quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Ri-te, ri-te!

"O meu avô fazia tijolos
O meu pai fazia tijolos
Eu ando a fazer tijolos
E a minha casa onde está?"

[Fellini, Amarcord, operário poeta]

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Vindo do nada é mais longe

A casita era mais baixa, hoje nem parece a mesma. Tinha uma escada interior e uma cozinha de lastro. A lenha vinha da aldeia ao lombo da marquesa, e eu vivi nela seis meses de transição num colégio particular, quando deixei para trás o Cícero das Catilinárias e entrei no mundo profano.
A alma doce da minha avó materna fazia-me a comida, e a dona Adriana pôs-me em dia com as ciências naturais, que eu não tinha no currículo.
O Crespo tinha então, lá fora da muralha, uma construção anexa onde guardava um cavalo. Hoje transformaram-na em garagem, e o povo guarda lá dentro audis e beémes de barriga apodrecida pelo sal das estradas da Europa. Mas enquanto foi uma estrebaria, o doutor precisava dum palafreneiro. E eu servia às mil maravilhas.
Então disse-lhe o meu pai a única palavra certa duma vida: o rapaz diz que quer escrever livros!
O doutor achou que o mundo estava perdido. E o cavalo ficou sem palafreneiro.

terça-feira, 28 de novembro de 2017

Se foi deus que os engendrou, conforme consta, porque é que os não atura?!

Nunca vi tamanha violência concentrada. Um dia uma vaca leiteira não se ajeitava ao rego. Ele prendeu-a a um pinheiro e desatou à bastonada nela com um estadulho.
A pobre da vaca tanto puxou que estoirou a corda e fugiu para casa em pânico. E só a mulher lhe pôs a mão em cima.
Os deuses que o lá têm se encarreguem dele. Já que o engendraram.

Muitos anos depois, mutatis mutandis...
"Manuela Costa tinha 35 anos. Às 7H45 duma manhã de inverno apareceu no posto da GNR de Montemor-o-Velho  com a filha de 5 anos. O marido e pai da filha, de quem estava separada, fora de madrugada à casa onde vivia com os dois filhos (o casal também teve um rapaz, então com 13) espancara-a, e quando ela e a filha fugiram, de pijama, para o quintal, ameaçou ir buscar uma caçadeira para a matar.
Após registar a denúncia, a GNR chamou uma ambulância para levar Manuela ao hospital da Figueira da Foz. Pouco após o início da viagem de menos de 20 kms, surgiu um carro atrás da ambulância. Era o agressor. Este, após resistir a várias manobras do perseguidor para imobilizar a ambulância, decidiu voltar para o posto da GNR. Vários militares, alertados por um telefonema de Manuela, estavam no passeio para os receber. (...) Este disse-lhes, em tom sério e grave, que estivessem quietos, que saíssem dali senão os matava, e que sabia que a sua mulher estava dentro da ambulância. Atemorizados e temendo pelas suas vidas, não esboçaram qualquer gesto.
Dois tiros perfuraram-lhe os pulmões, fígado, traqueia e aorta. Projécteis atingiram também a criança no abdómen, num braço e numa perna. Manuela morreu.
Foda-se! - isto digo eu.

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Romancistas



Entre romances e novelas, o que Manuel da Silva Ramos tem publicado conta-se às centenas. Hoje trouxe-o para casa à falta de melhor.
Um dia, há muitos anos, ouvi-lhe prometer um romance de mil páginas, ainda bem que não chegámos a tantas.
Este é um mergulho no nada, coisa que me não surpreendeu. Mas se pudesse metia ao bolso 14 euros que paguei à Parsifal e devolvia o trabalho. Porque a paciência tem limites.

