucederam na segunda metade do séc. XIX. Devido aos abates incontrolados e irracionais, reduziram-se os efectivos norte-americanos de aves. Várias espécies largamente difundidas, como se vê pelos gigantescos bandos, foram quase ou totalmente aniquiladas...
             A comissão de defesa das aves submete à reunião ordinária de membros da Liga Ornitológica Americana os resultados da sua pesquisa no ano de 1939, relativos à destruição, ou antes, à conservação do mundo ornitológico nacional...
            Mas particularmente ameaçados estão, sem dúvida, o condor californiano, o maçaricão-esquimó e o bico-de-marfim. Os efectivos reduziram-se tão drásticamente que os indivíduos sobreviventes se mantêm separados uns dos outros. Facto que, por sua vez, põe em causa a reprodução...

Vidas 5

De Swyn, no Tejo, no barco holandês Neptuno
Para Q. no Campo Grande
2 de Novembro

Ontem de manhã estava eu a dormir profundamente, pois na noite anterior não tinha pregado olho com as dores da gota, quando, de súbito, fiquei tão assustado com os abalos da minha cama e com a queda dos quadros, que saltei logo da cama. de tal modo que não senti mais dores, com um pânico tão grande. (...) 
Mas não sabia para onde devia fugir. Finalmente vi a margem do rio; e como havia lá muita gente, corri para lá. (...) O mestre do barco partiu e levou-nos para bordo do Neptuno. Quando eu lhe disse para quem trabalhava, ele deixou-nos subir.
Mal tinha entrado a bordo, veio um tão forte abalo que parecia que o barco ia sumir-se no abismo. O barco foi atirado ao ar, tão alto como uma torre. (...) Não víamos mais ninguém na margem, mas notámos que um espaço de 100 por 50 passos se tinha afundado, no que terão perdido a vida muitas pessoas. (...)
À noite, o fogo na cidade era horrível de ver. E às 9 horas, quando a alfândega e o palácio real se incendiaram, parecia chover fogo, ou parecia nevar faúlhas incandescentes. (...) Agora estamos aqui e vemos a miséria da cidade, toda em fogo. No barco há mais de 100 pessoas. (...)

Há cem anos... 3

(...) A Alemanha baseara todos os seus cálculos numa guerra fulminante e numa vitória rápida. Ao princípio, a sua provisão de material bélico mal bastava para sustentá-la durante um ano de campanha, nas duas frentes. Os Aliados, por conseguinte, poderiam ter obrigado o Kaiser a capitular antes dos fins de 1915, estabelecendo o bloqueio económico. Mas isso importava abrir mão dos mais gordos proventos da guerra: os que trazia o comércio de contrabando. 
Durante os três primeiros anos da guerra, o Reich recebeu sem cessar fornecimentos através da Holanda, Suíça e dos países escandinavos, em especial de algodão, sem o qual não poderia lutar um só dia mais. Isto prolongou-se até surgir o protesto indignado dos Estados-Unidos: a Inglaterra, o maior inimigo da Alemanha, estava-lhes roubando o mercado europeu.
O capitalismo alemão tão pouco se havia esquecido do seu bolso: até ao começo de 1917, as Fundições Krupp de Essen enviavam mensalmente 250 mil toneladas de aço ao Comité des Forges da França, através da Suíça. Além do pagamento em ouro, uma das cláusulas dessa transacção era que os aviadores franceses deviam abster-se de bombardear as minas, os altos-fornos e as fábricas de preparação metalúrgica de Longwy, ocupadas pelos alemães desde o começo da guerra.
Carregamentos de níquel vindos da Caledónia com destino à Alemanha, apreendidos por destroyers franceses no alto mar e trazidos para os portos de Brest e Cherburgo, foram mandados restituir pelo governo francês e alcançaram Bremen, sem mais incidentes. Representantes do trust de indústrias químicas alemãs, das fábricas de cobre suíças, de Vickers, Krupp, Schneider-Creusot e do Comité des Forges reuniram-se em Viena, no momento em que os exércitos se engalfinhavam numa luta de morte na lama da Flandres. O seu propósito único era o de inventar meios e modos de fazer com que a guerra seguisse lucrativamente o seu curso. "On croyait mourir pour la Patrie, on mourait pour les industriels", disse Anatole France (...).
Graças ao minério francês pôde a Alemanha, durante 4 anos, inundar o Oriente e o Ocidente por terra e por mar, com rios de aço. Em troca dos magnetos para motores de avião, enviados pela Alemanha, a França mandava bauxite, ingrediente indispensável na manufactura de alumínio para zeppelins. O terrível arame farpado que os ingleses estenderam em Ypres e no Somme, e que foi uma armadilha mortal para a guarda prussiana, era fabricado pelos Drahtwerke de Opel & Cia, e chegavam à Inglaterra pelo caminho da Holanda. (...)
Os Aliados estavam mais decididos que nunca a conquistar a vitória sem ferir os interesses das classes dirigentes. Por outro lado as greves cresciam de número, e os camponeses, que tinham outrora ateado fogo aos castelos, começavam a agitar-se. Alarmado, o governo francês propôs substituir os homens empregados nas fábricas de munições por operários importados da América. (...)
[Estes Dias Tumultuosos, Pierre van Paassen, 1946]

