sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Freeport

Quando as notícias que chegam são funestas, a tentação é esganar o mensageiro.
E o passado ensinou-nos a fazê-lo com mestria, entre outras ignomínias.
Mas que se há-de fazer a um mensageiro, que faz vida de vender notícias más?!

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Portugalmente (19)

(...)
3
Do Reboleiro a Palhais vai um passo mal medido, a bem dizer são terras ligadas por um cordão de casas que mal despegam, ao longo da estrada. O viajante segue devagar no seu carro já velho, fiel companheiro de vinte e cinco anos, uma peça de museu que já se não fabrica, e por quem o seu dono tem elevada consideração. Segue devagar e vai olhando o limpo céu da manhã, e olhando vê, e enquanto vê repara, cumprindo a advertência dum mestre inesquecível. Mais lhe valera não ver, ou vendo não reparar, que as artes da construção, ali atrás faladas, subiram aqui aos cumes do espavento e do delírio. Por isso o viajante afasta-se dos conselhos do seu mestre, e espraia o olhar para os longes do vale, que se alarga entretanto, à medida que vai chegando ao fim.
A espaços sobrevivem amoreiras bravas, quem sabe se restos de plantações que por aqui se fizeram há duzentos anos, para alimentar os bichos-da-seda. Era isso a indústria e a riqueza, e era de admirar que o achado vingasse, por razões que se perderam, acabaram os bichos por morrer. Agora estão a ficar maduros os cereais e os fenos pelos campos, e os seus donos andam atarefados a meter-lhes a foice, que é como quem diz, a máquina ceifadora. Ali perto estão já as abas do monte do Almansor, sinal de que anda próximo o destino da ribeirinha, que é o rio Távora.
O viajante dá consigo no meio da aldeia e parou à beira da estrada, quer ver a igreja que está ali ao lado. É uma fábrica discreta, que não impressiona quem passa, mas o viajante reparou nela, e por ela quer começar. A porta lateral está entreaberta, e por não ver ninguém a quem se dirigir, entra sem cerimónias. O interior é agradável e cuidado, e surpreende nele o aconchego das madeiras, nos pavimentos, no guarda-vento ao fundo. Bem diferente da frieza mística da pedra. O viajante tem mesmo direito a passadeira vermelha, quando se aproxima do altar-mor.
Ao fundo, na cabeceira, devia estar um retábulo, e as costumeiras colunas, e as folhagens de acanto, e pombas e pelicanos, e anjos rosados carregando nuvens às costas. No seu lugar encontra o viajante este vazio na parede, a mancha da pedra tosca, as juntas sem remate. Assim apanhado de surpresa, logo imagina o pior. Mas há-de ficar mais tranquilo, quando souber que tudo foi a restaurar, numa oficina de Braga.
Ali à esquerda está aberta a porta da sacristia. E ao entrar dá o viajante consigo no meio dum comício de santos, aqui reunidos para ouvirem o que tem a dizer uma Nossa Senhora da Ribeira, que preside além, pintada num retábulo. Até o São Sebastião perdeu as farpas. Aos outros, que são muitos e de várias idades, não perguntou o viajante a graça, mas fica a saber melhor os pontos a que chegou o desconchavo deste mundo. Está aqui uma boa dúzia de supranumerários, que a modernização da igreja dispensou. Por isso se juntaram em cima dos armários, alinhados alguns neste banco corrido, no meio dos tocheiros, dos ex-votos, dos solitários vazios. Menos mal que têm ar condicionado, embora esteja desligado. Se este viajante fosse dado a cultos de imagens, e tivesse lá em casa um oratório, bem podia sair daqui com algumas debaixo da casaca, ninguém dava por ela.
A aldeia pouco mudou, e os emigrantes que a ela trouxeram as suas casas novas foram-se a construí-las lá fora, ao longo da estrada. Não é que não houvesse espaço em derredor, aqui mais perto, o ponto estava em tê-lo disponível, e a preço adequado. E agora entende melhor o viajante a palavra da brasileira, ali atrás falada, que na sua terra foi sempre o ambiente mais dado que noutras, mais popular. Menos marcado por distinções de classe, diria o viajante, se fosse a utilizar palavras suas. Quem ganhou foi a sua aldeia, como já ficou visto, e esta aqui é que perdeu, conforme se está vendo. Ficou a Casa Grande, onde não passa uma aragem de vida, e esta capela oitocentista, encostada a um alpendre acanhado, que está à venda. O resto é igual ao que já era, salvo reconstruções de fraco gosto e pior qualidade. As ruas estão ali, calcetadas e limpas como o viajante já se habituou a ver, com as ervas a crescer nelas por tão pouco haver quem as passeie. Em redor jazem largos quintais ao abandono, cobertos de capim que os devora à torreira do sol, vê-se mesmo que têm saudades dum gesto de mão, e dum fio de água de rega. Mas os donos vivem longe, e nem se lembram deles.
Não faltarão por aqui festas e casamentos, quando Agosto chegar. Então os carros hão-de ser tantos que não caberão nas ruas todas da aldeia, e hão-de ocupar as bermas da estrada inteira. Nessa altura o largo encher-se-á de modos peregrinos, e de gravatas incómodas e graves, hão-de passear nele muitos vestidos novos com cortesias de cetim, a gritar às crianças doestos em falares estranhos. Sobrará vida durante um mês. Porém agora não se avista vivalma, talvez por causa da hora e dos trabalhos do campo. Embora o calor já seja muito, há zumbidos de máquinas distantes no céu da manhã, onde crescem castelos de nuvens.
(...)

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Ecos da Sonora XI

O discurso ensaístico é muitas vezes travesso, arrevesado, quando não é hermético. Ter boas ideias nem sempre significa enroupá-las a modo.
Porém muito pior é quando se cai na mão dum costureiro manhoso. Quando metade das frases da tradução têm pelo menos doze linhas.
Então, ir à Sonora é como ganhar o céu, desperdiçando tempo.

(...) As variações da forma do discurso e, mais precisamente, o grau em que ela é controlada, vigiada, castigada, em forma (formal) dependem assim, por um lado, da tensão objectiva do mercado, ou seja, do grau de oficialidade da situação e, no caso de uma interacção, da amplitude da distância social (na estrutura da distribuição do capital linguístico e das outras espécies de capital) entre o emissor e o receptor ou os seus grupos de pertença e, por outro lado, da "sensibilidade" do locutor a essa tensão e à censura que ela implica, bem como a aptidão, que lhe está estreitamente ligada, para responder a um alto grau de tensão com uma expressão altamente controlada, logo, fortemente eufemizada. (...)

Ufff!!!

À manhã, que mais parece londrina...

... a luz divina de Sorolla!

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

da capo - 22

PARÁBOLA COM BANDEIRA
Era uma vez um país que tinha uma bandeira e um viajante que viajava nele. No país. Um dia o viajante passou numa estrada e encontrou a bandeira do país a ondular, no coruto dum pinheiro. No meio dum pinheiral, ao lado duma aldeia.
O viajante sabia que andava a viajar num país de marinheiros, pois conhecia a história e já ouvira dizer que se haviam feito barcos dos pinheirais do país. Que atravessaram o mar, e fizeram descobertas, e plantaram padrões de pedra nas dunas longínquas. Para tornar grande o país, que era pequeno e pobre.
O viajante, cultor das causas primeiras, lembrou-se disso tudo, quando a bandeira, a ondular ali no pinheiral, o surpreendeu. E ou bem que havia naquela aldeia um marinheiro velho, saudoso dos antigos padrões que deixara nas dunas, e dos feitos antigos... ou era um novo marinheiro, orgulhoso da história, que também quisera agora plantar padrões. A alguma conquista nova, do país pequeno e pobre. Seria um padrão moderno, a bandeira a ondular, concluiu o viajante.
Os meses passaram, e também o viajante muitas vezes passou. Na estrada, ao lado duma aldeia, onde a bandeira continuava a ondular. Primeiro perdeu as cores, que o tempo foi-as comendo. Depois caíram-lhe as pontas, mordidas pelo vento. Por fim ficou um trapo, no coruto dum pinheiro, cansada de ondular.
Os antigos padrões, comidos da maresia, esfarelaram-se nas dunas. Este, que era moderno, picaram-no as gralhas. Destinos semelhantes, a feitos tão parecidos.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