"(...) A história da merda em Portugal ainda está por fazer. Neste capítulo a discrição é de rigor. Nem os vivos, nem os mortos falam do que fazem. Quanto aos escritores, que deviam naturalmente falar disso, ocultam-no, salvo quando têm cães. Sou o único tuga a falar da porcaria que se expulsa a pulso. O resto da população vive no segredo condescendente. Vou pois contar a história da merda desde os primórdios da nacionalidade (...)."

domingo, 26 de novembro de 2017

Retornados

Ainda há, por aí sobreviventes. E alguns se lembrarão de que voltaram dos destroços do império numa ponte aérea internacional, e vieram encontrar nas suas terras bairros de pré-fabricados suecos, para albergar os que acreditaram em tudo e chegaram aí sem nada.
A mim comovem-me.
Hoje já poucos se lembram. E a maior parte esqueceram, finalmente, o grande logro que a história lhes impingiu.

sábado, 25 de novembro de 2017

Dia da raça

Falam-nos dum passado de marinheiros audazes, em que nos fomos ao mar, a descobrir novos mundos que demos ao mundo velho.
Do mar trouxemos por junto uma epopeia de mitos, feita de deusas carnudas, e uns tantos heróis pintados, e adamastores de papel.
Arrenego um tal passado. Que ou não somos, agora, o que já fomos, ou  nunca fomos o que nos dizem que somos.
Levaram-nos, é o mais certo, a fingir o que não fomos. Se assim foi, nunca seremos o que nos dizem que somos.

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Ivões

Ouvi-a ao Barroco Esperança, no Ponte Europa. Mas a quem ela daria muito jeito era ao ministro da Educação: resolvia dramas grandes com pequenas soluções.
No tempo da puta da outra senhora, a educação do povo não se justificava. E às crianças bastava ler, e pouco, fazer umas contas básicas e pronto.
Por isso as professoras cediam lugar às regentes escolares, cujo saber mal dava para gastos domésticos. E era uma que dizia: já copeiam, já devedem, o pior são os ivões.
Dez e vai um; onze e vão dois; doze e vão três...
Verdade ou pura mentira, é do caraças!

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Cândida

Vive além naquela casa grande, ao fundo da vereda. Mas nunca gostou de morar fora do povo, aqui no descampado. E agora ainda por cima está sozinha, desde que enviuvou.
Antigamente a vida era diferente e até os dias lhe pareciam mais pequenos, sempre numa fona entre a cozinha e a horta, o asseio da casa e as lixaradas que o vento juntava no pátio. Mas agora tornaram-se tão grandes, e tão pesados às vezes, que mal os consegue suportar. Só a poder de tristeza e solidão.
Metade da casa não parece sua, fechou a porta que dá para o corredor e nem lá entra. Só para se defender. As latas das sardinheiras que rodeiam o pátio ficam semanas sem uma atenção. O que lhes vale é serem resistentes e saberem esperar. Agora tem muita pena, mas foi assim que as sécias lhe morreram.
Esta lembrança das sécias deixa-a numa aflição, fá-la sentir-se culpada da morte do marido naquela manhã. Ele em frente do espelho, a deixar de ver no queixo a espuma da barba, a queixar-se das tonturas. Ela chegou a correr, e ele dobrado por cima do lavatório, ele a estender a mão à procura da parede, ele a pedir-lhe que lhe limpe um suor frio na testa. E ela a ficar ali atarantada, a telefonar ao cunhado em vez de ligar para as ambulâncias, o cunhado a tirar o carro da garagem, a levar o irmão ao consultório do médico, e o médico sem atentar no que fazia, sem perceber o que se estava a passar, sem o despachar logo para as urgências, o médico a escrever uma carta vagarosa para os colegas do hospital, a mandá-lo seguir no carro co cunhado em vez de reclamar os bombeiros, o tempo a passar e os dois a gastá-lo na sala de espera, sem que nenhuma enfermeira reparasse nele, sem que a menina da bata lhe adivinhasse o nome e viesse chamá-lo, senhor Manuel dos Santos.
Ah, se ela tivesse aprendido que havia ambulâncias quando se deixa de ver a espuma da barba em frente do espelho, se ela tivesse escrito num papel o telefone dos bombeiros, se ela ao menos soubesse conduzir, talvez o Manel não tivesse morrido de abandono, cercado de tanta gente, ali à entrada das urgências do hospital da cidade!
O certo é que o marido lhe morreu, porque o tempo foi demais. Tão comprido o tempo dele, nesse dia, conforme o dela é hoje, que só a poder de tristeza e solidão lhe consegue resistir.
A casa, grande demais, ambos a ganharam na Alemanha, há trinta anos atrás. Deixaram o filho em casa do avô e ala moleiro! Bem lhe custou como mãe. E mais lhe custaria se soubesse o que sabe hoje, porque a criação do filho não foi bem o que devia. Sobre o mais, era aquela língua tão arrevesada que nuca foi capaz de lhe meter o dente. Mas os peixes na fábrica também não falavam, os peixes que ela amanhou anos a fio, a metê-los nas latas e nos frascos, sem dizer uma palavra. Para já não falar do frio, que lhe incendiava os dedos, na água onde nadavam barbatanas e tripas. De vez em quando havia quem metesse uma krankada, mas ela nunca o fez. E se não fossem as férias que vinham em Agosto não se tinha aguentado. A  bem dizer, ainda hoje não sabe se valeu a pena tanto sacrifício.
Mas este ano já prometeu à Dulce que não vai ficar aqui sozinha. Quando as vindimas vierem, já prometeu à Dulce e à Armandina que há-de ir com elas para o Doiro. Há-de apanhar, madrugada, a camionete que as vai levar e trazer. Não será lá grande coisa. Mas poder ser que as férias em Agosto aconteçam outra vez.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Primaveras