Há cem anos... 2

(...) Em Dezembro de 1917 os operários metalúrgicos cruzaram os braços e fizeram uma manifestação nos boulevards. Os filhos dos communards tinham reconhecido a inutilidade do banho de sangue para onde os empurrara a classe governante. A acerba desilusão com "os milhões de vidas sacrificadas por nada fez recair a cólera dos responsáveis morais pela hecatombe, sobre aqueles que a tinham previsto". Os censores redobraram de esforços para obstar a que o povo conhecesse toda a extensão do horror. Nas cidades, clamorosos cartazes advertiam toda a gente contra as intrigas sinistras dos pacifistas, dos agentes inimigos, do ouro estrangeiro, e também contra os emissários da extinta Internacional do Trabalho. Impunha-se silêncio às multidões. Lutem calados! Não raciocinem, matem! (...) Organizaram-se fábricas de mentiras, e elas levaram as universidades no arrastão. Sábios e intelectuais, escritores e homens de púlpito, todas aqueles que deviam amar a verdade pela própria verdade, puseram-se a uivar em uníssono com a matilha. Os homens abriam mão das suas convicções tão facilmente como das suas vidas.O livre exame, a independência de juízo, a piedade humana - tudo isto foi dobrado e guardado com naftalina para quando acabasse a guerra. Aboliu-se a crítica, proscreveu-se a consciência. O cristianismo repudiou o seu próprio nome, perfilhando Marte. (...)
[Estes Dias Tumultuosos, Pierre van Paassen, 1946]

segunda-feira, 17 de março de 2014

Há cem anos... a mesma traição das elites - 1

(...) Os poilus franceses começaram a debater entre si a volta para os seus lares, antes que a guerra à outrance de Clemenceau atingisse a sua horrenda plenitude. Na primavera de 1918, André Maginot reconheceu, em sessão secreta da Câmara, que entre a cidade de Paris e a linha de combate só restava uma divisão em que o governo podia depositar absoluta confiança. A bandeira vermelha fora içada sobre a refinaria de açúcar em ruínas de Souchez. Um regimento alemão respondeu a isto entoando a Marselhesa e atravessando a terra de ninguém para confraternizar com os inimigos. De uma trincheira à outra atiravam-se cartas, trocavam-se mensagens. Tornou-se necessário proibir às tropas britânicas toda a conversação com os prisioneiros alemães. A imprensa truncava as listas de baixas. Foi preciso transferir divisões a fim de romper contactos secretos com o inimigo.
Morriam ainda diariamente dezenas de milhares de homens. Mas nos castelos, longe da explosão das granadas, e protegidos contra as incursões aéreas por um ajuste com o comando supremo alemão, em que cada parte se comprometia a não bombardear o quartel-general inimigo, os generais e políticos aliados continuavam a contender entre si sobre pontos de precedência e prestígio. Joffre, que sugerira que se internasse Foch num asilo para mulheres velhas, foi por seu turno desbancado por Nivelle. Pétain ocupou o posto por algum tempo, até que Castelnau veio substituí-lo. O desacordo entre os homens dos galões de ouro ameaçava prolongar a guerra indefinidamente. Um rumor subterrâneo de descontentamento alastrava pelo exército. Rebentaram revoltas. De uma vez estiveram envolvidos oitenta e sete regimentos franceses, de outra cento e quinze. Os conselhos de guerra funcionavam noite e dia. Por um simples murmúrio de desagrado dizimava-se uma companhia inteira. Enviavam-se divisões propositadamente para a linha de combate para serem chacinadas, esmagando-se assim o espírito de derrotismo. (...)
[Estes Dias Tumultuosos, Pierre van Paassen, Livros do Brasil, Lisboa 1946]

domingo, 16 de março de 2014

O último maçaricão-esquimó 23

(Cont.)
          Assim foram avançando para Sul. Quando o sol quente de Dezembro secou os cardos, e a erva das Pampas ficou da cor da prata devido à quantidade de flores que baloiçavam, ligeiras, ao vento, eles encontravam-se já nas planuras ondulantes da Patagónia, a uma noite de voo dos mares da Antárctida. Com uma força hercúlea, o instinto migratório tinha-os empurrado desde o longínquo Norte até ao lugar mais a Sul do continente americano. E também aqui havia grandes bandos de narcejas. De todos os animais da terra, só a andorinha-do-mar-árctica, voando distâncias semelhantes, pode contemplar tanta luz e tanto sol como as narcejas. Ano após ano, elas correm acima e abaixo, entre as terras do sol da meia-noite, quase de polo a polo.
            Durante cinco meses um impulso insaciável tinha espicaçado o maçaricão e as tarambolas. Temporariamente enfraquecera, sem nunca ter desaparecido. Mas agora morria. Uma estranha letargia apoderava-se das tarambolas. Bastava-lhes alternar entre duas lagoas salgadas. Comiam, devaneavam, flanavam sem gosto por ali, como actores que se haviam esquecido do texto e esperavam por uma deixa, por um impulso instintivo que lhes dissesse o que fazer.
            O próprio maçaricão estava livre da pressão do impulso migratório. E no entanto atormentava-o um desassossego, uma antiga e indizível fome, uma velha solidão. Ocorreu-lhe de súbito que estava sozinho, num mundo onde não tinha companheiros de espécie. Tentou levar as tarambolas a continuar a migração, mas elas não o seguiram. Finalmente não pôde mais controlar a inquietação. Elevou-se no ar e alargou os seus círculos sobre a lagoa onde as tarambolas esgaravatavam alimento. Chamou-as repetidamente em altos gritos, mas elas não responderam. Então o maçaricão tomou a direcção do Leste, lá onde estava o mar, bem o sabia, à distância de muitas horas de voo. Estava de novo em viagem, e sozinho.
            Na Patagónia não havia solo fértil, como nas Pampas. O terreno era composto sobretudo de saibro e de cascalho, misturado com rochas vulcânicas de pontas aguçadas. A vegetação era diminuta, e o sol mordente do Verão tingira de castanho as escassas manchas de capim e de cardos. As tarambolas abandonaram esta região inóspita e voaram para Leste, à procura dos charcos da costa, mais frescos e cheios de alimento.
            Aqui verifica-se um dos maiores desníveis de maré do mundo, e por isso, na maré baixa, quilómetros de solo ficam a descoberto. Duas vezes por dia o mar arroja para terra todo o tipo de despojos. Alimento nunca falta, e enormes bandos procuram estes baixios. A maior parte são tarambolas-douradas, mas também há pernas-amarelas, com os seus torsos luminosamente claros. As galinholas e os pequenos pilritos evitam, pressurosos, a rebentação, como se tivessem medo de molhar os pés.
            O maçaricão vagueava de bando para bando, procurava incansavelmente, sem saber exactamente o quê. Com o seu longo bico encurvado e a grande envergadura de asas, sobressaía claramente entre os muitos milhares de pequenas narcejas.
(Cont.)

