sábado, 8 de março de 2014

O último maçaricão-esquimó 20

(Cont.)
           Após trinta e seis horas sobre o mar, os músculos e os nervos começaram finalmente a acusar cansaço. O voo deixou de ser um acto reflexo inconsciente e infatigável. Agora exigia esforço de vontade, e só a concentração determinada na tarefa fazia ainda bater as asas debilitadas. Duas noites e um dia sem alimento tinham afrouxado os processos no corpo das aves, que arfavam no ar quente dos trópicos. Mantinham os bicos abertos, pois tinham que respirar velozmente, para cobrir as necessidades de oxigénio dos pulmões. Três tarambolas novas, que faziam pela primeira vez a longa viagem sobre o oceano, atrasavam-se lentamente. O maçaricão reduziu a velocidade, até ao ponto de as aves mais fracas se poderem aguentar.
            Ele sabia que havia ilhas além, a Oeste, por baixo das espessas nuvens do horizonte. Ficavam apenas a uma ou duas horas de voo. Porém, para as alcançar era preciso seguir um rumo em que o vento soprava directamente de cauda. E isso prejudicava o voo, tanto como o vento de frente. Por isso o maçaricão mantinha a rota inicial. Ele sabia que havia de passar uma terceira noite antes que chegassem à costa. E se alcançassem terra firme na escuridão, numa noite cerrada e cheia de nuvens, só poderiam poisar quando os contornos dos mangais venezuelanos e das ilhas de areia dos estuários se pudessem desenhar na claridade da manhã.
            O dia demorou muito a passar. Mas finalmente o sol mergulhou no mar das Caraíbas, e rapidamente ficou escuro, quase sem crepúsculo. As nuvens cresceram e ocultaram a lua e as estrelas. Caíram as primeiras gotas, o bando chegava aos trópicos em pleno tempo das chuvas. Era uma chuva ligeira e fina, que refrescava o ar e facilitava a respiração. E assinalava a proximidade da costa.
            Durante duas horas voaram à chuva. O maçaricão não podia ver nada, mas reconheceu imediatamente quando deixaram o mar e se acharam sobre terra firme. Primeiro trovejou, no escuro, a rebentação, e logo a seguir surgiram as turbulências das correntes térmicas, a elevar-se do solo quente.
            As aves não podiam senão continuar em frente, hora após hora. E agora, sabendo que por baixo delas se estendia terra firme, o voo tornou-se uma prova de força cruel, e cada batida de asa uma luta atormentada contra a inércia e o esgotamento. Muita energia era agora desperdiçada, uma vez que as rémiges estavam de tal modo estafadas que já não cortavam o ar como pás duma hélice. Tal como o faziam ao princípio, ao deixarem o Lavrador, com batidas ligeiras e fáceis.
            O maçaricão sabia que, por trás da faixa costeira com praias e estuários de rios, havia mangais pantanosos. Eles estendiam-se ao longo de 250 quilómetros, e poisar neste emaranhado era tão difícil como fazê-lo no mar alto. Assim, quando clareasse, teriam que continuar a voar em frente, até atingirem os Llanos relvados da Venezuela. As asas tinham-se tornado pesadas, mas o maçaricão ganhava altura para poder ultrapassar os montes costeiros. Era um tormento. Atravessaram os montes e o cansaço mantinha-se, crescia de repente em guinadas agudas, e fazia vibrar cada fibra dos seus pequenos corpos.
            A noite estava escura como breu. Até que a manhã rompeu finalmente, não com amarelos e vermelhos, mas com uma luz turva e cinzenta. Por baixo deles a terra era húmida e lamacenta, atravessada por rios largos, como a tundra na Primavera. Tão longe quanto podiam ver, na luz cinzenta da manhã, estendia-se em todas as direcções o extenso vale do Orinoco. E continuava a chover.
(Cont.)