terça-feira, 31 de janeiro de 2017

"A arte existe para dar felicidade".

«(...) Não percebo o que se passa hoje nas cabeças das pessoas. Tudo, na consideração da arte, é passível de nivelamento? Um fado cantado pela Amália representa o mesmo nível de conseguimento artístico que um Lied de Arnold Schönberg cantado por Dietrich Fischer-Dieskau? Se eu verbalizar a minha veneração absoluta pela Pietá de Miguel Ângelo têm obrigatoriamente de me vir falar dos bordados  da Joana Vasconcelos? (...)
Claro que há o gosto a que cada um tem direito - isso não deve ser contestado; eu quero que todos gostem daquilo de que gostam. A arte existe para dar felicidade. Mas o facto de cada um ter o direito de gostar daquilo de que gosta é uma coisa: a existência do Sublime é outra. (...)».
[Frederico Lourenço, O Lugar Supraceleste, Cotovia)

Madrugada redentora

Ninguém constrói o seu templo com barro dos vizinhos. É assim que Gouveia celebra o centenário de Virgílio Ferreira, que nasceu na aldeia serrana de Melo.
V. Ferreira deixou à literatura dois romances de épocas diferentes: a Manhã Submersa, inicial, de que o Lauro António fez um belo filme, e a Aparição, mais tardia, que tem lugar em Évora. O resto é um bom exemplo de umbigo inflacionado, agindo em contra-corrente, com escritos múltiplos que moram no bairro da literatura e não no são (a Conta-Corrente, a Sandra, que sei eu?): os existencialistas, o nouveau-romain, o Robbe-Grillet, indiferentes todos ao naufrágio do povo, cujos heróis verdadeiros morriam torturados nos aljubes da pide, em luta pelas oito horas no latifúndio e pela dignidade.
Eu oiço os conferencistas com muita tolerância. Rio-me do mundo e dos intelectuais que se dirigem aos leitores lendo textos maçudos e prolixos, com dicções inaudíveis e improvisadas em que se perde metade da mensagem. E acabo a restaurar-me com um almocinho no Júlio de Gouveia, que há 50 anos era bandeira da gastronomia serrana na feira popular de Entrecampos. 
Ainda hoje guarda nas paredes do estanco as fotos das chaimites do Salgueiro Maia, numa madrugada redentora que aí houve. Era forçoso que houvesse!

Música!

Dá-lhes música!

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Injustiças

Sempre houve muitas, esta é mesmo ...

O miau
1 Sou um miau, e sou
mau; faço o que me apetece e
se quero sair mio diante da porta, 
e se quero entrar mio do outro
lado da porta; e se quero comer
me roço nas pernas de rabo 
empinado num andar animado
pela perfídia e calculismo.

2 mas quando me não
prestam atenção vou para a 
cozinha deitar ao chão copos e 
tachos, e se não me enxotarem
defeco nos despachos de cada
habitante revoltante da minha casa;
ou na cama, ou no armário
- não têm como escapar deste
instinto primário que domesticou
os donos que se julgam tão 
sofisticados como eu. rinhau

3 sou assim, e sou ruim; deixam-me
arranhar as crianças sem
me bater, bufo a quem
e quando me apetecer; 
arranco pedaços ao sofá, 
estendo-me como um paxá
desprendendo um rasto de
pêlos e puns

4 e secretamente, muito
secretamente transformo quem
me acarinha num berço que aninha
um assassino devorador de ratos
e toupeiras, pássaros e lagarteiras,
insectos insurrectos, todo o tipo
de vida que não se lamenta quando
cai na minha garra sangrenta que
depois é lavada como se não fosse
nada

[Rodrigo, Lambda 1/12, 2016]

Tiro pela culatra!

Acontece ao mais pintado. Mas a este muito a propósito.

domingo, 29 de janeiro de 2017

Transformar quem a lê!