O Chifrolé vermelho

O Franklin morava na rua de cima, numa casa de balcãozito sobre o largo. Tinha uma costela de trafulha e outra de aventureiro, e fazia negócios de madeiras. Nesse tempo parecia inesgotável a reserva de castanheiros que alguém plantara há séculos, e cobriam por então a encosta toda. Não faltava trabalho ao Franklin, que levava para longe, ninguém sabe para onde, os velhos troncos que cheiravam a terra, empilhados numa camioneta a queixar-se das molas.
A estrada nova era ainda recente, coisa de poucos anos. Muitas mulheres trabalharam nela, se não mesmo garotos, que então não havia máquinas nem leis. Sentados ali no chão a tarde inteira, partiam à martelada os pedregulhos, que desfaziam em brita para o maquedame. E lá ao fundo, no largo, rompia da estrada velha, vinha em recta por ali fora entre barreiras, rasgava as terras do conde e lá seguia para norte, para a Senhora da Cabeça, para as serranias da Lapa.
Uma tarde o Franklin apresentou-se no largo com um automóvel vermelho, que largava petardos pelo ar e cheirava a gasolina. Tinha um focinho comprido, e na ponta do focinho uma dentuça a luzir, era mesmo um bicho a rir-se.
- Isto é um Chifrolé vermelho, nunca vistens?!
E o adjunto, que nunca vira de perto uma coisa parecida, ficou-se a observar o animal, roído de admiração, enquanto o Franklin forcejava passagem para a taberna.
Um migalho depois regressou ao Chifrolé, ajeitou-se-lhe ao volante e dirigiu-se ao largo. Apontou à estrada nova e toda a santa tarde se passou num badanal, recta acima, recta abaixo. Quando se aproximavam as curvas do conde era uma chiadeira de travões, até inverter a marcha no campo da aldeia nova. A poeirada espessa já tapetava as eiras, afogava num sufoco as cerejeiras da berma. E o trovejar do motor deixava numa fona a canzoada, e enchia o vale inteiro de estampidos.
Quando parou outra vez em frente da taberna, o nariz do Chifrolé já vinha a deitar fumo. Alguém foi buscar um balde de água, mas logo o Franklin se pôs a rogar pragas.
- Só uma besta quadrada é que não sabe que estes fogos não se apagam assim!
E abriu a boca do bicho, enquanto berrava que trouxessem umas pazadas de saibro. Foi ali um sobressalto. E o fumo só amainou quando o Franklin se foi a correr a casa, trouxe um cobertor de papa e abafou nele o motor que resfolegava.
O Chifrolé nunca mais ninguém o viu. E uns anos depois foi dito que o Franklin tinha morrido em África. Debaixo dum tractor que um preto fez empinar, e cambulhou.

domingo, 25 de janeiro de 2009

No fundo, no fundo...

... a questão está em que vivemos de pés assentes num chão que se faz de equívocos.
O primeiro equívoco é o do crescimento contínuo, que a toda a hora nos persegue. Porém só é verdadeira alguma ilusão dele, enquanto a penúria de muitos alimentar a fartura de uns tantos, que crescem continuamente.
O segundo equívoco está em admitirmos que qualquer vida é possível, com uma China pré-escrava feita fábrica do planeta.
O terceiro equívoco reside na ideia de que pode haver equilíbrio, quando 6% da população consome 25% das reservas de energia.
O quarto equívoco consiste em acreditarmos que o mundo pode ser outro, sem que antes mude o american way of life. Seguimos-lhe as modas todas, sem darmos conta de que somos servos dele.
O quinto equívoco está em pensarmos nós que esta desordem do mundo é consequência do fado, ou resultado da história natural, atrás da qual não há actores responsáveis. Vivem todos mascarados, porém são bem reais: este, político; aquele, financeiro; uns, cavalheiros de indústria; outros, magnatas da imprensa.
E esta máscara de democracia, que só usam como disfarce enquanto tiver que ser, é a muleta com que nos levam ao engano.

Portugalmente (18)

(...)
Confessa o viajante que não esperava encontrar aqui refinamentos de estética nem regalos da vista, para além dos que são dom da natureza. E dos donos destas casas, enquanto lá fora espantavam a miséria, aforravam capitais, e aliviavam com remessas os apertos do orçamento nacional, demais seria esperar que, terminado o turno, fossem à noite a uma escola aprender como se faz uma casa, sem aumentar o caos que já sobra no mundo. Se partiram daqui um dia ao desamparo, como já em sobejos casos foi visto, desamparados se viram à chegada, sem um conselho, um rumo, quiçá uma interdição. Fizeram eles o que lhes competia. E quem aqui uma vez mais faltou, e assim perdeu, foi o país.
No meio de tão fatal relativismo, encontra o viajante a igreja da aldeia. É uma construção moderna, com trinta anos, se tanto. Diz esta placa ter havido neste lugar um templo mais antigo, feito pela ordem de Malta, em 1750. O viajante, que o não conheceu, põe-se a olhar as formas que tem na sua frente, e pensa que a aldeia não terá ficado a ganhar com a troca. É um precipitado pensamento. Que lá dentro está uma ampla nave luminosa, revestida a madeira nas cotas baixas, e a nudez pura das paredes é a que a um lugar destes convém. Não fossem estas barras de azul, que ficaram a cobrir-lhe os vigamentos de betão.
Mergulhado no silêncio está um organista, de auscultadores nos ouvidos, o viajante supõe que é o pároco, a dedilhar num teclado os cantos da liturgia. Mas não se ouve qualquer som. O homem está de olhos fechados no seu isolamento, só os meneios da cabeça denunciam um compasso escondido, e não deu pela entrada do visitante, que ficou ali sentado. Quando a função termina, dá-se conta o organista de que não esteve sozinho.
O viajante vai ao seu encontro. Afinal não é todos os dias que uma aldeia qualquer se põe a demolir uma igreja, para lhe construir outra nova em cima. O organista reúne os seus pertences em silêncio, chega o viajante a pensar que ele não baixou à terra, enlevado nos seus cânticos.
- Queria perguntar-lhe...
- Não me compete a mim dizer!
O viajante observa-lhe a fisionomia e não gosta do que vê.
- Julguei que soubesse dizer-me...
- Sei dizer, mas não me compete a mim. É perguntar ao pároco!
Afinal não é o padre que aqui está. E nos caboucos desta igreja ficou enterrado um mistério qualquer, ou um enigma, quem sabe se um segredo maior do Vaticano, que o organista não quer desvendar. O viajante, que não se sente bem onde não é desejado, voltou à rua, espicaçado por este aroma de intriga.
E, vistos actos, não havia mistério nenhum. O templo antigo, o da ordem de Malta, era uma capela de Santa Catarina, a padroeira, a mesma do lar de idosos, que há-de ter a sua festa quando Agosto chegar. Era coisa pequena, como o viajante já encontrou lá para trás, escassa para os fiéis todos. Além disso chegou a um tal estado, que mais valia construir nela uma nova, do que restaurar a antiga. Quem isto explica é a dona Gracinda e o seu homem, que ali vão a descer a ladeira e assistiram a tudo, já têm idade mais que suficiente. E estas duas palavras sossegaram o mundo, que um silêncio bruto deixara em alvoroço.
A dona Gracinda e o seu homem vão de luto rigoroso, que lhes morreu um amigo ali no lar de idosos. Boa coisa para a terra, um lar assim, muito embora o valor da factura não jogasse lá muito com a dimensão da obra, como estamos lembrados. Para além da gente que nele achou trabalho, vieram atrás outras actividades, que ajudam o comércio e arredondam a vida da aldeia. Ele é o talho e a padaria, a farmácia e a assistência médica. Contando com a construção civil, há na terra vinte e tal empresas pequenas com escrita organizada. Que da agricultura ninguém vive, e muito mal estaria se tivesse que viver. Salvo um agrónomo que juntou terras suas, e outras que arrendou, e algumas que os donos lhe entregaram de graça, e se dedica aos gados, porque sabe puxar a guita dos subsídios por cabeça. De resto amanham-se as leiras da ribeirinha em sistema de entreajuda, e porque são tão mimosas que até parecia mal deixá-las de matagal.
Ao viajante agradam muito estes princípios. E não se enganou logo à chegada, esta aldeia é diferente das que tem visto. Se ele mandasse, punha um ministro a ir a cada terra, todos os dias, fazer inaugurações.
(...)

sábado, 24 de janeiro de 2009

Portugalmente (17)

(...)
Agora que matou sedes e curiosidades, vai o viajante por essas ruas, que são largas e desanuviadas. E do núcleo antigo da aldeia já pouca coisa encontra, no outeiro do Cabeço. Duas ruínas de boa cantaria, construções avulsas de cimento, e casas antigas restauradas, algumas com critério. Ali numa ruela esquecida entre fragas, uns velhos tugúrios vão lembrando que nem tudo foram as rosas que agora se vêem. Se o fossem, teria a dona Ermelinda onde viver, quando se casou com o seu homem. E não tinha sido forçada a emigrar para o Brasil, em cinquenta e tal, uns anos antes de ter começado a invasão da França. Ali, na ruela hoje esquecida, ficaram guardados os tempos de 1970, em que o soviete do Reboleiro reclamava melhores habitações, além de luz eléctrica, e água, e uma estrada, pela ordem das urgências.
Subindo com persistência esta rua do Calvário, por força havemos de chegar a um gólgota qualquer, vai pensando o viajante, que logo avista ao cimo três cruzes de pedra, dentro dum jardinzito. Dupla maravilha era encontrar agora aqui a Pietá, e poder admirar essa mãe de pedra, muito mais nova que o filho que tem nos braços. Mas isto são fantasias do viajante, que tudo quanto vê são três desmesuradas cruzes, de quatro metros de altura, a ocupar o céu. São pedras recentes e polidas, saíram duma fábrica há meia dúzia de anos, talvez de Braga. Falta-lhes a doçura e o grão do cinzel, o afago das mãos dum canteiro. Ao centro refulge um Cristo de metal, desamparado nas vastidões da pedra, vê-se bem quanto lhe falta uma pietá. Os dois ladrões estão ausentes. Ficou-lhes o nome na base das colunas, à direita é o Dimas, o Gestas à esquerda.
É destas alturas que o viajante melhor pode observar o que era o Reboleiro, e no que se tornou. Que os emigrantes, depois de comerem lá fora o pão que o diabo amassou, chegaram um dia aí e compraram as terras, ergueram nelas as casas que inundam esta paisagem, e multiplicaram a aldeia por três ou por quatro. Nasceu mesmo um bairro novo além, para lá da cortina verde que assinala a ribeira, à margem esquerda dela. E, porque espaço havia, fizeram-se estas ruas amplas e airosas, por onde o viajante agora vai no seu vagar, cada vez mais surpreendido com a variedade de gostos que há no mundo.
O viajante guarda muito respeito ao que vê, mas este respeito não é cumplicidade. Muito gostaria ele de saber quem inventou estas arquitecturas delirantes, com telhadinhos recortados em águas múltiplas, e trapeiras e mansardas e escadórios e balaustradas e colunatas e arquinhos rebatidos e fachadas de azulejo e gaiolas de periquito. Não vê a harmonia disto, nem o sentido da proporção, nem a adequação ao meio, nem o sempre útil casamento das formas com as funções. O viajante pensa que a cultura e o saber dum povo se manifestam em tudo quanto faz, e as casas que fabrica, e em que vive, são disso eloquente manifesto. Mas aqui não vê sinais de passado, nem marcas que fiquem para o futuro. Ora um povo que não guarda um passado, nem constrói um futuro, o mais certo é não existir. Aqui entre nós, muito suspeita o viajante que um tal gosto arquitectónico, se não chegou numa barca doutro planeta, saiu da fantasia dum qualquer vendedor de bicicletas, com banca montada de arquitecto informal, que faz uns riscos para entregar na câmara. A qual assina de cruz, depois do correspondente emolumento. O resultado geral é um desastre.
(...)