Vidas 4

De Pott, na Póvoa
Para Q. no Campo Grande
1 de Novembro

Diverti-me na caça, e nada notei de especial, a não ser que o meu cavalo de repente se espantou. Ficou parado, e quando lhe dei esporas deu um grande salto. A cadela Diana uivava e ladrava muito, e os outros três cães estenderam-se no chão. Eu chamei-os, eles vieram e correram à minha volta como de costume. (...) Tudo era ainda para mim um enigma quando cheguei à ponte de Odivelas e vi que tinha caído. Quis atravessar a vau onde normalmente há 2 pés de água, mas agora havia 8 pés. Quando vi as casas da Póvoa fiquei estupefacto e admirei-me muito de que estivessem caídas. (...)
Dizem-me que houve um terramoto mas não se sabe em que região, nem se foi na cidade. (...) Uma vez que estou muito intranquilo, mando-lhe este camponês com 2 coelhos e 7 perdizes. (...) Tentarei estar amanhã de manhã junto de si. (...)

sexta-feira, 14 de março de 2014

O último maçaricão-esquimó 22

7
            As tarambolas-douradas e o maçaricão-esquimó ficaram duas semanas no Orinoco e depressa voltaram a engordar. Milhares de outras narcejas povoavam as pradarias, tarambolas que também tinham feito a longa viagem sobre o oceano, e ainda uma dúzia de outras espécies que tinham voado sobre terra, através das planícies da América do Norte e do istmo do Panamá. Aqui encontravam-se de novo, nos Llanos da Venezuela. Também havia esplêndidas aves dos trópicos, que nidificavam nesta altura e alimentavam zelosamente os filhos. Os ninhos das garças-brancas cobriam largas superfícies dos pântanos, junto ao rio, e as garças eram tantas que se empurravam umas às outras. A íbis vermelha, jóia das aves tropicais, voava em bandos ao longo das margens, procurando alimento. De início, quando as íbis se aproximavam, pareciam sombras cinzentas; ao passarem perto, inflamava-se-lhes a plumagem vermelha; quando se afastavam, a cor desvanecia-se novamente.
            Havia comida em abundância e muitas das narcejas árcticas deixavam-se ficar por aqui. Mas o maçaricão e as tarambolas, após duas semanas em que comeram e acumularam gordura, voltaram a sentir o velho impulso que as empurrava para Sul. As outras tarambolas já tinham partido. Tal como no Lavrador, o bando do maçaricão foi o último a largar.
            No princípio de Outubro, numa noite clara de luar, levantaram voo e seguiram um vale afluente do Orinoco, até ele se perder nas montanhas que separam as bacias hidrográficas do Orinoco e do Amazonas. Então desceram um pouco e sobrevoaram o vale de um afluente do Amazonas. Seguiram a estreita fita de água para Sul, e tinham atingido o poderoso rio quando a manhã chegou. Deste lado do equador, os ventos alísios sopram de Noroeste para Sueste. Para ter vento de lado, o bando seguiu, durante a noite, a direcção de Sudoeste, em vez de se dirigir directamente para Sul. Voaram 800 quilómetros, e ao romper do dia tinham à vista os Andes peruanos, com os seus cumes cobertos de neve. Na orla sul da zona dos alísios o vento soprava de Leste, e nas três noites seguintes dirigiram-se para Sueste. À quinta manhã as aves estavam de novo magras e cansadas. Poisaram nas Pampas argentinas, quatro mil quilómetros a sul dos Llanos da Venezuela.
            A Primavera tornara verdes o capim e os cardos gigantes, e havia gafanhotos aos enxames. As aves comeram durante todo o dia, alimentando-se dos insectos nas ervas rasteiras. Por vezes procuravam zonas mais fundas, onde o chão era pantanoso e o capim crescia mais forte. Aqui viviam insectos aquáticos, que enriqueciam a alimentação, tornando-a variada. E elas prosseguiam caminho frequentemente, sem nunca fazerem longas etapas. Tinham perdido as rémiges maltratadas, as quais deram lugar a outras novas. E em breve as asas ganharam de novo a sua antiga força.
            Estavam agora a treze mil quilómetros de distância dos locais de nidificação no Árctico. Para além delas, só os pernas-amarelas, pilritos-dos-prados e muito poucas aves tinham empreendido tão longa viagem. No entanto o impulso migratório continuava a empurrar o maçaricão e as tarambolas para Sul. Nas noites claras, quando fortes ventos de Oeste varriam as Pampas, criando boas condições de voo com vento lateral, o bando atacava de novo os ares. Horas depois estavam duzentos ou trezentos quilómetros mais a Sul, e por um momento acalmava a sua inquietação. O maçaricão conduziu o seu bando até ao cimo de uma colina enluarada. As tarambolas seguiram-no e esperaram aqui pela manhã.
(Cont.)