«A literatura não serve obviamente de nada a não ser que sirva para alguma coisa. E se serve para alguma coisa, é para transformar quem a lê. O leitor que chega ao fim de O Livro do Desassossego exactamente igual à pessoa que era quando começou a ler a primeira página, é alguém a quem a leitura não serviu de nada.
O que queremos da literatura é o que queremos da vida: queremos que nos transforme. Não quero chegar ao dia 1 de Janeiro do próximo ano igual à pessoa que era no dia 1 de Janeiro do ano anterior. (...)»
[Frederico Lourenço, O Lugar Supraceleste, Ed. Cotovia, Lisboa 2015]

O que é bonito é p´ra se ver!

E o que é bom ainda mais!

Eisenstein

Apareceu no mercado um pequeno pack de filmes de Serguei Eisenstein: O Couraçado Potemkin, Outubro, Alexandre Nevsky e Ivan o Terrível.
A história da Rússia ao longo de séculos não é coisa que ande fresca na memória das gentes, mesmo quando nela existem mais que ecos dispersos. Menos ainda para quem tão mal conhece a sua própria história.
O rigor histórico, o requinte cinematográfico, a mestria elaborada das montagens, a violência das elites sobre o povo; a modernidade narrativa, a denúncia dos jogos de poder, as duplicidades e conflitos de interesses... fazem de Eisenstein um génio da modernidade em cinema.
A quem dava um jeitão conhecê-lo bem hoje era à tropilha do palhaço pintado do Texas!
(Boiardos, poderosos membros da aristocracia russa, do séc.X ao séc. XVII).

sábado, 28 de janeiro de 2017

À pala do império!

Chove em múltiplas salas de aula, por esse país fora. O liceu Alexandre Herculano entra em ruína no Porto.
Ao tempo, esse governo de sipaios brancos que andou aí a atraiçoar Portugal logo tratou de garrotar a ministra sinistra, a tal da renovação do parque escolar.
Mais uma vez a pátria se fodeu, à pala do império.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Contada doutra maneira

A condesia só chegou à aldeia nova pela mão duma condessa que ainda hoje não sabe como veio parar ali, vinda de longe. Mas as honras chegaram e instalaram-se.
Morreu um dia a condessa, seria o mais natural. E o velho conde arrimou-se a uma criada, de todas a mais composta. Fez-lhe uma casa do outro lado da cascata, mesmo em frente da janela. E deixou-lhe em usufruto uma courela, enquanto ela fosse viva. Depois regressaria ao património.
O mundo lá seguiu o seu caminho, hoje nada disso existe, é doutro modo. A vida é que não mudou, contada doutra maneira.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Anubis

Para quem ainda não vive na gaveta dum jazigo (é muito mais fácil isso acontecer do que parece!), há sempre uma surpresa. Aconteceu-me isso ao descobrir Anubis nas mãos dum amigo.

«Na Guarda não abundam as messes. Há que ser um insecto para sobreviver na região. À formiga artista chamo de mirmidão.
Há muito mirmidões espalhados por aqui, cada qual com seu mérito. Américo Rodrigues desenvolve trabalhos dum modo aberto, e apoia aos mirmidões da cidade. Para mim ele tornou-se uma espécie de estandarte da viragem do século, sem querer eu desconsiderar os que contribuíram servindo de inspiração.
Da minha parte, sempre me senti como um escaravelho; tento rebolar com o meu pequeno globo de modo independente, na intimidade dos mais próximos. E é o que pretendo continuar a fazer.
Com estas palavras gostaria de deixar patente o reconhecimento pela colecta cultural que tem sido deduzida na Guarda, ao longo dos últimos vinte anos (tenho 34), através de muitas formigas; algumas agora vivem fora, outras suspenderam a actividade, outras insolveram... 
Tal colecta pode perigar pela dispersão de tão pequena (mas bem enraizada) comunidade.»

79 - bis infinito
1 - como um cão não pode
deixar de ser cão, como um gato
deixar de ser gato: assim o galo 
de galo, e o cão ladra de maneira
respeitável, e o gato mia adoravelmente; 
já o galo garatuja como gatafunha:
lê-lo uma vez é lê-lo todas, vê-lo
uma vez é vê-lo todas.