A canalha

- Eu adoro campanhas eleitorais! Gosto muito de bater no governo! Gosto sobretudo de bater no engenheiro José Sócrates!
A classe dirigente que todo um país sustenta, a qual tolera e suporta, e finge levar a sério, um responsável político do quilate de Alberto João Jardim, há coisa duns 30 anos, não carece de melhor definição: puta que pariu esta canalha!

O insustentável peso da vida

Festeja esta família a Consoada numa cozinha rural, daquelas de pedra antiga. Reunidas em volta da lareira, que parece arder há séculos, estão quatro gerações. O bisavô hiberna no escano, amparado na almofada, ninguém sabe se ainda ouve, se ainda sente, se ainda vive. Traz uma pilha ligada ao coração.
Um bisneto grasna por ali, admirado com as paredes escuras, estranhando as vitualhas. E das quatro gerações apenas uma tem idade activa.
Este almoço de Natal é na cidade e não tem lareira acesa. A bisavó, alheada, repousa num canapé, o volumoso ventre enfaixado em ligaduras, da operação que há dias flhe fizeram, a ver se escapa a uma coisa ruim.
A bisneta remexe a papelada que restou das prendas do Pai Natal, na esperança de encontrar mais um embrulho que sobejou por abrir. E das quatro gerações, apenas uma tem idade activa.
Dá nisto, a imortalidade. Neste mundo em que vivemos, quando a morte vai de folga, é insustentável o peso que a vida ganha.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Rouxinol do Choupal

Alguém lhe chamou um dia o rouxinol do Choupal, mas eu estou em desacordo. Que os tenores originais cantavam melhor cantiga, e até sabiam a gramática de cor. Não parece ser o caso de José Miguel Júdice.
Diz ele, no jornal de hoje, que Portugal tem riscos sérios de viabilidade.
Quem nos dera, homem de Deus! O contrário é que será de temer!

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Portugalmente (16)

(...)
Quando o viajante chega ao Reboleiro, logo repara que a aldeia é diferente das que tem visto. Os montes escarpados ficaram para trás, o vale ganhou alento, e as várzeas frescas puderam respirar, ao longo da ribeira. Se não fosse diferente a terra, não teria vindo aqui uma ministra excelentíssima a inaugurar este Centro Cultural da Ribeirinha, em Fevereiro de 2001, conforme diz esta placa. É uma construção ampla e moderna, quase a destoar numa aldeia assim, outras terras maiores não desdenhariam tê-la. O viajante visitou uma creche, na aparência bem apetrechada, porém a esta hora vazia de crianças, por ser já o fim da tarde. Há um bar e uma sala de jogos com mesas de bilhar, e um grupo de jovens locais assiste à televisão, em sofás de bom desenho. Existe ainda uma sala com computadores e ligações à internet, isto é o que vai dizendo uma assistente profissional e amável, e o viajante encontra sobre as mesas muitas pastas e cadernos, que sugerem materiais de estudo. Parece que ficaram assim abertos e espalhados há menos de um minuto, para um intervalo. E o viajante só estranha não ver nas redondezas quem os tenha utilizado.
No andar superior existe um auditório, que é também a sala de espectáculos. Anunciado para breve está um filme recente, que andou noticiado no jornal há um par de semanas. Embora não goste de ver estes filmes americanos, muito se alegra o viajante, por já não haver no mundo as distâncias que antigamente havia. E talvez aqui não tenha chegado ainda o rugir das pipocas nos queixos da assistência.
O viajante, que andou ao sol durante todo o dia, precisa de se refrescar com uma cerveja, e vai à procura dela na esplanada dum café, ali em frente do Centro. Na verdade não sabe que utilização dará a estas instalações a gente do Reboleiro. Era uma pena que elas servissem só para engalanar a festa da padroeira, ou para usar em casos de protocolo com entidades distantes. Mas fica a pensar que há visitas de ministros que sempre valem a pena, e que alguma coisa afinal ficará dos fundos europeus, quando um dia vierem a acabar. O que lhe agradava agora era assistir a um espectáculo no auditório do Centro, se não fosse dessas artes musicais que se vendem nas feiras e embrutecem o gosto, boçalizam o espírito e enchem de animação os arraiais. Talvez um dia a juventude que parece ainda haver no Reboleiro, num intervalo das suas viagens pela internet, resolva encenar uma peça do Almeida Garrett, mestre de viajantes. Este admirador já assistiu, em tempos muito antigos, a récitas em palheiros e odéons improvisados, e nunca mais se esqueceu delas. Cá estará, nesse dia, a aplaudir.
- Está a desenhar a pedra cavaleira?
A pedra cavaleira é igual a tantas que há no mundo, a cada terra a sua. Está além bem à vista no cimo da encosta, montada sobre as outras que a sustentam, ninguém sabe como não cai, tão insegura parece. E o viajante está aqui na esplanada, com as suas folhas rabiscadas sobre a mesa, qualquer um vê que não é desenhador. Mas o homem, que parou agora o seu camião ali ao lado, quer apenas um pretexto para meter conversa. O viajante fica encantado, a um lado porque deixou de ser o cobrador de impostos, e a outro por ter arranjado companhia para beber mais uma cerveja.
O homem, que antigamente andou quinze anos por França, acabou de chegar de lá, porque agora trabalha nos transportes internacionais. E por ele fica a saber o viajante que, muito antes da ministra excelentíssima, esteve aqui o primeiro-ministro em pessoa, a inaugurar o lar de Santa Catarina. Embora se tratasse dum momento solene, e fugisse ao protocolo, não se impediu o governante de comparar logo ali a dimensão vulgaríssima da obra com a grandiosidade da factura. Isto é o que diz o camionista, que ouviu falar do caso. Mas os fundos europeus têm largos costados, e a obra aí ficou, com famas para a terra e proveitos para o gerente. E também para alguns idosos, que assim ganharam quem lhes dê cuidados.
Quando por lá passar a ver o casarão, o viajante há-de encontrar-lhe na fachada uma cabeça de bronze, sobre um pedestal. É dum político que deixou nomeada, e ainda hoje faz milagres na boca de muitos, porque morreu há vinte e tal anos, num desastre de avião. E o viajante, que conhece o seu quê de portugueses e foi ficando céptico com a idade, lembra-se logo do rei Sebastião. O tal que ficou célebre não pelo pouco que fez, mas pelo muito que havia de fazer, se não tivesse morrido num desastre fatal. Ao viajante, e a despropósito, só lhe vem à lembrança o seu amigo Albino, que já ficou lá para trás, desiludido e hesitante, diante da urna dos votos.
(...)

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Enquanto o pau vai e vem

Os deuses fecharam os olhos e Obama tornou-se o 44º Presidente dos Estados Unidos da América. Barack Hussein Obama, o primeiro Presidente negro.
Muita gente embandeirou em arco (alguns falam em milagre) e pôs-se a pensar que Deus iluminou a América e o mundo todo mudou. Mas não é exactamente assim. Nem este mundo mudou, nem a Senhora de Fátima desceu outra vez à terra. E os deuses só fecharam os olhos, porque sentem, por agora, o servicinho feito.
Em 2001, George W. Bush perdeu numericamente as eleições, mas foi entronado Presidente, porque era útil aos deuses. E eles velam, quando não fecham os olhos, nos seus olimpos da Comissão Trilateral, do Clube Bilderberg, do Council on Foreign Relations. Os mesmos deuses que mataram Kennedy, e Martin Luther King, e outros, e que pagaram bem para que as Torres Gémeas fossem dinamitadas, e que encenaram o ataque dum avião fantasmático ao Pentágono, e doutro na Pensilvânia, precisavam de ter, em 2001, como Presidente dos Estados Unidos da América, o homem mais grotesco e menos apresentável que o Novo Mundo gerou. G. W. Bush era a exacta marioneta, o faz-tudo de que os deuses precisavam. Por isso o entronaram, embora as urnas dissessem outra coisa. E depois voltaram a entroná-lo, uma vez que era preciso levar a tarefa a cabo: a mistificação do terrorismo, o fantasma do Bin Laden, a arrogância perante o mundo inteiro uma vez que o comunismo desabou, a subversão das normas internacionais, a guerra perpétua no Afeganistão, o embuste das armas de destruição maciça, a invasão facínora do Iraque, a ignomínia de Guantânamo, a rapina do petróleo, a desregulação total da vida, o desprezo pelo planeta, o bolo de estricnina do sub-prime, a mudança de mãos duma riqueza colossal, a paralisia da economia mundial, o desespero de milhões... Até os sionistas, que aprendem bem as lições, aproveitaram a 25ª hora para subir, em Gaza, a fasquia da bestialidade!
Tudo isto feito, os deuses já podiam dispensar o pau-mandado. E deram-se mesmo ao luxo de presentear o mundo com este milagre dum Presidente negro, chamado Hussein Obama. Só para nos deixar a todos de boca aberta.
O santo milagreiro tem uma função primordial, que é branquear perante o mundo a face conspurcada da América. E eles contam escapar ao tribunal de guerra, porque nós temos curtíssima memória, e só nos é permitido acreditar naquilo que os deuses mandam publicar.
Sem embandeirar em arco, há motivos para folgança. Porque sempre as costas folgam, enquanto o pau vai e vem.