Em tempos que já lá vão, a dona NATO andou atarefada à caça do Kadhafi. Eram franceses, eram italianos, era o que houvesse. A imprensa da propaganda fazia de coro trágico, e o Kadhafi, que dormia numa tenda de amazonas, acabou sodomizado depois de morto, num esgoto qualquer.
Hoje a Líbia é um país absurdo, mas ainda há ecos dessas peripécias. Que a alguém sairão do pelo.

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Se tivesse sido um bicho...

Quanto mais tempo passa por mim e eu por ele, quanto mais oiço e conheço das esquecidas artes musicais; mais funda é a  minha convicção de que Johann Sebastian Bach foi um génio. Se tivesse sido um bicho, era um gato.
Pois que o protejam os deuses, e nos dêem a nós ouvido e tempo para o usufruir.

O último maçarico-esquimó

No longínquo Natal de 1977 fui presenteado em Berlim com a edição alemã desta novela notável, do biólogo canadiano Fred Bodsworth, falecido há uns anos. Como ela nunca existiu em versão portuguesa, traduzi-a mais tarde. E um dia decidi com um amigo proceder a uma edição feita por uns italianos.
É belíssima literatura para ambientalistas, espíritos preocupados com a extinção das espécies e outros leitores exigentes.

"Viaja sem descanso, do Árctico para Sul, levado pelo desejo de encontrar uma companheira. Luta encarniçadamente com o frio e a neve, com a chuva e os temporais, vence o Atlântico num voo ininterrupto de 60 horas, recobra novas forças no Orinoco e avança, procurando sempre, até à Patagónia. Mas o Verão passa e ele continua sozinho. E quando a esperança já quase lhe morreu aparece a desejada. Saúdam-se, entusiasmados, e iniciam juntos o regresso a casa. (...)".

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Licas

O Licas é o amigo mais composto que já fiz no autocarro. Logo que chego à paragem lá vem ele oferecer-me o pato de borracha, a melhor prenda que  tem.
Traz sempre o mesmo casaco, mas não cheira a mofo antigo nem a tabaco frio. Nunca empata o corredor, nem abusa do espaço do parceiro com a vastidão das cadeiras. Não se fica a ruminar a chicla de boquinha aberta. Não se enfeita com pregos nas orelhas, a ver se inventa uma personalidade. Não clama contra os políticos, que são todos uns ladrões. Não pára em segunda fila, nem avança no semáforo o seu Porsche Cayenne, obrigando o autocarro a uma travagem brusca. Nem se põe a publicar, em alta voz, as histórias da cunhada, que é uma cabra.
A dona do Licas apareceu esta manhã por trás da sebe, a compor o cinto do roupão. Vinha dizer-me que o bicho tem seis anos e que não se chama assim. Mas nem ela sabe do que fala nem é para aqui chamada.