2 - leva-lhe galinhas
e tas galará, choca seus ovos
e receberás pintainhos saltitando
entre conversas infantis sem
outras ambições que um bis
infinito, os cães serão sempre
cães, os gatos gatos; e o galo não
cessará de cucuricar quantas 
vezes lhe apetecer da única
maneira que sabe fazer.

(Rodrigo Coelho dos Santos)

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Há muito mais marés que marinheiros!

«Depois duma noite de arrebatada invernia, de temporal desfeito, palavras estas que já nasceram emparelhadas, as primeiras não tanto, e umas e outras tão pertinentes à circunstância que forram o trabalho de pensar em novas criações, bem poderia a manhã ter despontado resplandecente de sol, com muito azul no céu e joviais revoadas de pombos. Não estiveram para aí virados os meteoros, as gaivotas continuam a sobrevoar a cidade, o rio não é de fiar, os pombos mal se atrevem. Chove, suportavelmente para quem desceu à rua de gabardina e guarda-chuva, e o vento, em comparação com os excessos da madrugada, é uma carícia na face. Ricardo Reis saiu cedo do hotel, foi ao Banco Comercial cambiar algum do seu dinheiro pelos escudos da pátria, pagaram-lhe por cada libra cento e dez mil réis, pena não serem elas de ouro que se trocariam quase em dobro (...). Lembra-se de ali se ter sentado em outros tempos, tão distantes que pode duvidar se os viveu ele mesmo, Ou alguém por mim, talvez com igual rosto e nome, mas outro.(...)»

Saramago cultiva neste romance muita digressão, reflexão e retórica discursiva. Haverá quem aprecie. 
Sobram-me do Nobel, e bastam-me, o Levantado do Chão, o Memorial do Convento, o Ensaio sobre a Cegueira e a Viagem a Portugal, que são, (foram!), um espanto. Para o resto falta-me o tempo.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

domingo, 22 de janeiro de 2017

Benesses de leitor

Releio o Ensaio de José Saramago. E pasmo. 
Deste trabalho de Sísifo, da violência que encerra, da sua profunda humanidade, e da actualidade visionária. Entre outras coisas, a literatura é isto.

«(...) Atravessaram uma praça onde havia grupos de cegos que se entretinham a escutar os discursos doutros cegos, à primeira vista não pareciam cegos nem uns nem outros, os que falavam viravam inflamadamente a cara para os que ouviam, os que ouviam viravam atentamente a cara para os que falavam. Proclamavam-se ali os princípios fundamentais dos grandes sistemas organizados, a propriedade privada, o livre câmbio, o mercado, a bolsa, a taxação fiscal, o juro, a apropriação, a desapropriação, a produção, a distribuição, o consumo, o abastecimento e o desabastecimento, a riqueza e a pobreza, a comunicação, a repressão e a delinquência, as lotarias, os edifícios prisionais, o código penal, o código civil, o código de estradas, o dicionário, a lista de telefones, as redes de prostituição, as fábricas de material de guerra, as forças armadas, os cemitérios, a polícia, o contrabando, as drogas, os tráficos ilícitos permitidos, a investigação farmacêutica, o jogo, o preço das curas e dos funerais, a justiça, o empréstimo, os partidos políticos, as eleições, os parlamentos, os governos, o pensamento convexo, o côncavo, o plano, o vertical, o inclinado, o concentrado, o disperso, o fugido, a ablação das cordas vocais, a morte da palavra. (...)»
[Ensaio sobre a Cegueira, José Saramago, Ed. Caminho, Lisboa, 1995, pág. 295]

sábado, 21 de janeiro de 2017

Ao sol

Às vezes tiro-me de cuidados, saio de casa e vou. A apanhar sol, quando o há.
Aqui paro, ali escuto e além olho.
Vejo os infantes, e as mães e os pais deles, que foram almoçar ao restaurante.
Não quero ver o que vejo. Fecho os olhos e já volto a casa. E assim fujo!