Vidas 3

De Busch, no Campo Grande
Para Nath, em Lisboa
1 de Novembro

Se o senhor tivesse visto as cenas que eu vi, e experimentado os mesmos sentimentos e emoções, desde que o deixei (no Rossio), ficaria admirado por eu ainda aqui estar vivo. Mal me tinha afastado vinte passos, deparei com a nossa antiga governanta, que há cerca de dez meses casou em TREVES, caída no meio da rua. Tinha apenas vestida uma camisa, mais vermelha de sangue do que branca. Tinha a cabeça ferida e os seios machucados. Como não se mexia, julguei-a morta. Entretanto vi a criança meio nascida, a mexer a cabeça e os braços. (...)
Aí reconheci a voz do velho Cloe e das suas duas filhas. (...) Havia outras pessoas na mesma rua que poderiam ajudar estes infelizes, mas todos tentavam sair rapidamente da cidade, e não queriam parar para salvar os que estavam soterrados. Como, para mim sozinho, seria um trabalho impossível e vão, continuei. No caminho encontrei o nosso empregado português Pinto, que estava nu, e apenas trazia um avental de mulher. (...) Chamei-o mas não me respondeu, parecia louco e fora de si. Pegou numa pedra e começou a bater no peito. Deixei-o ficar e afastei-me, porque temi que ele me desse também com a pedra.
O convento de Sta Ana estava todo no chão. Ouvi a voz de uma dama portuguesa, da qual apenas se via a cabeça, o resto do corpo estava enterrado nas pedras. Como vinham lá três portugueses fortes, pensei que eles podiam ajudá-la. (...) Ouvi outra gritaria, e quando voltei a ela vi que tinha as orelhas rasgadas, e que eles lhe tinham roubado os brincos. (...)
Quando saí da cidade (...) notei que muitas pessoas formavam um círculo, entre as quais meia dúzia de padres ou monges. Ao aproximar-me, vi o sr. ____ sentado no chão. Estava tão perturbado que não me reconheceu. Os padres estavam ocupados em baptizá-lo e em dar-lhe os santos óleos. E pouco lhes custou convencê-lo a mudar de religião, pois tinha perdido a razão, e a cada momento parecia desfalecer. Fui embora e não consegui dizer nada, nem levar o jovem comigo, pois temia o fanatismo dos religiosos, e penso que me teriam apedrejado (...).
A maior parte dos portugueses que me conheciam ajoelhavam, beijavam-me as mãos e pediam perdão, se alguma vez me tivessem feito mal; acreditavam que este seria o último dia. Ninguém se preocupava mais com teres e haveres. 
(...) Se encontrar gente da nossa casa mande-a cá (...). Também lhe peço que mande 20 trabalhadores a casa do sr. Cloe, custe o que custar, para salvar a pobre família, pois temo que sejam queimados vivos. (...)

domingo, 9 de março de 2014

Vidas 2

(Cont.)
2
De Q. no Campo Grande
Para Busch, em Lisboa
1 de Novembro
Esta manhã, às 09H00 (...) ouvi um grande estrondo; e, como o tinha convidado a si e a outros amigos para almoçar, pensei que alguém andaria a pôr em ordem a mesa na grande sala do andar de cima (...). O ruído tornou-se maior, e pareceu-me que um animal ou um cão maluco tinha entrado em casa e andava aos pulos no 2º andar. (...)
Aproximei-me da janela, por onde subi, e vi a minha mulher, o meu filho e a criada, de joelhos, em grande pânico. A minha pobre mulher tinha caído das escadas; ela está em adiantado estado de gravidez, e não sei se o medo ou a queda lhe provocaram tais dores nas costas que não podia andar. (...)
Várias casas vizinhas estavam no chão, e noutras tinham caído paredes. (...) Seguiu-se depois um outro abalo bastante forte, que não durou muito, mas que acabou com alguns muros. A minha mulher ficou muito aflita quando mandei aparelhar o cavalo para ir à cidade, pois não estava descansado enquanto não soubesse como estavam as coisas na nossa casa. (...) Por um lado eu queria ser carinhoso com ela, e por outro queria salvar os meus haveres. (...)
Ele contou-me que a desgraça na cidade ainda era maior, e que não me seria possível deslocar-me à minha casa, nem a cavalo nem a pé. Que as ruas estavam intransitáveis e cheias de entulho das casas caídas e aquelas que não tinham caído estavam tão abaladas que seria perigoso passar nas ruas (...).
Se a minha presença for necessária, vou imediatamente para a cidade.
(Cont.)