domingo, 18 de janeiro de 2009

Portugalmente (15)

(...)
O viajante é assim, gosta destes lugares que não vêm nos mapas, encontra neles a atmosfera mais limpa e a realidade mais transparente. Já se esqueceu das coitas da Ribeirinha e vai descendo a encosta, contente por estar aqui nesta altura do ano, com tantos verdes na paisagem. Na verdade não aprecia que olhem para ele como se fosse o cobrador de impostos. Mas, pesando e medindo, aceita o viajante que não se pode ter tudo duma vez só.
A estrada tornou-se recta e plana, e vai agora a par da ribeirinha, ali à esquerda abraçada num renque de amieiros, entre uma e outra há leiras bem cuidadas. Mas aparecem a gritar na paisagem dois monstros de aço pintados de amarelo, que estão além parados, ao fundo da encosta. E o viajante, curioso apreciador de maquinismos, mete-se à carreteira de saibro e vai investigar. Os dois monstrengos vieram de França e são irmãos melícios. Têm lagartas enterradas no chão, e puas, e garras, e dentuças capazes de mover a terra inteira. Estão cercados de grandes blocos de granito, que arrancaram à serra e deixaram semeados por ali. O viajante, que de ingratidões conhece alguma coisa, pensa que mal bastou ao faraó ver em pé as pirâmides, e logo abandonou aqui estes escravos carregadores. Mas há-de vir a saber que muita pedra daqui foi levada para França, até começarem a aparecer as contas por pagar, e os prazos de vencimento dilatados. As máquinas ficaram aqui a aguardar um destino que nunca mais veio, mais um milagre que não aconteceu, e agora é tudo pasto da ferrugem.
Inconformado e cabisbaixo, regressa o viajante à estrada. E se pensava que, entre faraós ingratos, e faunos bailadores, e Ribeirinhas feiticeiras, já tinha visto o mundo todo, bem enganado vai. Que à sua espera, e para seu assombro, está um dos castelos que Luís da Baviera sonhou fazer, na encosta ali à mão direita. A tanto lhe não terá chegado a vida, a vir fazer um aqui, por isso quem este fez foi um emigrante português.
O viajante gostava de fazer-lhe uma visita, ao castelo. Se possível guiada, porque se teme de perder-se em labirintos. Mas fica limitado a admirar-lhe a imponência cá de longe, parado à beira da estrada. O edifício está mudo e quedo, a dormir sobre uma vasta plataforma de saibro. Tem uma larga cerca de pinheirais em volta, e a própria casa da guarda, à beira do caminho, está deserta. Com as suas dobradiças e aldrabas de bronze nas portadas, assusta como capela funerária.
Nos três pisos, nos sótãos, e nas caves que o viajante só pode ver por fora, amontoaram-se estilos e tendências, ou arremedos, por assim dizer. A fachada vastíssima é barroca, no modo como nos esmaga a vista. O torreão cilíndrico é gótico, debaixo duma cúpula alpina. Nas muitas janelas perpassa um maneirismo estranho, com arrebiques de trazer por casa. E o viajante pensa que só falta aqui uma loggia da renascença italiana, para a obra estar completa. E para receber o sol, logo ao nascer.
O viajante já descobriu, e já o disse, que estas casas modernas foram feitas para guardar sonhos antigos, às vezes do tamanho do mundo. Porém aqui suspeita que muitos sonhos juntos não bastarão para rechear este castelo. A menos que o emigrante português seja tão sonhador como foi Luís da Baviera. O viajante ficará a saber, quando encontrar alguém que o informe, que neste casarão nunca viveu ninguém, e já foi por duas vezes assaltado. Os donos vivem longe, pelos vistos a nadar em dinheiro, e já pensaram em vendê-lo. Mas ainda não apareceu ninguém disposto a dar por ele a fortuna que nele está enterrada. E Luís da Baviera já morreu, afogado num lago, há muitos anos.
(...)

sábado, 17 de janeiro de 2009

Morrer outra vez

Para Castaínço fala o soldado três quatro sete noventa e cinco de setenta e um, para a sua querida mãe irmãos tios sobrinhos padrinhos e restantes amigos e mais familiares, desejo um feliz natal e um ano novo cheio de prosperidades para a sua noiva mando um abraço cheio de saudades para todos eu cá estou bem adeus até ao meu regresso!
Assim bisonho e assustado, de coração aos pulos como se estivesse na mata debaixo de fogo, debitou o soldado três quatro sete noventa e cinco de setenta e um a sua mensagem de Natal. A máquina estava ali montada na parada do quartel da Bambadinca, havia um microfone pendurado por cima num tubo de ferro, a engolir todo o sobressalto das gargantas ali postas a discursar, era só aguentar o avanço lento da fila que vinha lá do fundo, das traseiras do comando, chegar ali e descarregar a ânsia toda da alma para a janela daquele bicho esquisito, que não parava de nos mirar a todos por dentro, e de violar a timidez aflita de cada um, com aquele olho estático de vidro que nem pestanejava.
O sargento dera ordens para o pessoal se ataviar a preceito, e não aparecer ali com ar de lagarto das furnas, figura normal de qualquer soldado naquela guerra, para não causar más impressões à malta lá do puto. Mas sempre havia gajos que se estavam cagando para as ordens do sargento, e vieram com quicos todos abandalhados, e queixos mal rapados, e aquele ar de múmias desenterradas com grandes olheiras, que fraca imagem haviam de dar da tropa da Bambadinca, mas o melhor era aviar porque a tropa era muita, e os senhores da televisão não estavam habituados ao calor.
Em fundo havia um plano do edifício do comando, assim foram discutidos os preparativos com os técnicos que andavam por ali de barretes de pala, sempre era uma vista mais aconselhável neste marketing da guerra, e sempre se podia mostrar o brasão da companhia desenhado ali na parede, pois claro que estes símbolos militares têm o seu fascínio, que seria inconveniente desprezar.
E assim veio a televisão a publicar aquela romaria numa noite de Fevereiro, logo depois do telejornal, o Natal passara há muito mas que havíamos de fazer, tão escasso era o tempo e tão numerosa a tropa, mesmo assim só tínhamos ido a uma dúzia de quartéis em cada província ultramarina, que seria de nós se tivéssemos que percorrer aqueles matos todos, nem a televisão fazia outra coisa senão transmitir mensagens de saudade durante o ano inteiro.
E deste modo se viu o senhor director, nessa noite jantando em família, obrigado a mandar a criada calar aqueles bonecos, quando a enfadonha lengalenga se preparava para arrancar. E logo ali na tasca do Hermínio se gerou grande confusão nos clientes, a propósito do mesmo tema, queria a dona Conceição desligar o aparelho porque estes programas dos soldados coitados lhe davam apertos no coração, e isto muito embora não tivesse nenhum filho na guerra. Mas saiu-lhe a terreiro o Chico Estivador, para dizer que não senhor, ele havia certas coisas que eram duras de se ver, pois com certeza, mas não tendo ela filhos na guerra, outros havia ali, por certo, que os tivessem, e que além disso o povo não podia fechar os olhos a certas realidades, bem era até para ele que os fosse abrindo. Houve quem não entendesse de que realidades se tratava, e, quando o Chico começou a explicar, veio logo o Hermínio Tranquilo lembrar-lhe que era melhor guardar a língua na caixa, pois não era a primeira vez que por ali apareciam uns tipos de gabardina, que se demoravam a folhear o Diário de Notícias, ele bem desconfiava quem eles eram e não queria complicações lá na casa. Ele lá sabia, e largou a calar o aparelho.
E assim foi que a dona Matilde, pessoa até compenetrada das suas obrigações de cidadã, à hora de começar aquele penoso desfile desligou iradamente a televisão, porque não podia sofrer aquela torpe manipulação dos sentimentos de cada um, era do que se tratava, puro veneno em frasco de humanitarismo patrioteiro. E essa foi também a hora a que o abade de Castainço, refastelado com gravidade no canapé, se lembrou do breviário do dia. Desligou a televisão, aconchegou os pés à braseira por baixo da camilha redonda, e ficou a murmurar a serenidade de seda das páginas divinas, quando uma levantada gritaria lhe chegou da porta, com ares de grande aflição. Foi abrir, era a Maria Rita viúva, a quem tinha morrido há semanas um filho nas guerras de África. Vinha trazida por outros dois, embiocada no xaile de merino preto, e da fenda do bioco saltavam dois olhos de lágrimas, se de angústia se de esperança não era possível saber.
Que o meu António tinha acabado de ver o irmão na televisão, lá no café, naqueles programas dos soldados, que ele estava mesmo vivo lá no quartel, tal e qual como os outros, e tinha mandado saudades para todos, nem se esquecera dos padrinhos nem dos amigos.
O padre chamou a si toda a serenidade de séculos de claustro, ele próprio em dificuldades para conter a nuvem de tristeza que ali se lhe abateu na alma. Explicou à pobre viúva que não, aquele papel que ela tinha recebido dos comandantes da tropa é que dizia a verdade sobre o filho. Na televisão, o filme passado hoje tinha sido gravado há três ou quatro meses, em Setembro ou Outubro, muito antes do Natal. Nessa altura estava o filho vivo, ele só morrera em Janeiro.
O senhor abade tinha razão. A Maria Rita escancarou os queixais, fitaram-se-lhe os olhos donde fugia um estranho sol longínquo, e lá teve que deixar morrer o filho outra vez.