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Patoléus e pancas

Uma coisa e outra costumam ser fatais, quando se juntam. É o caso daquela mãe, que tem a panca dos Mercedes reluzentes, e a do filho, que se pela por BMW's que dão 300 Kms. E serão inadimplentes, um e outro, logo que o barro de que ambos são feitos deixar de gerar suor. 
Mas só terão um sono sossegado e sorridente com latas dessas à porta. Estranha condição!

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Poesia


Se fosses pássaro baterias as asas para destruir a armadilha
Se fosses insecto deixarias círculos apenas ao redor da luz
Se fosses abelha farias zumbir a revolta
Mas és voo pela sombra
Se fosses formiga carregarias a ordem, armazenarias a fadiga
Se fosses flor polinizarias a terra
Serias coroa incorruptível
Se fosses flor através da estações

(Poesia, Daniel Faria, Ed. Quasi, Vila Nova de Famalicão, 2006)

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Tripas falantes

A espécie de prof. Karamba, que é o Francisco Louçã, também lê o futuro nas tripas dos frangos das arcas do Pingo Doce!
No tempo do PEC 4, descobriu que recusar o Pec era já começar a sair da crise.
Desta vez prevê apenas que a Mariana Mortágua há-de ser ministra das Finanças. Não diz como, nem diz quando. Nem sequer se ela também vai usar dois balões de hélio ao peito. 
Bardamerda para esta gente!

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Textos de luxo, que o tempo não oxida

Fica aí mais um excerto:
«(...) ordeno que a todos os corregedores do reino se mande que reúnam e enviem para Mafra quantos operários se encontrarem nas suas jurisdições, sejam eles carpinteiros, pedreiros ou braçais, retirando-os, ainda que por violência, dos seus mesteres, e que sob nenhum pretexto os deixem ficar, não lhes valendo considerações de família, dependência ou anterior obrigação, porque nada está acima da vontade real, salvo a vontade divina, e a esta ninguém poderá invocar, que o fará em vão, porque precisamente para serviço dela se ordena esta providência, tenho dito.
Ludovice acenou a cabeça gravemente, como quem acabasse de verificar a regularidade duma reacção química, os secretários escrituraram velocíssimas notas, os camaristas entreolharam-se e sorriram, isto é que é um rei, o doutor Leandro de Melo estava a salvo desta nova obrigação porque na sua comarca já não havia quem trabalhasse em ofícios que não servissem o convento, por via directa ou indirecta.
Foram as ordens, vieram os homens. De sua própria vontade alguns, aliciados pela promessa de bom salário, por gosto de aventura outros, por desprendimento de afectos também, à força quase todos. Deitava-se o pregão nas praças, e, sendo escasso o número de voluntários, ia o corregedor pelas ruas, acompanhado dos quadrilheiros, entrava nas casas, empurrava os cancelos dos quintais, saía ao campo a ver onde se escondiam os relapsos, ao fim do dia juntava dez, vinte, trinta homens, e quando eram mais que os carcereiros atavam-nos com cordas, variando o modo, ora presos pela cintura uns aos outros, ora com improvisada pescoceira, ora ligados pelos tornozelos, como galés ou escravos. Em todos os lugares se repetia a cena, Por ordem de sua majestade vais trabalhar na obra do convento de Mafra, e se o corregedor era zeloso, tanto fazia que estivesse o requisitado na força da vida como já lhe escorregasse o rabo da tripeça, ou pouco mais fosse que menino. (...)
Corriam as mulheres, choravam, e as crianças acresciam o alarido, era como se andassem os corregedores a prender para a tropa ou para a Índia. Reunidos na praça de Celorico da Beira, ou de Tomar, ou em Leiria, em Vila Pouca ou Vila Muita, na aldeia sem mais nome que saberem-no os moradores de lá, nas terras da raia ou da borda do mar, ao redor dos pelourinhos (...)».
(Memorial do Convento, José Saramago, Ed. Caminho, Lisboa 1982)

domingo, 15 de janeiro de 2017

sábado, 14 de janeiro de 2017

Mercedes Sosa

Quando a voz mais funda dos povos se faz ouvir...