Peregrinação da Lapa a Riba-Côa

O erro duma letra no endereço electrónico sepultou a mensagem deste leitor nas entranhas do google, durante um ano. É o que acontece a quem se fia nisto. E só agora me chega a sua crítica a um trabalho editado há mais dum ano, o Portugalmente. Tratando-se de opinião generosa e lisonjeira a vários níveis, aqui deixo passar notícia dela. 
«Eu leio pouco e devagar. Nada que tenha a ver com o valor intrínseco do que me proponho ler (...). É que não é só o que a gente lê. É tudo o que a toda a hora nos entra pelos olhos, pelos ouvidos e outros sentidos, sem termos possibilidade de nos protegermos com palas, tampões e outros bloqueadores deste assédio que mais parece obra do diabo só para nos atormentar.
E em parte assim fica explicado o tempo, que há-de parecer exagerado que demorei a ler este livro. E digo em parte, porque a outra, que penso ser a maior, terá mais que ver com o prazer que me guiava e alimentava, quando me sentava para atacar mais um capítulo, ou a parte que ficou dele e que eu deixara para a vez seguinte, como quem tendo à sua frente uma iguaria, tem o bom senso de não a devorar de uma só vez. E isto não deve ser entendido, de modo algum, como piada dirigida ao meu amigo Afonso Gonçalves que o leu de um só fôlego, segundo diz, em escassas oito horas. (...)
E, dito isto, vamos ao que mais interessará, e que daqui para a frente não será propriamente um discurso corrido, antes um alinhar de notas que ao longo da leitura fui recolhendo, uma ninharia se comparada com as anotações que esta obra mereceria. (...)
Interessante, para começar – mera coincidência, talvez – parece-me o facto de o formato da obra ser muito semelhante ao de “Arcas Encoiradas” do Mestre Aquilino, com enunciados detalhados, tipo sumário, no início de cada capítulo. E ainda sobre esta questão, a do formato, lembro-me que quando pela primeira vez peguei neste livro, a reacção primeira que tive foi a de associá-lo a brochuras que andam por aí nas arrecadações das Câmaras Municipais e que vão distribuindo junto com outras coisinhas metidas em saquinhos a todos os visitantes um pouco mais ilustres. (...) O que eu fico a desejar é que o mesmo não aconteça com este livro, que isso sim, seria um pecado sem remissão.
Daqui para a frente, que palavras escolher? Delicioso? Talvez esta seja a palavra mais adequada, a par doutras que nos vão ocorrendo à medida que vamos lendo. Como, por exemplo, a atmosfera de profunda religiosidade que perpassa a obra quase do princípio ao fim, como em Saramago, coisa mais visceral que mental, sem necessidade das moletas da fé, isto no meio de outras frequentes aproximações à escrita do autor do “Memorial do Convento”, que bem pode ser pura coincidência, mas normalmente não é.
Mesmo que disfarçada ou propositadamente iludida, por vezes até em jeito de brincadeira, bem se vê que por detrás da narrativa que nunca por nunca se torna cansativa há muito trabalho de investigação ou então muita sabedoria e um manancial de informação.
Mas, apesar de todos os cuidados, que sei que foram muitos e demorados, são frequentes os desencontros entre o correr da narrativa e as ilustrações fotográficas, o que, não sendo assim tão grave, não deixa de ser uma pena, por atrapalhar, inevitavelmente, o labor de quem está a ler. Veja-se, só a título de exemplo, o caso da “pedra cavaleira”, no texto a pags. 41 e a respectiva imagem já bem lá para trás (pag. 36). Cá por mim até sou de opinião de que o texto desta obra bem que poderia dispensar qualquer ilustração. É só uma opinião.
Porque, a meu ver, não é um livro para olhar e ainda menos para devorar, antes para degustar, como quem come um bom naco de queijo da serra e bebe um copo de bom vinho. Até porque de intriga ou de suspense  não tem mesmo nada. É, portanto, mais para ir comendo e mastigando com calma. (...)
Muito interessantes, também, os frequentes tropeções com a actualidade e os mergulhos na nossa História que até parecem ficção, desde a fundação da nacionalidade até ao 25 de Abril, e depois dele, passando por testemunhos de sobreviventes da Guerra Colonial. Em certo sentido até parece que está aqui tudo, porque o que daqui resulta é uma espécie de padrão que se replica, nos seus traços fundamentais, em muitas partes do país. Está cá tudo? Claro que não. Nem poderia estar. (...)
Também o pormenor finamente detalhado de tantos sítios e lugares poderá levar alguns leitores a desistir no meio da jornada, talvez a passar à frente, perdendo com isso o essencial que, quanto a mim, está na arte, na qualidade literária e grande sensibilidade do autor. Os naturais destas paragens, esses sim, têm aqui tudo, uma história por vezes bem rica em pormenores do seu torrão natal; e se acompanharem essa circunstância privilegiada com uma boa aptidão para gostar do que é bom, então  o que aqui se lhes oferece é um verdadeiro “rio de mel”. (...)
Por isso também me atrevo a dizer que todo o português com dez reis de discernimento, incluindo os alunos das nossas escolas, deveria ler esta obra. (...)
E à medida que a minha leitura se ia aproximando do fim, começava a compreender melhor o entusiasmo do Afonso Gonçalves pelos três últimos capítulos, e muito especialmente pelo que diz respeito às famosas ou famigeradas Gravuras Rupestres de Foz-Côa, ele mais dado a coisas práticas, às ciências exactas e às matemáticas, as outras formas de conhecimento pouco sendo mais que balelas, com gosto por coisas bonitas como a literatura, uma fonte de entretenimento inteligente. Nada de sonhos ou utopias.
Cá por mim, ao terminar a leitura desta obra, para exprimir o que sinto, só encontro uma maneira extremamente simplificada: há quem tente, e há quem saiba mesmo escrever, que é o caso do meu amigo Jorge Carvalheira. E em casos como o dele, o tempo do reconhecimento, se ainda não for desta, há-de um dia chegar.
                                      Viseu, 25Fev2013»

O último maçaricão-esquimó 21

(Cont.)
            O bando tinha voado quase sessenta horas seguidas, sem descanso nem alimento. Das terras da neve e da luz árctica, chegavam agora a um lugar que ressumava da exuberante vegetação dos trópicos. Diante deles havia centenas de quilómetros de terras pantanosas e de planícies cobertas de capim. Era um formigueiro de insectos, alimento mais que suficiente, que só os meses de chuvas contínuas dos trópicos podiam produzir.
            O dia ficara um pouco mais claro. E o maçaricão abriu as asas rígidas e mergulhou em picada. Deixara para trás a vastidão dum continente, desde a última vez que elas tinham estado inactivas. As tarambolas seguiram-no e o bando poisou.
            Nenhuma ave descansou, porque antes de mais era preciso comer. Durante cinquenta e cinco horas tiveram os estômagos vazios, tinham voado quase cinco mil quilómetros e consumiram toda a gordura acumulada no Lavrador. Dela não restava agora um único grama. Em menos de três dias, as aves tinham perdido entre 10 a 15 por cento do seu peso. Só o facto de elas serem os mais económicos consumidores de energia de todo o reino animal lhes possibilitava tal voo. Para atravessar o oceano, cada ave tinha queimado sessenta gramas de gordura. Com tal consumo de energia, um avião de meia tonelada voaria 250 quilómetros com cinco litros de combustível, em lugar dos habituais trinta e cinco.
            Só descansaram depois de terem comido. Mas nas vastas savanas do Orinoco havia grande abundância de alimento. Assim, antes de cair a noite tropical, as aves comeram ainda uma segunda vez, durante várias horas.


O CORREDOR DA MORTE
            Este é o oitavo boletim do Museu Nacional dos Estados Unidos, sobre a vida das aves norte-americanas, por Arthur Cleveland Bent.

            Ordem: Limicolae. Família: Scolopacidae... Numenius borealis, maçaricão-esquimó... Não há dúvida de que foram sobretudo os abates excessivos, durante as viagens migratórias, e durante o Inverno na América do Sul, os responsáveis pela sua extinção. Não acredito que esta espécie tenha sido apanhada no alto mar por uma enorme catástrofe que a tenha dizimado. O maçaricão possuía asas poderosas, e podia escapar a grandes tempestades, ou conseguia evitá-las. Além disso a sua época de migração era tão prolongada que uma só tempestade não podia exterminar toda a espécie. Nada aponta para doenças, ou para a redução do seu alimento habitual. Sobra uma única razão. Ele foi aniquilado pelos homens: no Verão e no Outono, no Lavrador e na Nova Inglaterra; no Inverno, na América do Sul; e ainda pior que tudo, na Primavera, desde o Texas até ao Canadá. Os maçaricões eram tão mansos e confiantes, tão apegados aos seus companheiros de viagem, que foram abatidos em massa, vítimas fáceis da carnificina. Estas delicadas aves deixavam atrás de si, por todo o lado, um verdadeiro corredor da morte. E ninguém mexeu um só dedo para as defender, até ser demasiado tarde...