Tabuleta 3

Alguns textos aqui apresentados já viram a luz noutros lugares, e a sua repetição tem dois motivos. O principal é tangê-los ao lugar que lhes incumbe. O outro é torná-los disponíveis, a eventual leitor que os não conheça. É que há limites para a crise!

da capo - 21

CHUVA DE VERÃO
Mas por que não fiquei eu na Sibéria, onde há ventos, e borrascas, e bosques de vidoeiros?! E bolcheviques a sério?!
O servidor sentiu-me lá por fora e interditou-me a página. As gaivotas entupiram-me de filhos as caleiras, entrou-me em casa uma chuva de verão. O alarme ligado parasitou a bateria, o carro nem se mexe. A paragem do 30 ficou desactivada, por causa dumas obras. Um amigo chegado tomou-se de maleitas, resolveu ir-se embora. Pontual só o talão registado, do imposto de Setembro.
E ainda não fui ver a metafísica, a saúde da família, o estado da política. E as pechinchas literárias, nalgum escaparate!
Sai um homem à procura do exotismo do mundo, e ele a dormir-lhe em casa!

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Portugalmente (14)

(...)
O viajante está num desassossego, concorda que o senhor Albino devia ter emigrado no tempo certo, sabe muito bem que esta é, desde há séculos, a salvação mais segura. Mas agora já é tarde. Se fosse um santo milagreiro, não ia daqui sem fazer um milagre. E já teria resposta para dar ao seu amigo, que não sabe em que partido há-de ir votar e lhe pede conselho. Ora o viajante houve um tempo em que acreditou ter chegado o momento de os portugueses fazerem o seu milagre. A vida parecia ali, nunca esteve tão perto. Mas o tempo foi passando, milagres não houve nenhum, e agora já deixou de acreditar. Por isso está nesta aflição, sem saber que conselho dar ao seu amigo. E muito suspeita de que ele há-de morrer um dia a votar sempre no mesmo partido.
À saída das Corças há uma eira à beira do caminho. É uma vasta laje de granito, ao viajante faz lembrar uma proa da Índia que ali veio naufragar, e é o melhor dos mirantes sobre o Vale do Inferno. Era neste lugar que a serra do Galgueiro tinha reservado o seu esplendor maior. O viajante senta-se no chão, minúsculo diante da montanha, e põe-se a imaginar as gerações de mulheres das Corças que a esta eira vieram erguer ao vento os cereais, erguer os gravanços e o feijão. Levantam a cesta acima das cabeças, agitam levemente os pulsos magros, vertem devagar os grãos na brisa e deixam-lhe o trabalho de os limpar.
- Ai eu coitada, como vivo em grã cuidado!
E ao ouvir estes ecos, parece ao viajante que está ouvindo o lamento de quem já tem os braços derreados.
- Por meu amigo, que hei alongado!
O viajante não crê no que está a ouvir. Chega-lhe no vento o som das flautas de Pã, que vem da montanha além, e são faunos pagãos o que está vendo, rotundos e peludos, em seus bailes de roda, à sombra dos arvoredos.
- Muito me tarda o meu amigo na Guarda!
Agora ao viajante já lhe não restam dúvidas. São coitas da Ribeirinha feiticeira, que ao mirante veio e aqui se lamentou, saudosa do rei Sancho. Dançam para ela os faunos bailadores e a Ribeirinha sonha, senhora branca e vermelha, que fará deste enlevo e desta pena.
O viajante não quer que vá dizer-se que veio a coisas sérias e acaba em devaneios. Na sua história muito particular, rainhas são as mulheres das Corças que à eira vão erguer o milho ao vento, e rainha foi a Ribeirinha, que enfeitiçou el-rei e neste mirante penou os seus cuidados. Umas seguram de pé as traves mestras da vida, tarefa sua de cada dia. A outra deu ao rei conselho e aconchego, e muito precisado disso andava ele. Pois deste lado vai a força da administração real, apoiada no vigor dos concelhos e nos direitos dos povos miúdos, a cimentar os caboucos do reino. E daqueloutro está a mesa dos poderosos, de clérigos e godos donos de meio mundo, que aviltam e corrompem administração e leis, todos calando só gulas comuns. Consta que resistiu el-rei tanto quanto podia, e que andou a Ribeirinha citada em bulas papais. Mas o viajante também ouviu dizer que el-rei se amedrontou ao ver a morte, e claudicou. E a questão ainda está por resolver.
(...)

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

José Até-Ver

O homem peguilhava com Belmiro, por causa do bem parecer. Mas a mulher cismava com José, que lhe lembrava a Sagrada Família. Andaram nisto semanas.
Quando foi dá-lo ao registo, quis saber o tabelião:
- Então, que graça lhe cabe?!
E o tosco, sempre a hesitar:
- Ponha lá José, até ver...
E assim ficou o rapaz.

2008: O ano do tsunami energético

Com vénia ao Dr. Luís Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal

Nos anais da história económica, o ano de 2008 vai ficar assinalado como o ano do terceiro choque petrolífero. O primeiro ocorreu em 1973, na sequência do embargo de fornecimento ao Ocidente por parte dos países árabes. O segundo teve lugar em 1980, e está associado aos cortes de produção de crude, como resultado do conflito armado que opôs o Irão ao Iraque.
Mais do que um choque, o que aconteceu em 2008, no plano energético, foi um verdadeiro tsunami. O preço do crude, em Julho de 2008, foi a crista duma vaga destruidora que se abateu sobre a economia mundial. No entanto não parece existir uma causa única e directa, facilmente identificável, para este terceiro choque. É certo que a escalada dos preços ocorreu após o desencadear da crise financeira nos EUA, que ficou conhecida pela crise do subprime, em que terá havido uma forte pressão especulativa sobre os preços das matérias-primas. Mas a relação de causa e efeito entre estes dois acontecimentos ainda não é clara.
A explicação poderá também estar associada ao elevado crescimento das economias emergentes, sobretudo da China e da Índia, que levou a uma pressão na procura de crude por carência energética. Uma consequência dessa carência foi a reactivação do consumo de carvão. Entre 2001 e 2006, este consumo teve um crescimento espectacular de 5,5% ao ano, contrariando a tendência anterior de estagnação na década anterior, em que o crescimento do consumo de carvão se ficara, em média, pelos 1% ao ano.
Em 2008, no auge da alta de preços, falou-se insistentemente no pico da produção de petróleo como principal causa do aumento do seu preço. Tornava-se evidente e estranhava-se que, apesar da elevada cotação da matéria-prima, desde 2004 que a produção teimava em estagnar nos 86 milhões de barris por dia. As novas áreas de produção de Angola e da Ásia Central dificilmente compensavam as perdas em áreas produtoras tradicionais, como o México e o Mar do Norte.
Os preços do petróleo estão agora a recuar e o consumo a diminuir. Recorde-se que também após o segundo choque, em 1980, houve uma quebra nos preços e no consumo de petróleo. O mundo assistiu então ao rápido desenvolvimento de novas áreas de exploração fora da OPEC, nomeadamente no Golfo do México, no Alasca, e sobretudo no Mar do Norte. Foi também após 1980 que se assistiu ao acelerado desenvolvimento da exploração do gás natural, que aliviou muito a pressão sobre a procura de petróleo. Também nesse período se verificou a entrada em actividade de muitas centrais nucleares, sector que entre 1980 e 1985 duplicou a sua importância. Tudo isso permitiu relançar a economia mundial, que prosperou nas duas décadas seguintes.
As perspectivas apresentam-se agora com tons mais sombrios. Numa apresentação ao Council of Foreign Relations, realizada em Nova Iorque no início de Dezembro passado, o Dr. Fatih Birol, economista chefe da Agência Internacional de Energia (AIE) responsável pelo World Energy Outlook 2008 (relatório publicado anualmente) expressou uma grande preocupação pelo impacto que a actual crise financeira pode provocar no sector energético.
Para ele, a crise financeira e o baixo preço do petróleo já estão a provocar adiamentos em projectos de exploração em empresas independentes, e também no Médio Oriente. A crise, e a premência da sua ultrapassagem, veio relegar para segundo plano muitas das preocupações dos governos, no plano das energias alternativas e da eficiência energética. A própria problemática das alterações climáticas deixou de estar no topo da agenda dos governos e das organizações internacionais.
Em particular para o petróleo, ele antevê um mar de dificuldades. As grandes jazidas estão a esgotar-se ao ritmo de 6,4% ao ano. E antecipa que esse esgotamento vai acelerar-se no futuro, porque se extrai agora mais petróleo em jazidas mais pequenas, e em plataformas marítimas, onde os ciclos de exploração têm períodos mais curtos. Só para compensar esse esgotamento, diz Birol, vai ser necessário desenvolver, até 2030, novos projectos capazes de produzir 45 milhões de barris por dia, o equivalente à produção de quatro Arábias Sauditas. Além desse valor, será ainda necessário produzir diariamente mais 20 milhões de barris, para satisfazer o natural aumento da procura.
Ou seja: cerca de 60% do petróleo a produzir em 2030 terá ainda que ser encontrado, ou colocado em exploração; e para conseguir tal objectivo será necessário investir; porém, o investimento só será possível com preços do barril acima dos 80 dólares, aceites como custo marginal para produzir um novo barril de crude.
Vive-se hoje no mundo um angustiante clima de recessão. Para sair desta situação, urge recuperar o crescimento económico. E essa recuperação vai depender do crescimento da produção de energia. O tsunami de 2008 está agora na fase de regressão, e deixou o lodo a descoberto. Esperemos que não tenha réplicas.