Lev Tolstoi

Prefácio:
Este livro tão breve, uma das maiores obras-primas do espírito humano, tem sido, desde a sua publicação, um motivo de controvérsia para a crítica: trata-se de uma obra sobre a morte ou de uma obra que nega a morte?
Lukacs, por exemplo, defendia a segunda hipótese, contrapondo o Llanto por Ignacio Sanchez Mexias, de Federico Garcia Lorca, como o grande texto acerca do fim. Embora eu concorde com parte dos argumentos de uns e outros é um tipo de discussão que só academicamente me interessa: a morte de Ivan Ilitch é ambas as coisas e transcende tudo isso, para se tornar o retrato implacável da nossa condição: não há sentimento que nele não figure, não há emoção que não esteja presente. Tudo o que somos se acha em poucas páginas, escrito de uma forma magistral.
Li-as, maravilhado, umas vinte ou trinta vezes, continuarei a lê-las, maravilhado, até ao fim dos meus dias. Maravilhado, exaltado, comovido, a perguntar-me como é que ele conseguiu. E conseguiu. Reparem no que Tolstoi faz com as palavras e como nos retrata, de corpo inteiro, no mais íntimo de nós mesmos.
António Lobo Antunes
Há palavras tão perfeitas, tão exactas, que temos que dar a volta ao mundo antes de as poder ouvir!

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Papa Haydn

Nunca foi indispensável que os poderosos se dessem à trabalheira de produzir arte, sempre lhes bastou pagá-la para dela poderem usufruir. 
Ao tempo em que Napoleão andou pela Áustria, Haydn vivia nos arredores, ao serviço dos serões do palácio da família Esterhazy. 
Os logradouros do palácio eram empedrados, e neles produziam as ferraduras dos cavalos um grande estardalhaço.
Napoleão ordenou que as patas dos cavalos fossem protegidas durante as manhãs, para evitar que a tropeada perturbasse o papa Haydn, como lhe chamava. 
É que nem no paraíso terreal a vida foi de outro modo!
(3º andamento da sonata para flauta e piano)

Who cares?! - diz o palhaço rico pintado de amarelo, a entrar na Casa Branca.

Três falhanços do negro Obama são a imagem da América verdadeira:
- Não conseguiu fechar Guantanamo, essa papaia podre que vai cheirar mal nas mãos do Ocidente;
- Não partiu os dentes à NRA, que mantém à cintura da América 350 milhões de armas, ligeiras e mais pesadas;
- Não deu saúde a 50 milhões de americanos, que não têm meios de pagar um seguro.
Porém, who cares?!

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Adamastores de papel

A vilória, que não vem no mapa, tem uma avenida Gago Coutinho e Sacadura Cabral ao meio. Em volta dela espalham-se arrabaldes, onde há anos se secava o milho no final do Verão, quando o havia. O burro ficava preso numa ferradura entalada na parede. E nada mais existia nem existe. Por isso é na avenida que os novos adamastores instalaram o circo.
A única coisa que os motiva são as coimas do trânsito: são elas que os justificam, que lhes fazem currículo, lhes arredondam a bolsa doméstica e compõem o orçamento das finanças.
Este escriba já foi mimoseado com uma coima transitória de 250 euros, e a pena acessória de perder a carta de condução durante o máximo de um ano. Será um exercício gratuito e muito doloroso, mas na minha longa vida já vivi coisas piores.
Tudo o resto que diz respeito ao trânsito lhes é indiferente: os imbecis que viajam de farolada ligada a encandear os outros, às vezes um farol caolho, outras vezes a sair do nevoeiro sem uma candeia acesa. Na noite de fim de ano, por essas estradas, sete condutores foram parar à morgue. Mas tudo isso é indiferente a estes parasitas.
Calçados nas botas de cavaleiros do regulamento, falam grosso aos cidadãos comuns na avenida Gago Coutinho que não vem no mapa. Talvez se fodam.