domingo, 19 de novembro de 2017

Identidade

O meu cartão de identidade militar deixou de existir, basta-me um cidadão.
A licença de porte de arma depende agora dos critérios subtis dum agente da PSP.
A única coisa que resta é um cartão de saúde de reformado, pago a 3,5% mensais do valor da reforma.
É como se não tivessem existido anos de aviador em várias Áfricas, tão contingentes e perigosos como ficou visto.
Cá por mim, estes políticos futricas podem ir tranquilamente à bardamerda!

sábado, 18 de novembro de 2017

Sinais

Agora sei que ela passou, que os deuses dela a acolheram e a protegem.
Era uma noite sonhada, álgida, fria, estava ele deitado numa estranha cama e eu ao lado.
Ela chegou, abriu a porta e trouxe um riso muito doce. Cuidou dele, para mim sorriu.
Foi uma luz que entrou, e apaziguou o mundo.

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Bijagós

Em Bubaque havia uma baía e uma praia. E um cozinheiro cabo-verdiano que servia arroz de chabéu.
O arroz era das bolanhas da Bambadinca, e o chabéu eram os frutos das palmeiras. O resultado era um manjar dos deuses.
Eu tinha sofrido uma hipóxia mofina, que um regulador preguiçoso me causara. E se não tivesse atrás de mim o Vasquez que me levou para o chão, as coisas podiam ter sido bicudas. Que o chabéu, só por si, não faz milagres.

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Ingombota?!

"Auá!, nem a gente toda que está trabalhar lá na barragem ia encher essas ruas. O menino fala ali é o largo da Mutamba, mas não pode. Verdade que era ainda monandengue, mas lembrava bem esses tempos com as suas amigas da Ingombota, desciam até aos Coqueiros. Onde que estava o jardim com a estátua sem pessoa? E as grandes mulembas?"
Do que se trata aqui é de saber qual é a cidade onde existe um Largo das Ingombotas. E o que será ele isso.
As escolhas não são muitas.

terça-feira, 14 de novembro de 2017

Pernada

O solar foi feito por etapas, visíveis na fachada. E eu ainda conheci o conde velho, que só acedeu à condesia pelo casamento com a condessa, vinda de longe. Mas um dia ela morreu, e o conde velho só se via na missa, debaixo da boina basca.
Antes disso o irmão do conde passou aqui uns meses. Seguindo uns ecos de direito de pernada, tratou de fazer um filho numa criada. Daí nasceu o Firmino, que passou a ter trabalho e salário certo. Ocupava-se da cerca e dos jardins, e era um privilégio seu, num tempo e num lugar em que isso era impensável.
Um dia entrei no solar, não sei a que despropósito. E vi o preto, à entrada do salão dele. Era de pau, e tinha uma carapinha.
Há uns anos uma tropa de meliantes veio aí numa noite de inverno, trouxe uma camioneta, e não ficou nada dentro do solar.
Agora o conde novo, homem de indústrias, quando aqui passa nunca vai lá dentro. Que lhe falta o preto!

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Governanças

Os estaleiros navais de Viana do Castelo eram uma empresa pública extinta pelo governo do triste Coelho, duma Coelha exótica que a figura mostra a fazer não sei o quê, e do iluminado tripeiro Aguiar Branco na Defesa.
A empresa tinha adquirido aço para a construção de dois navios asfalteiros destinados à Venezuela, que não chegaram a ser construídos.
O aço foi adquirido à Macedónia, sem cumprimento básico de regras quanto à qualidade do aço.
Resta ao governo do Costa tentar evitar que ele seja considerado sucata desvalorizada, para escapar ao pior.

domingo, 12 de novembro de 2017

O fiscal

Há muitos anos, quando um estado muito antigo resolveu pôr de lado as estradas medievais e construir uma nova a partir do largo, vieram para a aldeia uns fiscais de obras. E um deles depressa lançou olhos às cachopas da terra.
A Fátima e a Lurdes consultaram a bruxa, quem o sabe. E deram-lhe a beber umas tisanas de ervagens misteriosas. O facto é que o fiscal começou a definhar. Perdeu o vigor, meteu os olhos no bolso e acabou por morrer a lançar pela boca bichagens estranhas.
Eu não acredito em bruxas, nem falsas nem verdadeiras. Pero que las hay...

sábado, 11 de novembro de 2017

Rifão

"Do cerejo ao castanho bem me avenho.
Do castanho ao cerejo mal me vejo."
Trata-se agora de fazer a hermenêutica da coisa.