Ecos da Sonora X

UM ESCRITOR CONFESSA-SE
(E a páginas 329, Aquilino Ribeiro deixa Paris, à chegada da Primeira Guerra Mundial.)

(...) Uma bela manhã despedimos pela Gare de Austerlitz num comboio recoveiro, eu com um filho nos braços. De pé até Bordéus. Chorava Paris, o Paris da minha mocidade, onde só devia voltar depois da guerra. Nunca desejei nada em Paris que não realizasse. Nunca concebi um projecto que não levasse a seu termo. Nunca tive em Paris uma dificuldade que não resolvesse. É uma cidade feita para dar a quota razoável de felicidade aos homens, e todos os seus costumes, todas as suas leis, e toda a compreensão das gentes concorre para realizar este desideratum. Paris de resto formou-me; deu-me imaginação; incutiu-me o culto da beleza; bebi sem chegar às fezes a taça de amor que ali se oferece a quem é voluptuoso; nunca lá adoeci de corpo nem da alma. Se levava saudades de Paris!
Fomo-nos acolher à minha choupana caiada da Beira. Em Medina del Campo inflectimos por Madrid a visitar Velasquez. Raros como Benito Galdós encontrei que tomassem partido contra a Germânia. Ao contrário, em Portugal a França, amado leite, e a Inglaterra, fiel aliada, reuniam o sufrágio dos corações. (...)

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Ladrão abençoado

Há-de ser distracção minha, que não sei em que ficou aquele caso do computador roubado a Miguel Sousa Tavares, e levava um romance no ventre.
Há males que vêm por bem, se não houver aqui conspiração de alguma musa inquieta, que assim torceu as voltas a quem pôs o país a ler, desde que decidiu tornar-se escritor.
Ao sair do campo da intervenção jornalística, onde construiu figura que muitos reconhecem, alguns estimarão e aqui se respeita muito, MST caiu na velha pecha, que é trocar o certo pelo duvidoso. E pouco mais tem feito do que sujeitar a tratos de polé as artes literárias. Pois se EQUADOR era ainda assim um objecto sofrível, o RIO DAS FLORES é uma coisa medíocre, para não dizer lastimável. Deixaria incomodado o próprio autor, caso ele desse mostras de saber que há uma boa diferença entre produzir literatura, e vender frutas no mercado do Saldanha.
Pelas amostras precedentes, o romance roubado a MST não há-de ser flor de bons aromas. Abençoado ladrão, era agora caso para dizer! E mais ainda se ele tomasse a cargo os computadores doutros mixordeiros que andam por aí, também a vender gato por lebre!

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Artistas do arame

Oliveira e Costa foi chamado à comissão parlamentar de inquérito às barafundas bancárias. Entrou mudo e saiu calado.
Entende-se que o arguido não tivesse a declarar nada de particularmente edificante. Porém um tal silêncio é tanto mais comprometedor, quanto mais silencioso. Mas logo o PSD e o PS o consideraram legítimo.
Por aí se reconhece o bom artista! É tanto mais afoito no arame, quanto mais sente a protecção da rede!

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Portugalmente (13)

(...)
O viajante já sabe, por experiência pessoal, que filhos e cadilhos são uma e a mesma coisa, embora nuns casos mais que noutros. Começa a pensar que não lhe bastaria conhecer aqui a senha deste milagre, indispensável e urgente era que fosse um santo milagreiro, dono das senhas todas. Como nem uma conhece, desvia a conversa para o rumo que mais lhe interessa.
- Vai votar, no domingo?
O senhor Albino tem votado sempre, desde que há eleições. E sempre no mesmo partido. Mas agora está perturbado e hesitante, porque não vê recompensada na vida a sua fidelidade na urna dos votos. No princípio, quando tudo era duvidoso nas coisas da política, salvo o medo dos comunistas que vinham aí para roubar as terras a quem as tinha, ele escolheu o seu partido com a ajuda do padre, e o conselho de uns senhores da vila que fazem o favor de ser seus amigos, à porta de quem vai quando tem dificuldades, como naquele caso dos filhos. Mas só tem visto a vida a andar para trás. O leite das vacas levam-no hoje ao mesmo preço de há vinte anos, o centeio não paga as despesas da colheita, apanha-se como palha para o gado, e a batata só dá qualquer coisa em anos de milagre. Não há ninguém disposto a trabalhar no campo, vem tudo lá de fora, e os subsídios da Europa ninguém sabe que caminho levam. Cada vez mais as terras ficam ao abandono, os matos tomam conta de tudo e nem os pinheirais escapam nos montes, que vêm os incêndios no verão e ninguém os pode parar. O que era preciso é que o governo fixasse à partida um preço para as produções, assim já sabia cada um com que podia contar.
Arriscando uma apressada opinião, o viajante suspeita que o senhor Albino não faz a mínima ideia do mundo em que está metido. Bem serve ele a sua obrigação, que é cultivar as terras, esperando que outros venham a cumprir a sua. Mas não sabe que os mandantes que levaram Portugal à Europa trocaram metade do país pelo rio de fundos que de lá vem. Nunca ninguém lho explicou, e também não era coisa que ele se pusesse a imaginar. Por isso é que se mata a trabalhar todos os dias e já não sabe o que fazer à vida, não sabe o que fazer às despesas, não sabe o que fazer às terras, e tem hoje muita pena de não ter emigrado no tempo certo.
- E esses fundos, para onde vão?
O senhor Albino nunca foi ler a história de Portugal, e dela só lhe ensinaram o pouco que está escrito numa placa de mármore, ali atrás, cravada na parede. Já ouviu falar de marinheiros antigos e afamados, mas não faz ideia do que se passou com a pimenta das Índias, nem com o ouro dos Brasis, nem dos caminhos que uma e outro levaram, no seu tempo. E por tão pouco saber dessas antigas práticas, não pode agora adivinhar o caminho que os fundos levam.
- Para onde sempre foi tudo, em Portugal! Para aí é que vão os fundos europeus!
O senhor Albino quedou silencioso e mais que ele o viajante, repeso já de quanto disse, talvez venham a sobrar da Europa umas migalhas para o seu amigo. Um dia leu num livro esta grande verdade, que é ser a agricultura a jardinagem da natureza. Sem ela é tudo confusão e selva escura e fogo, tudo o contrário da vida organizada. Por isso pensa que o país, e a Europa, deviam pagar ao senhor Albino só para ele existir. Apaguem as fronteiras do mapa e façam das alfândegas o que quiserem. Mas ninguém lhe exija, a ele e às courelas da Ribeirinha, o que nem um nem as outras poderão fazer. Paguem-lhe o justo preço das suas produções, para poder manter-se vivo. E depois condecorem-no por lavrar as suas terras miúdas, por cuidar das matas que ainda há na encosta, por ser um jardineiro da natureza e manter habitável este mundo. Pois quando vierem a morrer os Albinos todos que há nele, é o coração de Portugal que morreu. E Portugal não tem outro.
(...)

domingo, 11 de janeiro de 2009

O Roque e a amiga




Estão ambos ali ao cimo da avenida, há um ror de tempo, a quezilar. Nos dias de calor sonham com o lençol do rio, que passa lá ao fundo. Sempre traz uma frescura e lembra-lhes o mar, e o mundo para além dele. Fora disso contentam-se com a baixa pombalina, que lhes dormita aos pés.
Um tem formação romântica e espírito clássico. Recolhido nas abas do capote, hierático e definitivo, parece um rei de pedra, dos antigos. Bem pode o mundo quebrá-lo mas não o torcerá, porque a razão não deixa.
O outro tem formação clássica e um coração romântico, e uma alma que não se lhe confina nas arcadas do peito. Traça no ombro a capa esvoaçante, e avança para o mundo de cabeça erguida, de barbicha à dandy, gaforina ao vento. O génio todo está no sentimento.
Sempre que passo ali, eu bato-lhes à aldraba e empurro a cancela. Para saber quando resolvem a disputa.