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Satie

Gymnopédie 1.

Grão de areia

Sei que é um sobressalto na engrenagem. Porém é necessário, se não imperioso. Ainda anda aí em certos círculos, não se pode ignorá-lo.
Em tempos que já lá vão, sempre que Savimbi andava politicamente na mó de baixo, vinha a família Soares em socorro.
João Soares sobreviveu ao desastre na Jamba com fortíssimos danos. O avião despenhou-se à descolagem, carregado de marfim. Porquê?
Como se justifica a peripécia?
A pergunta fica aí.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Memorial

Releio o Memorial do Convento. E é verdade o que Saramago disse: 80% da literatura é linguagem.
Era. Porque hoje ninguém sabe o que isso seja, além da imagem duma ignorância negra. É o que o mercado fez dela.

«(...) Nas janelas só há mulheres, é esse o costume. Os penitentes vão de grilhões enrolados às pernas, ou suportam sobre os ombros grossas barras de ferro, passando por cima delas os braços como crucificados, ou desferem para as costas chicotadas com as disciplinas, feitas de cordões em cujas pontas estão presas bolas de cera dura, armadas de cacos de vidro, e estes que assim se flagelam é que são o melhor da festa porque exibem verdadeiro sangue que lhes corre da lombeira, e clamam estrepitosamente, tanto pelos motivos que a dor lhes dá como de óbvio prazer, que não compreenderíamos se não soubéssemos que alguns têm os seus amores à janela e vão na procissão menos por causa da salvação da alma do que por passados ou prometidos gostos do corpo.
Presas no alto gorro ou na própria disciplina, levam fitinhas às cores, cada um a sua, e se a mulher eleita que à janela anseia de angústia, de piedade pelo amador sofredor, se não também de gozo a que só muito mais tarde aprenderemos a chamar sádico, não souber, pela fisionomia ou pelo vulto, reconhecer o amante na confusão dos penitentes, dos pendões, do povinho derramado em pavores e súplicas, do vozear das ladaínhas, do bambear desacertado dos pálios, dos cabeceamentos bruscos das imagens, adivinhará ao menos pela fitinha cor-de-rosa, ou verde, ou amarela, lilás, se não vermelha ou cor do céu, é aquele o seu homem e servidor, que lhe está dedicando a vergastada violenta e que, não podendo falar, berra como o toiro em cio, mas se às mais mulheres da rua, e a ela própria, pareceu que faltou vigor ao braço do penitente, ou que a vergastada foi em jeito de não abrir lanho na pele e rasgões que cá de cima se vejam, então levanta-se do coro feminil grande assuada, e possessas, frenéticas, as mulheres reclamam força no braço, querem ouvir o estralejar dos rabos do chicote, que o sangue corra como correu o do Divino Salvador, enquanto latejam por baixo das redondas saias, e apertam e abrem as coxas segundo o ritmo da excitação e do seu adiantamento. (...)»
O que hoje se passa nas Filipinas tem antecedentes muito antigos, no Corpo de Deus lisboeta.

domingo, 8 de janeiro de 2017

Emperor

Piano concerto nº5.

Em alta

Ando por essas estradas e constato: 98% dos carros com que me cruzo são mercedes reluzentes, são bmw's que dão 300 kms, são audis carregados de argolinhas!
Só me sobra uma questão: quantas voltas ao mundo têm que dar os portugas indígenas, até perceberem que isto não é o da Joana?! 

sábado, 7 de janeiro de 2017

Porque impossíveis não há...

Se alguma vez tal coisa chegar a existir, o que não é nada fácil, foi este o pai de Portugal moderno.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Benesses de leitor

"O que tiveres a dizer, (ou mais exactamente aquilo que não podes deixar de dizer!), é a primeira coisa fundamental. A segunda coisa fundamental é o modo como o dizes. 
E não há mais segredo nenhum na literatura."
Já foi aqui dito um dia, e ainda é verdadeiro. Para não dizer que o é cada vez mais.