Fronteira

Duas mesquinhas questões demarcam a fronteira das harmonias domésticas: que fazes tu do teu tempo, como usas o teu dinheiro.
Se não houver sintonias, não vale a pena bater em ferro frio.

Vidas 1

Andei a chafurdar no porão dos arquivos sem encontrar o que queria. Mas tropecei nuns papéis de há muitos anos, quando peregrinava pela Uninova. Tais trabalhos continuam a servir, mais do que nunca, para nos olhar a todos, para ver o que aprendemos com a vida, e saber para que prestamos.
Entre 9 de Agosto e 27 de Setembro de 1779, publicou a Hannoverisches Magazin um conjunto de 33 cartas que em Lisboa trocaram entre si alguns comerciantes, na sua maioria alemães, nas circunstâncias dramáticas provocadas pelo terramoto de 1755. No centro destas trocas de correspondência está uma casa comercial alemã, dirigida pelo sr. Q. Deve tratar-se duma casa há muito estabelecida em Lisboa, pois o próprio gerente, ou dono, o sr. Q. tem ao serviço um cozinheiro há 22 anos.
Em consequência dos enormes incêndios que devastaram a cidade após o terramoto, a casa comercial em questão ardeu completamente, e "de todos os produtos em fardo existentes no armazém não resta um único fio". Apesar disso as cartas permitem entrever um desenvolvimento posterior positivo. A casa manteve-se, recuperou das perdas e prosseguiu as suas actividades.
A casa comercial localiza-se na baixa da cidade, não muito longe do Rossio, e o sr. Q. mora no Campo Grande. Dos seus colaboradores sabe-se que o sr. Busch mora nos Olivais, Maccarthy é capitão inglês do barco Mercúrio, que transporta mercadorias para a firma, e Nazaré será uma ligação comercial no Brasil ou na América do Sul. Todos os outros são subordinados de Q., alguns habitam mesmo nas instalações da firma, canalizam para ele as informações que a situação caótica vai permitindo, e procuram seguir as suas orientações para tentar salvar a casa da catástrofe.
As 33 cartas têm datas que vão de 1 de Novembro de 1755 (a manhã do terramoto) a 10 de Maio de 1756.

1
De Nath, em Lisboa
Para Q. no Campo Grande
1 de Novembro
O senhor deve ter estranhado a minha ausência e a do sr. Busch, esta tarde, uma vez que tínhamos combinado almoçar consigo. (...) Eram, pelo meu relógio, cerca das 09H30, quando ouvi subitamente um enorme fragor na rua, como se muitas carroças andassem à volta da casa. (...) Um grande pânico apoderou-se de mim, quando vi os quadros e os livros começarem a cair e notei que as mesas e as cadeiras se moviam no chão. (...)
Este forte movimento e este ruído duraram cerca de um minuto, ou 3 minutos, como me pareceu (...). Vi que os cavalos se tinham soltado, assim como o grande cão que uivava lugubremente. (...)
Finalmente eu e o marinheiro Cock conseguimos passar e chegámos à rua. Ali encontrei o sr. Busch estendido no chão e desfalecido. (...) Quando ia partir olhei de novo para a nossa casa, que ainda estava de pé, e vi o sr. Reel sentado no telhado. De todos os lados me chegava a gritaria e as lamentações da gente em pânico. (...) Reconheci a voz do meu amigo Brein, que me chamava. Ele estava em cima dum muro, no 3º andar, e em tal dificuldade que não podia mexer os pés. (...)
Depois disso apressámo-nos de novo para o Rossio, que fervilhava de gente. Alguns estavam nus, outros em roupas de noite (...). Para onde quer que me voltasse viam-se pessoas com braços, ou pernas, ou cabeças partidas, ou pescoços fracturados; e algumas mulheres, com tal agitação e medo, tiveram as dores do parto e pariram ali à frente de toda a gente. (...)
Os padres ouviam em confissão os moribundos e distribuíam absolvições. E ouvia-se ecoar de todas as bocas Misericórdia! Misericórdia! O fogo tinha atingido três quartas partes da cidade (...)
Entretanto eu e o sr. Busch combinávamos o que seria melhor fazer, quando sobreveio um novo grande abalo de terra. (...) Ouvia-se toda a gente de joelhos a gritar o seu lastimoso Misericórdia! (...) O sr. Busch, o marinheiro Cock e Mr. Reel decidiram dirigir-se a pé para sua casa (...).
Eu desejo que o senhor não tenha experimentado o mesmo pavor. Mantenho-me na cidade, para ver se posso aproximar-me da sua casa (...), para o que espero ordens.
(Cont.)