sábado, 10 de janeiro de 2009

A Rosalina do Valtalhado

O fidalgo de Longroiva saiu hoje a passeio. E observando nós o aparato da equipagem e as regularidades do calendário, bastar-nos-á juntar dois com dois para sabermos do seu destino. Ajudou-o o criado a alcançar o vasto assento da caleça, ajustou-lhe nas canelas os polainitos claros, estendeu-lhe à mão a bengala encastoada e dispôs-lhe ao lado a manta de lã, com que há-de cobrir os joelhos em lhe chegando a altura.
Ajeitou-se ele próprio na boleia e entalou ao lado o cabaz do farnel, metade dum queijo manteigudo, desses de pastor, umas fatias de pão cóscoro, um vinho de bom grau. Incitou de voz o velho Tirano, fez-lhe estalar as rédeas ao comprido do lombo, a equipagem lá vai descendo a rua. Está amena a manhã de Setembro, o sol banha já por inteiro o vale da Veiga, um céu azul finíssimo cobre estes montes, quase podem nomear-se as casas da Relva além, uma por uma.
O chouto do velho Tirano ressoa na calçada, já lhe pesa nos quartos dianteiros o andamento da carriagem nas reviravoltas do íngreme caminho, lá ao fundo, em chegando à estrada real, o macadame é plano, outro galo cantará.
Alguns rústicos tornam das hortas e desbarretam-se num ar de submissão, que estes são tempos marcados pela bruta demasia das diferenças de condição e posses. Daqui a muitos anos será diferente, não faltará então quem diga que em excesso o respeito se perdeu. Por enquanto o rufo dos liberais tambores da república mal se fez ouvir por estas terras, fez eco nos pinhais da Verdadinha e diluiu-se no ar, se promessas trazia delas não passou, quem tinha o dom com ele ficou.
Porém, passado o cruzamento e assim trocada a salvação servil, não faltarão em casa os risos zombeteiros, hoje saiu a passeio o dom fidalgo vamos ter festa no Valtalhado, fraca festa a minha, sem foguetes nem música, vou ali já venho. Cala essa boca e deixa viver quem vive, isto dirá a mulher, mais branda nos julgamentos e tolerante com o mundo, a inveja e a má raça é que te fazem falar.
À tarde, na taberna, ainda hoje as opiniões se dividem quando o fidalgo vai a passeio, uma vez por mês, muitos há que já recusam falar nisso. A princípio saía mais amiúde, era novo e tinha outras exigências, ia sozinho a cavalo no Tirano e voltava quando Deus queria. Hoje envelheceram cavalo e cavaleiro e foram-se espaçando as saídas, um habituou-se a andar atrelado à sege e outro talvez já nem a carroça puxe, e este é um alvitre de bocas de mais ousada língua, alentada por um copo a mais, esta é ainda a grande libertação.
O que se sabe é que o homem, então na força da idade, chegou um dia à terra e comprou a Casa Grande, hoje só se lembram disso os mais velhos. Enquanto decorriam no casarão as obras de restauro, fiturava a gente de que brasis vinha tanto dinheiro. O homem era desconhecido, ninguém lhe dava razão das procedências, e em tão escuro congeminar não se descortinava por que viera ele alcançar poiso aqui na terra. Nem ele se abria em confidências, justamente lhe chamaram fidalgo pelas distâncias que tomava do rude gentio da aldeia, saudava com gesto comedido sem descer do pedestal, vivia atrás dos muros da cerca e nunca reservou genuflexório na igreja, nem parecia dedicar ao abade atenções especiais. O tempo rodeou-o deste mistério, que a princípio cultivou e de que não se livrou mais, se algum dia o terá desejado.
O fidalgo, que na altura ainda o não era, não disse a ninguém donde vinha quando um dia desembarcou em Lisboa, dum vapor da mala real inglesa. Algum tempo depois, cinco paquetes do hotel levaram-lhe os malotes ao comboio do Rossio. Viajara el-rei há poucos anos até estes fins do mundo para abrir a linha da Beira Alta, parece que nem a bola da terra havia de girar sem estes gestos vãos, e foi também na estação de Celorico que este viajante se apeou. Trouxeram-no duas mulas e um recoveiro por essa encurvada estrada acima, passou, sem se deter, no Chafariz do Vento, ouviu do companheiro as lendas que cercavam as muralhas da vila, além no alto, a do fero João Tição e a da donzela Iberusa. Ninguém sabe que destino levava nem que estrela lhe riscava o caminho, a noite, fechada e concreta, veio ter com ele à estalagem da Rosalina, no Valtalhado. Havia histórias de salteadores que corriam pela aridez da charneca. E o recoveiro, calhado no ofício, negou-se a seguir viagem depois que se pôs o sol.
As casas da Rosalina eram já o que ainda são, e por estes anos aqui ficaram de guarda à estrada real, oferecendo poiso a almocreves e viajantes avulsos, de rota batida para Além-Doiro. Será esse o destino do cavaleiro andante, ao certo nem o recoveiro o sabe, se o próprio o saberá, o viajante é de poucas falas e ofereceu bom dinheiro por cada dia de frete, este bem mais leve do que transportar o sal que chega nos vagões do comboio, nada mais foi preciso dizer.
O recoveiro fez entrar as mulas no quinteiro vazio, a um lado a casa principal, de sobrado e alpendre, com três janelas na frontaria, a outro os baixos térreos para acomodar as descoroçoadas alimárias. O viajante ficou ainda uns momentos fora do portão, deteve na casa um olhar indecifrável, girou-o depois pelo horizonte como se em consultas, parou na toada agreste dos penhascos de Marialva e só depois entrou. Uma rapariguita mostrou-se no alpendre, sete ou oito anos tímidos no vestidito pobre, ficou-se a ver o girar de modos do recoveiro que prendia as mulas na argola e lhes aconchegava o penso, evitou o olhar do viajante severo que a assustava e reentrou em casa. Só depois a Rosalina assomou, vulto escuro a pedir aos viajantes que subissem, e ao entrar acharam-se todos na cozinha, surpreendentemente vasta.
Ali pernoitaram, o recoveiro numa tarimba do palhal e o fidalgo em catre certamente melhor apetrechado, isto supomos nós, que não haviam de ser por aí além os cómodos do tempo e do lugar. Nunca ninguém deu fé do mistério que nessa noite aconteceu, e o recoveiro, se ainda existe, nunca foi ouvido. O caso é que, depois dessa noite, o desconhecido viajante apareceu a fixar-se aqui na Casa Grande de Longroiva, e a iniciar ao Valtalhado a romaria que uma comovente constância faria durar até aos dias de hoje, a princípio cada semana, mais tarde todos os meses, quando se pode hoje em dia.
Logo estrugiram vozes por aí, rudes que são as cabeças e peçonhentas algumas línguas, se não sujas todas. E do altar para baixo já sabemos que só intolerância e preconceito escorrem, como cascata. Para retomarmos o ponto, a Rosalina era então uma mulher com os seus trinta anos, há três viúva dum farsola que se finou na ponta duma naifa biqueira no mercado do Rabaçal, em noite de mais vinho. Tais casos nunca ficaram deslindados nem limpos, dois ciganos da raia ainda foram presentes ao juiz de paz mas nada se desvendou, uns porque tinham má pinta no sangue, outros por não fazerem uso de melhor currículo, de entre eles não era o esfaqueado flor de melhor cheiro, tudo se findou por ali, que não havia no caso gente importante. Às costas de Rosalina ficou a estalagem que sempre fora cuidado seu, e uma filhita que também nunca fora outra coisa.
Ainda hoje se fala das qualidades de mulher que as suas eram, as morais e as outras, que todas contam para nos compor a sombra, ambas mal empregadas em tal homem, mas dele já soltas, como se viu, vislumbrando enredos de coração e cama por baixo deste enigma do fidalgo. Mas convém-nos atentar como é tosca esta gente e falha de observação, incapaz de compreender os dotes de quem fuja à comunal medida, um tanto de inveja escondida e doentio orgulho, outro tanto de vesga intolerância e rudes impulsividades, a miséria a completar o resto da bisonha figura, fica a paisagem completa e dela ninguém pode tirar ilações definitivas.
Por isso nada sabemos ao certo, salvo que esta peregrinação começou e se manteve por mais de vinte anos, e que, estando o fidalgo presente, a Rosalina retirava da torça da porta o verde ramo. Queria com isso significar aos passantes que o fidalgo dirigia o tempo a seu gosto, e que, no entretanto, só a ele Rosalina servia de hospedeira. Do resto, só ela saberá o usufruto que daí lhe vinha, ele há compensações que as balanças romanas não podem medir, vê a gente um fiel a desequilibrar-se e não se lembra de que nem sempre dois com dois são quatro.
Mas são-no agora, neste caso concreto em que o fidalgo saiu a passeio, ao Valtalhado irá. Já a sege desliza no macadame da Veiga, já o fidalgo cobriu com a manta de lã os joelhos alquebrados, vemo-lo assim e pensamos que também para ele a vida já lá vai, quem poderá estar seguro disso, Rosalina morrerá primeiro.
Num fim de tarde, que não vem longe, sairá o criado sozinho. O fidalgo, por doença de momento ou incapaz já de o fazer, mandará por ele, em metal sonante, o dote que a Rosalina caberá. Quer ele manter o privado enigma até ao fim, se coisa aqui houve que coisa terá sido, ligações directas de bens ao luar ninguém as apontará.
O criado não sabe o que vai lacrado no cabaz, nem Rosalina o dirá a ninguém, que também não chegará a sabê-lo. Mas tem o diabo, ou alguém por ele, artes que nos escapam e surpreendem. Nessa noite, será inverno, há-de ela receber a visita encoberta do fraca-rês do genro, a morar em Vale de Ladrões. Rosalina, com uma frialdade no peito, terá aquecido a água na panela de ferro, ajeitará a bacia de esmalte sobre a mesa da cozinha, há-de misturar na água fervente umas bagas de marcela e três pés de salva e arruda, cobrirá a cabeça com um espesso pano vermelho, e debruçar-se-á sobre os vapores da bacia.
O genro há-de entrar então sem ruído, estenderá sobre a cabeça coberta de Rosalina as escuras mãos ambas, mergulhá-las-á na bacia. A mulher, tomada assim de surpresa fatal, vai debater-se em roncos descompassados, golpeará o ar num terror pânico, torcerá as mãos que hão-de esfarrapar o grosso pano vermelho, e rasgará sulcos de unhas esfaceladas no tampo de madeira. O seu corpo há-de pular desesperado no assento da cadeira, e há-de estrebuchar como um possesso, antes de se quedar numa lassidão final, tão absurda como definitiva.
O genro há-de encontrar o cabaz misterioso, violará o lacre e provará o brilho das libras cavalinhas. O crime há-de ir parar às mãos do juiz de paz do Rabaçal. Mas tudo ficará inconcluso por falta de melhor prova, e por não haver no caso gente importante.