«Certa vez, no Norte de Angola, debaixo dum calor infernal, o então tenente-coronel António de Spínola , na companhia do capitão Leandro Carraça, do furriel António Mendes e do soldado Jacinto Marta, ordenou a este último que parasse o jipe. Por cima das densas copas das árvores adivinhava-se um céu de chumbo e, apesar de serem três e meia da tarde, seguiam de faróis acesos. O soldado Jacinto Marta obedeceu prontamente à ordem, e o tenente-coronel António de Spínola apeou-se num salto aparatoso, sem, no entanto, deixar cair o monóculo e o pingalim. Depois virou-se para o capitão Leandro Carraça e para o furriel António Mendes e pediu-lhes que fizessem o favor de o seguir.
O capitão Leandro Carraça, no tom ponderado que lhe era habitual, fez notar que talvez não fosse boa ideia o soldado Jacinto Marta ficar ali sozinho e sugeriu que o furriel António Mendes permanecesse, igualmente, junto da viatura. Argumentou, ainda, mas agora num tom irónico que não lhe era nada habitual, que dois oficiais bastariam para resolver o assunto.
Tanto o furriel António Mendes como o tenente-coronel António de Spínola perceberam que aquelas últimas palavras do capitão Leandro Carraça, realçadas pelo tom irónico com que haviam sido proferidas, não significavam a tentativa de desvalorizar o assunto que estava por resolver, bem pelo contrário, mas eram o resultado de um sentimento agudo de culpa, fruto de uma consciência em permanente observância e autocensura. Porque, sempre que algo de errado se passava com um dos seus homens, o capitão Leandro Carraça sentia-se imediatamente o principal responsável. Pior: o único culpado.
O tenente-coronel António de Spínola conhecia muito bem o capitão Leandro Carraça e admirava-o, também, por essa característica. Esteve prestes a sugerir-lhe que fosse resolver o assunto sozinho, mas temeu ser mal interpretado. Desapareceram os dois no meio do mato.
Dentro do jipe, ansioso por usufruir da liberdade que lhe conferia a momentânea ausência dos dois oficiais, o soldado Jacinto Marta aproximou-se do furriel António Mendes e perguntou-lhe baixinho, com a boca quase colada ao ouvido, se achava que o tenente-coronel António de Spínola, antes de se pôr a mijar, tirava as luvas. (...)
O soldado Jacinto Marta perguntou ao furriel António Mendes se achava que o tenente-coronel António de Spínola e o capitão Leandro Carraça iriam conseguir convencer o sargento Raul Figueira a descer da árvore e a voltar para o aquartelamento. O furriel António Mendes respondeu que o tenente-coronel António de Spínola era um militar muito persuasivo e o capitão Leandro Carraça um homem bom, e que essa duas qualidades juntas talvez conseguissem demover o sargento Raul Figueira da ideia de ficar a viver em cima duma árvore até a guerra acabar. Além disso, já tinham passado três dias, e o homem devia estar cheio de sede e de fome. (...)
As bátegas de água fustigavam-nos violentamente, e o caminho de terra parecia, agora, um autêntico rio de lama. O soldado Jacinto Marta apresentava notórias dificuldades em controlar a viatura, e nem a presença de um dos mais altos graduados de toda a hierarquia militar portuguesa o inibia de interpelar, alternadamente, e com igual devoção, S. Jerónimo, Nossa Senhora da Conceição e a cona da tia Alice. (...)»

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Registo elegíaco

Vem isto à conta de fragilidades várias, e a propósito dum robalinho grelhado com que hoje matei a galga. Robalo de aquacultura, que outros já deixou de haver. 
Fez-me recordar um verdadeiro, que há muitos anos vi no mar Cantábrico de la Coruña, preso no anzol dum pescador de praia, em Barranhã. 
Não se pode esquecer uma coisa daquelas. Nem o robalo a debater-se na areia, nem a mulher que me levou ali. A última que visceralmente me apreciou, e que merece registo. Pois continuamos sem saber o que seria este mundo sem as mulheres.