Consciência

No séc. XV, com a aventura de Ceuta, ocorreram em Lisboa as primeiras rapaziadas de corte, que deram início à gesta gloriosa. Desde então, com ínfimas excepções, a pátria e o povo dela têm sido dirigidos por elites de aventureiros cúpidos e de lunáticos visionários e irresponsáveis.
Porém, nunca como hoje foi tão clara e visível a natureza criminosa e traidora destas elites marginais e desqualificadas. O que não basta, ai de nós, para que o povo dos portugueses tenha consciência disso!

sábado, 8 de março de 2014

O último maçaricão-esquimó 20

(Cont.)
           Após trinta e seis horas sobre o mar, os músculos e os nervos começaram finalmente a acusar cansaço. O voo deixou de ser um acto reflexo inconsciente e infatigável. Agora exigia esforço de vontade, e só a concentração determinada na tarefa fazia ainda bater as asas debilitadas. Duas noites e um dia sem alimento tinham afrouxado os processos no corpo das aves, que arfavam no ar quente dos trópicos. Mantinham os bicos abertos, pois tinham que respirar velozmente, para cobrir as necessidades de oxigénio dos pulmões. Três tarambolas novas, que faziam pela primeira vez a longa viagem sobre o oceano, atrasavam-se lentamente. O maçaricão reduziu a velocidade, até ao ponto de as aves mais fracas se poderem aguentar.
            Ele sabia que havia ilhas além, a Oeste, por baixo das espessas nuvens do horizonte. Ficavam apenas a uma ou duas horas de voo. Porém, para as alcançar era preciso seguir um rumo em que o vento soprava directamente de cauda. E isso prejudicava o voo, tanto como o vento de frente. Por isso o maçaricão mantinha a rota inicial. Ele sabia que havia de passar uma terceira noite antes que chegassem à costa. E se alcançassem terra firme na escuridão, numa noite cerrada e cheia de nuvens, só poderiam poisar quando os contornos dos mangais venezuelanos e das ilhas de areia dos estuários se pudessem desenhar na claridade da manhã.
            O dia demorou muito a passar. Mas finalmente o sol mergulhou no mar das Caraíbas, e rapidamente ficou escuro, quase sem crepúsculo. As nuvens cresceram e ocultaram a lua e as estrelas. Caíram as primeiras gotas, o bando chegava aos trópicos em pleno tempo das chuvas. Era uma chuva ligeira e fina, que refrescava o ar e facilitava a respiração. E assinalava a proximidade da costa.
            Durante duas horas voaram à chuva. O maçaricão não podia ver nada, mas reconheceu imediatamente quando deixaram o mar e se acharam sobre terra firme. Primeiro trovejou, no escuro, a rebentação, e logo a seguir surgiram as turbulências das correntes térmicas, a elevar-se do solo quente.
            As aves não podiam senão continuar em frente, hora após hora. E agora, sabendo que por baixo delas se estendia terra firme, o voo tornou-se uma prova de força cruel, e cada batida de asa uma luta atormentada contra a inércia e o esgotamento. Muita energia era agora desperdiçada, uma vez que as rémiges estavam de tal modo estafadas que já não cortavam o ar como pás duma hélice. Tal como o faziam ao princípio, ao deixarem o Lavrador, com batidas ligeiras e fáceis.
            O maçaricão sabia que, por trás da faixa costeira com praias e estuários de rios, havia mangais pantanosos. Eles estendiam-se ao longo de 250 quilómetros, e poisar neste emaranhado era tão difícil como fazê-lo no mar alto. Assim, quando clareasse, teriam que continuar a voar em frente, até atingirem os Llanos relvados da Venezuela. As asas tinham-se tornado pesadas, mas o maçaricão ganhava altura para poder ultrapassar os montes costeiros. Era um tormento. Atravessaram os montes e o cansaço mantinha-se, crescia de repente em guinadas agudas, e fazia vibrar cada fibra dos seus pequenos corpos.
            A noite estava escura como breu. Até que a manhã rompeu finalmente, não com amarelos e vermelhos, mas com uma luz turva e cinzenta. Por baixo deles a terra era húmida e lamacenta, atravessada por rios largos, como a tundra na Primavera. Tão longe quanto podiam ver, na luz cinzenta da manhã, estendia-se em todas as direcções o extenso vale do Orinoco. E continuava a chover.
(Cont.)

quinta-feira, 6 de março de 2014

O último maçaricão-esquimó 19

(Cont.)
              À superfície da água havia também outras aves, que passam a maior parte da vida a cardar no mar alto. Apenas voam para terra quando o impulso de acasalamento as chama. Paínhos-mergulhadores, de patas coloridas, esvoaçavam por ali como borboletas, e precipitavam-se entre as ondas. Os seus vultos faiscavam como reflexos minúsculos, e sem descanso procuravam alimento, pequenos crustáceos e plâncton. Aves aquáticas que tinham nidificado na tundra, no meio das narcejas suas parentes, tinham regressado ao mar, em cuja solidão se manteriam até à próxima época de criação. Casualmente passava um grande albatroz, com as suas braçadas escuras e tranquilas, a aproveitar habilmente a impulsão criada sobre as cristas das ondas, pelos movimentos da água. Mas aqui tratava-se de verdadeiras aves marinhas. O mar alimentava-as e concedia-lhes repouso quando as asas ficavam fatigadas, pois podiam nadar tão perfeitamente como voavam.
            O maçaricão e as tarambolas só podiam voar, voar e voar, adiando o descanso e o alimento, até atingirem terra firme.
            Quando a noite chegou já tinham atravessado o braço da corrente do Golfo que se dirige para Leste. Encontravam-se agora no meio do Atlântico, numa zona de cinco milhões de quilómetros quadrados, onde nenhuma corrente agita a água salobra e onde bóiam ilhas de algas esponjosas. Estavam sobre o Mar dos Sargaços, o mais estranho de todos os mares. E voavam há vinte e quatro horas sem descanso.
            Enormes tapetes de algas castanhas passavam por baixo deles. Quando perdiam altitude, viam os peixes-voadores com as suas barbatanas peitorais semelhantes a asas, lançando-se sobre os rolos húmidos de algas marinhas. Entre elas viviam caranguejos, camarões e caracóis. Em anos passados, por esta altura, já o maçaricão tinha avistado os picos baixos do Sear’s Hill, nas Bermudas. Mas desta vez tinham sido afastados muito mais para Leste pela tempestade nocturna. O sol caía no mar sem fim. Quando escureceu, a água cintilava com o brilho claro e frio de milhões de seres fosforescentes.
            O maçaricão conduziu o bando em frente, e durante toda a noite voaram a uma altitude de cerca de mil metros. De tempos a tempos, as aves comunicavam entre si através de pequenos gritos. Quando o maçaricão seguia no comando, tinha que aplicar todos os sentidos para estar atento aos caprichos do vento e aos impulsos cósmicos. O seu cérebro traduzia estes impulsos num sentido de orientação. E, quando cedia o comando a uma tarambola, voava num estado de semi-sonolência. As asas batiam automaticamente, os olhos mantinham-se meio fechados, e ele seguia o turbilhão da ave precedente quase inconscientemente.
            Nessa noite, a estrela polar e as constelações do Árctico já se perdiam no horizonte. Para os lados do Sul apareciam estrelas novas. Pouco antes do romper do dia o vento tornou-se mais fresco. Soprava de Nordeste, forte, constante e monótono. Tinham atingido a zona dos alísios. Era um vento de bombordo, que lhes acelerava a velocidade nuns bons quinze quilómetros por hora.
            Apesar do vento, o dia estava quente. E por vezes deslizava à superfície da água a sombra azul escura dum tubarão. O bando estava perto dos trópicos, o mar tornava-se cada vez mais azul, e na atmosfera quente formavam-se maciças nuvens cumuliformes, cujas sombras salpicavam a água. Grossos montões de nuvens empilhavam-se, imóveis, no horizonte, a Oeste. Eram marcas de itinerário. Por baixo delas havia ilhas, cada uma com o seu capacete de nuvens, que podiam observar-se muito antes de elas se avistarem. O bando tinha agora diante de si o mar das Caraíbas e as Pequenas Antilhas. E lá à frente, por detrás do horizonte, à distância de doze horas de voo, encontravam-se as selvas e os montes da América do Sul.
(Cont.)