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Mal contada

 
A padralhada resolveu erigir uma estátua ao Pe. António Vieira no largo de S. Roque, em Lisboa, onde em tempos se ia à missinha ouvir boa oratória. Suponho que foi à vida a figura do ardina que estava ali no largo.
O bom do padre protegia os índios, das missões dos jesuítas, contra os intentos dos bandeirantes. Mas estava-se nas tintas para os negros, que vinham de África agrilhoados, deitados nos convés dos negreiros.
A nossa história anda muito mal contada!.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Trapo

Tu é que não sabes, porque és muito novo. Mas já houve um tempo (eu vivi-o) em que a América mandava para Portugal trapo em fardos.
Eram roupas que os américas já não queriam, e desfaziam-se delas. Vendiam-se em Lisboa e cheiravam a Califórnia.

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Javalis

[DN]
 
A tuberculose foi em tempos uma doença endémica entre os portugueses. Depois deixou de ser, em resultado dos progressos na medicina e na higiene. Mais tarde voltou a sê-lo. E agora são os javalis das caçadas que contribuem para isso. Os veterinários mal chegam para as encomendas.

terça-feira, 7 de novembro de 2017

Privilégios

A fidalguia bebeu sempre do fino, não punha à mesa esses vinhotes palhetos sem terroir. Por isso o solar tinha em Fontelas, vizinha da Régua, uma vinha de benefício.
Ele mesmo foi feito por etapas, visíveis na fachada. Ainda conheci o conde velho, que só teve direito a honras e acedeu à condesia através do casamento com a condessa, vinda de longe.
Mas um dia ela morreu e o conde velho só se via na missa, em lugar próprio, ou quando passava na rua debaixo da boina basca.
Muito antes o irmão do conde passou aqui uns meses. E, num simulacro de direito de pernada, tratou de fazer um filho numa criada. Veio a nascer o Firmino, que havia de ter no solar trabalho e salário certo. Ocupava-se da cerca e dos jardins, e isso era um privilégio raro, num tempo e num lugar em que isso era impensável.
Um dia, ainda cachopo, subi a escadaria, entrei no solar e vi o preto de pau, à entrada do salão dele. Mas há uns anos uma tropa de meliantes veio aí, numa noite de chuva, trouxe uma camioneta, e não ficou nada dentro do solar. Nem o preto da carapinha.
Agora o conde novo, homem de indústrias, quando aqui passa recusa-se a ir lá dentro.

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Fellini irresistível

 
Há filmes que são bem feitos e nos encantam. Este é uma obra de arte que é obrigatório rever.
Itália dos anos trinta, fim do Inverno. Na praça faz-se uma fogueira dos trastes velhos, onde se queima "a velha". E a propósito desfila uma longa série de tipos e tradições populares hoje mortas: a malta juvenil e a escola, com destaque para o professor de grego; o advogado erudito, que explica a história e a arte pelas ruas, perante a geral indiferença; o poeta das obras, e o seu poema Tijolos; O meu avô assentava tijolos / o meu pai assentava tijolos / eu assento tijolos / e a minha casa onde está?!; as numerosas concubinas do emir turco, baixote, gordo e velho; a ascenção dum Mussolini minorca, em que tudo é a fingir, até a música dum gramofone, que uma noite no campanário debita a Internacional; o tio Teo, débil mental que está internado num hospital de malucos; sobe a uma árvore e fica lá horas a gritar voglio una donna; só uma freira anã o convence a descer.
 

sábado, 4 de novembro de 2017

Finch (harpa) e Keita (kora)

Aqui.

Sanssouci

 
Era mesmo aquilo que o nome diz, um lugar onde não havia preocupações. O imperador Frederico II fez dele um lugar assim, em Potsdam. 
Havia nele imitações de Versalhes, que foi o grande modelo. Tinha uma orangerie onde as laranjas não eram de Setúbal, uma galeria de pintura, e jogos de água em que nunca se deram batalhas navais. Voltaire andou muito por lá.
Nas redondezas, em Cecilienhof, reuniram-se os três da vida airada (Stalin, Truman e Churchill) para tratarem da saúde ao que restava de Hitler.
Em Portugal também houve ecos dessas rebaldarias. Em Queluz, uma rainha louca veraneava numa barcaça, na ribeira de Queluz. Até que o demo a levou.