F. Mendelsohn Bartoldi

Mauricio Pollini.

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Cavalarias

Era novo, corria os sertões dos bailundos à desfilada, de sabre desembainhado. Os cavalos tinham vindo da Argentina porque alguém os considerou os melhores que havia no mercado, a pacificar cuamatos. Não eram já os tempos do João de Almeida, estes agora exigiam comandos mais modernos. E a sua coluna aguentou-lhe as cavalgadas, nada que um espírito devotado e jovem não pudesse encaixar.
Porém o tempo passou. E agora há vértebras que foram danificadas, e discos esfacelados, e dores que resistem a medicações. Quando elas vêm perde o equilíbrio, chega a desabar na rua. Os serviços do hospital não dão para as encomendas, os médicos não estão lá, que foram para melhores lugares a governar a vida. 
Já nem lhe dá para pintar, fechou o atelierTem uma mulher fiel, três filhos que seguiram artes, uma cadela dócil e muitos sofrimentos. Ainda fuma, que ninguém pode prescindir de tudo. A cabeça povoada de lembranças ainda a tem, outros se acharão pior. E quando a pátria precisar de militares, chama-se o conde de Lippe.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

À falta de melhor...

O palhaço rico pintado de amarelo não brinca em serviço. Rodeia-se de anjinhos de asas brancas para a tomada de posse.  (tomado daqui)

Schubert

Sinfonia nº 9 (a partir do min. 17:30)

domingo, 1 de janeiro de 2017

Doze sultanas, já que passas não há!

«O Mendes, sempre com aqueles casacos de feira, de napa, castanhos ou pretos, as mangas arregaçadas até metade do antebraço, os trejeitos da boca, as frases mal escolhidas, eram como se apedrejasse alguém, e aquela maneira de falar, da rua, em que se comem vogais e se acentua os ésses no final das palavras. O Mendes, que conta anedotas sobre pretos, mulheres, alentejanos, que chega ao pé de nós e diz: um inglês, um francês e um português entraram num bar, e nós reviramos os olhos, e depois ele  fala do Benfica, da cegueira escandalosa dos árbitros. O Mendes, sempre com a barba muito bem feita, um bocadinho de papel higiénico na curva do maxilar, um bocadinho de papel higiénico que serviu para estancar o sangue de um pequeno corte, as patilhas demasiado cortadas, o cheiro a after-shave e a colónia comprada na drogaria. O Mendes, quem diria?

Quando cheguei a casa subi ao terraço. Olhei lá para baixo, fechei os olhos e inspirei profundamente. Estava calmo, mas sentia-me muito cansado, estava na altura de desistir. Tinha as pernas dormentes, tão dormentes como a paisagem, a vida, essas coisas. Debrucei-me um pouco. A frase da Samadhi voltou a soar na minha cabeça. Quando ela encostou a porta agarrei-a pelos ombros e repeti: o Mendes? Ela irritou-se e disse: O Mendes tem muita coisa boa, se não tivesse, a tua mulher não se teria metido na cama dele durante mais de dois anos. E isto agora fazia-me um eco enorme dentro da cabeça: durante mais de dois anos, durante mais de dois anos, durante mais de dois anos.
Os carros lá em baixo, o meu cansaço a escorrer pelo corpo, pelos braços, a encravar-se nas unhas, um cansaço indolente, parecia um gato a roçar-se nas pernas de uma velha, e lá em baixo as pessoas pequeninas, os carros pequeninos, a vida pequenina, tudo a passear o tédio pelas ruas, e o eco, durante mais de dois anos, durante mais de dois anos, durante mais de dois anos. É agora, pensei enquanto me preparava para subir para o murete do terraço.
E optei pela frase mais chavão de todas: Adeus, mundo cruel.
Não havia maneira mais torpe de morrer. Até naquele momento patético eu era absolutamente ridículo.
Repeti: Adeus, mundo cruel.
O Mendes, com o seu casaco de napa, mangas arregaçadas até meio do antebraço, não diria melhor.»