terça-feira, 4 de março de 2014

A vida das pessoas não, mas a vida do país está muito melhor!

Foi uma besta quadrada que o disse. E, visto assim, é de facto verdade.

segunda-feira, 3 de março de 2014

Afinal em que ficamos?!

O cabrão do Sócrates é que pretendia calar a comunicação social, e afinal são os lacaios do Relvas que pontapeiam os jornalistas?!
Quer-me parecer que têm o que merecem.

O último maçaricão-esquimó 18

(Cont.)
6
             O maçaricão sabia que tinham de continuar a voar para Leste, para que o temporal os não apanhasse de novo. Mas isso era um simples reconhecimento factual, que não provocava nenhum sentimento de medo. Já tinha esquecido o pânico do tempestuoso céu de neve, tinha esquecido mesmo as tarambolas afogadas, só se lembrava da tempestade. Na sua memória ela não era um acontecimento horrível e medonho, apenas um inimigo natural com que tinha que contar, e que era preciso evitar.
            Mas o destino do bando era o Sul, e para Leste apenas se estendia o imenso mar vazio. Assim, meia hora depois, o maçaricão mudou de rumo e apontou a Sul. Durante cerca de meia hora voaram nessa direcção, até que a frente fria os apanhou de novo. Logo que as primeiras gotas de chuva caíram, o maçaricão rodou para Leste, e alguns minutos depois encontrou de novo a atmosfera límpida e tranquila.
            Nas três horas que faltavam para a alvorada tiveram que repetir várias vezes esta manobra. Rumavam para Sul até a chuva os atingir, e viravam a Leste para a manter atrás de si. Voavam precisamente em direcção ao Sul quando um clarão amarelado rasgou o céu sombrio. Amanhecia rapidamente, a escuridão do mar transformou-se num verde frio, mas o sol não nascera ainda. Continuaram para Sul durante uma hora ou duas, o manto de nuvens tornou-se menos espesso, o dia clareou e o temporal não voltou. Mesmo as grossas nuvens cinzentas a Oeste desapareceram e a Leste rompeu o sol, como um archote, através das névoas que se dissolviam. O ar mantinha-se frio, mas em breve só o sol se erguia, no vasto céu azul.
            O bando tinha finalmente ultrapassado a tempestade, rompendo para Sul. O que ainda restava das nuvens geladas da noite diluía-se lá para o Norte, sobre os bancos de pesca da Terra Nova.
            No final da manhã o ar aqueceu, e farrapos de neblinas erguiam-se da água. O céu manteve a claridade azul, mas por vezes o mar ocultava-se atrás dum véu nebuloso. O bando aproximava-se do ponto onde se encontram a corrente fria do Lavrador, que se desloca para sul, e a corrente quente do Golfo, dirigindo-se para Norte. Aqui, ao largo da Terra Nova, a corrente do Golfo desvia-se para Leste, para o Atlântico Central. Durante uma hora foram atravessando bancos de nevoeiro, até que a vista do mar ficou livre. O verde pálido da água deu lugar ao azul marinho, e as duas cores delimitavam-se tão rigorosamente como o mar e a praia. O bando encontrava-se sobre a corrente do Golfo, que vem dos trópicos. O verde da corrente do Lavrador, último prolongamento do Árctico, desvanecia-se atrás dele.
            As asas batiam mecanicamente, sempre com idêntico andamento, como se não estivessem fatigadas. A atmosfera era cada vez mais quente, pois em cada hora avançavam 80 quilómetros para Sul. E na monotonia do voo só alguma coisa mudava quando planavam cerca de uma hora, perdendo altitude até à flor das ondas. Depois subiam outra vez.
            Visto de perto, descobria-se que o mar, tal como a tundra, só na aparência era deserto e sem vida. As aves passavam ao rés da água, que formigava de vida. Por vezes cintilavam as medusas, ao longo de quilómetros, como discos brilhantes. Cardumes de peixes vinham à superfície, e o sol reflectia-se, metálico, em milhares de corpos prateados. Depois apareciam autênticas nuvens de plâncton, organismos unicelulares microscópicos, cada um deles um minúsculo ponto, colorido e invisível. Mas eram aos biliões, e coloriam quilómetros de mar de um vermelho vivo.
(Cont.)

Sem papas na língua

Perante a falência das elites políticas, as indígenas e as outras, e perante a quadrilha de marginais e de traidores que servem a finança e nos destroem a vida, o que este velho diz, e a limpidez com que o faz, sempre são um consolo.