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Cafres

É surpreendente (se antes não for revoltante) que na discussão do OE para o próximo ano alguém estenda um microfone activo a uma figura de ignorante primária como a Maria Luís Albuquerque. Que critica o OE como quem sabe alguma coisa do ofício.
Ela que, depois de posta na alheta há uns anos, foi meter nas mãos duns ingleses especuladores em dívidas públicas a agenda que teve como ministra das finanças dum governo de cafres como o Coelho.

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Farpas

Do Eça e da ramalhal figura, ainda está lá tudo, ou quasi. Mutatis mutandis. O que nos falta é lê-las e pensá-las.
"(...) Não se compra um livro de ciência, um livro de literatura, um livro de história. Lê-se Ponson du Terrail - emprestado. A indiferença do público reage sobre o escritor - a literatura extingue-se.
Nos teatros não se pede uma ideia: querem-se vistas, fatos ricos, mutações, mágicas. (...)
Os cafés são silenciosos, tristes. Meio deitados para cima das mesas, os homens tomam o café a pequenos golos, ou fumam calados. A conversação extinguiu-se. Ninguém possui ideias originais próprias. Há quatro ou cinco frases feitas de há muito, que se repetem. Depois boceja-se. (...)
Perdeu-se o sentimento de cidade e de pátria. (...) É uma nação talhada para a conquista, para a tirania, para a ditadura e para os domínios clericais.
(...) Vive-se na rua, ou no café. A casa aborrece e a família não nos interessa. As casas são pequenas, mal arejadas, sem conforto. O saguão é imundo, lúgubre, desmoralizador. A vida aparece como um cárcere. O burguês vai para o Grémio. O operário vai para a taberna.
Nas salas há uma mobília de mogno ou de murta, dura, lustrosa, pretensiosa, fria, quase inútil. (...) As mesas têm pó e vasos com flores de papel. Vê-se que aqui se não está senão de passagem, em acanhada cerimónia de gestos, de palavras e de ideias, mas que se não conversa, que se não discute, que se não ri, que se não existe, finalmente que se não vive em tais recintos. Se os mortos mobilassem os seus jazigos de família mobilavam-nos assim. (...)
Lisboa não se banha durante o inverno. Entrai nas três casas de banho que existem para uma população de 300 mil corpos. Achá-las-eis desertas. (...)
Nas aldeias, onde o quadro é mais compreensível e breve, observa-se que em cada freguesia é regra quase invariável que de todos os sujeitos o mais desordeiro é o regedor, o mais alegre o coveiro, o mais estúpido o mestre-escola, o mais estroina o cura. (...)"

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Dia de finados

Na nossa vida há anjos protectores, disfarçados de gente. Trazem-nos o mimo que os deuses nos negaram, por serem caprichosos. Muitas vezes têm vidas que nem parecem de gente. Mas foram-no, e deixam-nos lições e proveitos.
No tempo dela, se era Inverno, saía cedo de casa mais umas colegas, para os olivais da terra quente. Sendo Verão, iam apanhar garrobas para as colinas de Foz-Côa, uma lonjura. Ainda não havia as farinhas que há hoje, e os muitos gados chamavam-lhe um figo. Por lá ficavam semanas até voltarem a casa.
Bebiam água dos charcos, apanhavam sezões, e quando calhava regressavam a casa.
Os Crespos do Vitorino levaram-na de criada. E quando o velho Zé Ribeiro se sentiu  enganado pelo pessoal que lá tinha, puseram-no na rua. Foi assim que a Adelaide e a filha mais velha vieram para esta casa. A filha já era a feitora, embora nova. Por isso os Crespos não hesitaram. Livraram-se do feitor que lá tinham e meteram-na a ela.
Foi só através do casamento que o marrafinha lá entrou, vindo Matosinhos. Doutro modo nem pensar.
Adelaide morreu na década de sessenta, ninguém hoje sabe já de quê, andavam os netos a fazer pela vida em longes terras. Porque o mundo nunca foi doutra maneira.