domingo, 9 de março de 2014

Vidas 1

Andei a chafurdar no porão dos arquivos sem encontrar o que queria. Mas tropecei nuns papéis de há muitos anos, quando peregrinava pela Uninova. Tais trabalhos continuam a servir, mais do que nunca, para nos olhar a todos, para ver o que aprendemos com a vida, e saber para que prestamos.
Entre 9 de Agosto e 27 de Setembro de 1779, publicou a Hannoverisches Magazin um conjunto de 33 cartas que em Lisboa trocaram entre si alguns comerciantes, na sua maioria alemães, nas circunstâncias dramáticas provocadas pelo terramoto de 1755. No centro destas trocas de correspondência está uma casa comercial alemã, dirigida pelo sr. Q. Deve tratar-se duma casa há muito estabelecida em Lisboa, pois o próprio gerente, ou dono, o sr. Q. tem ao serviço um cozinheiro há 22 anos.
Em consequência dos enormes incêndios que devastaram a cidade após o terramoto, a casa comercial em questão ardeu completamente, e "de todos os produtos em fardo existentes no armazém não resta um único fio". Apesar disso as cartas permitem entrever um desenvolvimento posterior positivo. A casa manteve-se, recuperou das perdas e prosseguiu as suas actividades.
A casa comercial localiza-se na baixa da cidade, não muito longe do Rossio, e o sr. Q. mora no Campo Grande. Dos seus colaboradores sabe-se que o sr. Busch mora nos Olivais, Maccarthy é capitão inglês do barco Mercúrio, que transporta mercadorias para a firma, e Nazaré será uma ligação comercial no Brasil ou na América do Sul. Todos os outros são subordinados de Q., alguns habitam mesmo nas instalações da firma, canalizam para ele as informações que a situação caótica vai permitindo, e procuram seguir as suas orientações para tentar salvar a casa da catástrofe.
As 33 cartas têm datas que vão de 1 de Novembro de 1755 (a manhã do terramoto) a 10 de Maio de 1756.

1
De Nath, em Lisboa
Para Q. no Campo Grande
1 de Novembro
O senhor deve ter estranhado a minha ausência e a do sr. Busch, esta tarde, uma vez que tínhamos combinado almoçar consigo. (...) Eram, pelo meu relógio, cerca das 09H30, quando ouvi subitamente um enorme fragor na rua, como se muitas carroças andassem à volta da casa. (...) Um grande pânico apoderou-se de mim, quando vi os quadros e os livros começarem a cair e notei que as mesas e as cadeiras se moviam no chão. (...)
Este forte movimento e este ruído duraram cerca de um minuto, ou 3 minutos, como me pareceu (...). Vi que os cavalos se tinham soltado, assim como o grande cão que uivava lugubremente. (...)
Finalmente eu e o marinheiro Cock conseguimos passar e chegámos à rua. Ali encontrei o sr. Busch estendido no chão e desfalecido. (...) Quando ia partir olhei de novo para a nossa casa, que ainda estava de pé, e vi o sr. Reel sentado no telhado. De todos os lados me chegava a gritaria e as lamentações da gente em pânico. (...) Reconheci a voz do meu amigo Brein, que me chamava. Ele estava em cima dum muro, no 3º andar, e em tal dificuldade que não podia mexer os pés. (...)
Depois disso apressámo-nos de novo para o Rossio, que fervilhava de gente. Alguns estavam nus, outros em roupas de noite (...). Para onde quer que me voltasse viam-se pessoas com braços, ou pernas, ou cabeças partidas, ou pescoços fracturados; e algumas mulheres, com tal agitação e medo, tiveram as dores do parto e pariram ali à frente de toda a gente. (...)
Os padres ouviam em confissão os moribundos e distribuíam absolvições. E ouvia-se ecoar de todas as bocas Misericórdia! Misericórdia! O fogo tinha atingido três quartas partes da cidade (...)
Entretanto eu e o sr. Busch combinávamos o que seria melhor fazer, quando sobreveio um novo grande abalo de terra. (...) Ouvia-se toda a gente de joelhos a gritar o seu lastimoso Misericórdia! (...) O sr. Busch, o marinheiro Cock e Mr. Reel decidiram dirigir-se a pé para sua casa (...).
Eu desejo que o senhor não tenha experimentado o mesmo pavor. Mantenho-me na cidade, para ver se posso aproximar-me da sua casa (...), para o que espero ordens.
(Cont.)