Ilusões e perda delas

De repente dei-me conta de que eu dispunha duma geração, para construir o que ele tivera sete para fazer. E deixei de pensar em igualdades no mundo.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Espécie extinta?!

Há quase dois meses, vieram a público duas versões contraditórias da mesma conversa, havida entre o capitão de indústria, conselheiro de estado e ex-ministro do PSD Dias Loureiro, e o vice-governador e supervisor do banco de Portugal António Marta.
Disse Dias Loureiro:
- Em Abril de 2001 fui um dia ao BdP, sozinho, às 4 da tarde, e disse a António Marta que o modelo de gestão do grupo (SLN) não me inspirava confiança, e que havia accionistas que eu sentia que faziam negócios com o banco.
Disse António Marta:
- Se o dr. Dias Loureiro anda a dizer isso, ou está a fazer confusão com a pessoa, ou está a mentir. O que ele veio foi perguntar-me porque é que o BdP andava tanto em cima do BPN, pois que aquilo era tudo boa gente. (Se ele diz o contrário) é porque quer ilibar-se.
Ao contrário do que apregoam os mixordeiros profissionais, há nisto (como em tudo) uma verdade e uma mentira. E conhecer uma e outra é assunto fundamental da nossa vida colectiva.
Ora a propósito tem havido cenas lancinantes, e juras de palavra de honra, e faenas variadas, que fazem vender papel mas não atam nem desatam. De António Marta ninguém mais ouviu falar.
É aí que surge a pergunta: entre tantos papagaios amestrados, que andarão a fazer os jornalistas, cujo papel é informar-nos? Ou são já espécie extinta?!

Portugalmente (12)

(...)
O viajante afasta-se em silêncio, na verdade recolhido em si mesmo, só para continuar a ouvir interiormente o sussurro de Libório à despedida, saudinha para o senhor. E já vai a subir as escadas dum alpendre belíssimo, nesta casa velha de telhado a cair, quando os acórdãos vibrantes dum carrilhão electrónico se põem a gritar o meio-dia na capela de S. Sebastião, que está escondida ali ao lado. Indústrias de Braga, pensa o viajante, que logo decide afastar-se, a ver se salva os tímpanos. A esta hora o sol é já duríssimo, e a rua está deserta. Mas o viajante sente o peso duns olhos que o espiam, se não forem enganos dalgum instinto antigo que há-de conservar. Há um largo portão de folha que se entreabriu, e dele sai um homem abrigado num chapéu de palha. Apesar da barulheira do carrilhão, a retumbar nos ares um Avé de Fátima que ameaça não ter fim, o encontro é inevitável.
Os modos do homem do chapéu de palha são os de quem sofreu uma invasão. Quer saber de que é que o viajante anda à procura.
- Procurar, procurar, não procuro! Ando a ver! As pessoas, as casas, o mundo...
Ao homem parece que agradou a resposta vaga de filósofo barato, porque se abriu num sorriso. Quanto ao viajante, depressa se deu conta da sorte que teve neste encontro, porque o senhor Albino não é uma personagem vulgar. O senhor Albino é uma figura que saiu agora mesmo dum quadro naturalista de há um século atrás, para vir encontrar-se aqui com o viajante. Usa o mesmo vestuário, conserva os modos antigos do falar, espalha em volta o cheiro dum suor que há muito tempo se vai lavando a si mesmo, e cobre a cabeça com um chapéu de palha que já não existe. O viajante não vinha à procura do Portugal antigo, que o guarda na memória com grande utilidade, mas fica satisfeito por encontrá-lo aqui. Melhor pode cotejá-lo com o Portugal moderno, se não é isto forçar as palavras, e tirar a prova aos dois. Mas acha estranho o aspecto já um tanto alquebrado do seu interlocutor.
- Vida dura, amigo!
O homem ufana-se de ter já tantos anos como sessenta e sete, e de manter a sua actividade, mas lamenta a dureza dos seus ingratos trabalhos. E muitas vezes vãos, o que é pior. Ao contrário de muita gente, teve sempre terras suas onde trabalhar, e foi por isso que não emigrou, no tempo certo. Tem filhos ainda novos, que andam a estudar, e à surpresa do viajante confidencia que se casou tarde.
- Pois antes tarde e bem que cedo e mal, como às vezes se vê!
A escolha do senhor Albino foi tardia, mas boa, como o viajante há-de confirmar. E trouxe-lhe cinco filhos, entre eles um varão. Mas o viajante não sabe distinguir se isto é causa de alegria ou de contrariedade, porque todos lhe deram consumições e sobressaltos cabondes. Uma teve problemas de nervos, parece que era fraca do cérebro, foi uma trabalheira. A outra a seguir teve aquele grande susto com uma tia, por causa duns piolhos. A boa mulher aplicou-lhe na cabeça o insecticida que usava no campo. E a doente, se ia resistindo à moléstia, por muito pouco se não finou da cura. Depois veio a do meio, e logo lhe havia de cair uma panela de água quente num pé, foi um mês inteiro a correr para os tratamentos. O varão, ainda criança de escola, partiu um dia um braço. Lá andaram com ele em gessos e bolandas, mas ainda hoje não está bem, que ficou com defeito. À mais novata apareceu-lhe uma coisa ruim no ventre, até parece impossível, de tão nova. Agora já está bem, graças a Deus, só tem que ir aos hospitais de Coimbra uma vez por ano.
O viajante escuta com toda a atenção o rosário das queixas do senhor Albino, há muito que sabe que todos os milagres nascem apenas duma boa palavra. E bem gostava de a conhecer agora, para a poder usar, porque o rol das desditas do seu amigo ainda não terminou. Quando começou a trabalhar no comércio, a sua mais velha precisava dum carro, para se movimentar. O senhor Albino aceitou que não há modos de se viver sem ele, e lá lhe deu mil contos por um. Até ao dia em que sucedeu não sei o quê num cruzamento, e o carro acabou na sucata. O pobre homem teve que comprar outro, e agora não sabe bem o que fazer quando os outros filhos começarem todos a trabalhar, e precisarem também dum carro, para se movimentarem.
(...)

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Cavalheiros de indústria

Assim de chofre, ninguém quer acreditar, e até ao mais pintado neoliberal hão-de estremecer os ditos! Dois cavalheiros de indústria da pornografia reclamam ajudas ao erário público, para enganar a recessão. Com grande cópia de justificações!
Mas a notícia chega de Chicago, e isso torna tudo mais compreensível. É que, na América, os que puxam os cordéis do mundo seguem os princípios do bordel.
A questão já é antiga. Mas os modos de esfolar cabritos não têm mudado muito.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Ecos da Sonora IX

UM ESCRITOR CONFESSA-SE.
(E a páginas 131, Aquilino Ribeiro, na flor da juventude, vai prestar provas para amanuense da Companhia dos Caminhos de Ferro. Eram os primeiros anos do séc. XX)

(...) Ao meu lado, um rapazola abrigava o trabalho com a mão em concha, não fosse eu libar o pólen de sua sabedoria e saltar por cima dele na classificação geral. Outro passou-me o seu primeiro borrão, conscientemente erróneo, animado do mesmo propósito ou com o objectivo mais decidido de eliminar-me. Peripatetizando na sala, os argos vigiavam não houvesse mascambilha, e com um ar casual, dedo rápido e as duas palavras-chaves cochichadas por trás da orelha, remetiam os amigos ou pupilos no bom caminho.
E sendo certo que a partícula representa o todo, o bicho a espécie, um português Portugal, aquela sala era bem o microcosmo duma sociedade pandilha, inditosa e superlotada de profissões liberais. E dela, à tona de água, ressaltava o seu complexo de inferioridade, pobreza, sofreguidão, uma fingida simpatia humana, e decadência colectiva.
Alcancei na pauta um número para lá da centena, pelo que seria sebastianismo puro acalentar a esperança de ser provido no lugar duma administração onde não havia carruagens que se vissem, não havia velocidade século XX, e não havia horas certas de partida e chegada, mas um imponente conselho director, outro igual conselho fiscal, e não sei quantos mais conventículos, exactos a repartir o lauto e suculento bolo. (...)

da capo - 20

MASTRADOS
A senhora mastrada é mulher do senhor Roxo e tem um sindicato. Mal se lhe compreende um homem desta cor, e é talvez por isso que tem um sindicato. Mas adiante.
O senhor Roxo está em prisão preventiva, será por muito ir à missa, um dia algum juiz decidirá. E o facto é que, por ser a mulher do Roxo, a senhora mastrada teve em casa um mandado de busca, que um desembargador qualquer determinou. Do desembargador não sabemos mais nada. Apenas que desembarga e determina mandados, o que já não é pouco. E os oficiais lá foram.
A senhora mastrada concedeu que é mulher do senhor Roxo, e até lhes falou do sindicato. Mas não era bem isso que eles queriam saber. E do que iam à procura não se falará aqui, por estar em segredo de justiça.
Sucede, porém, que a senhora mastrada, ou por ter um sindicato, ou por ser mulher do Roxo, não pode sofrer em casa um mandado qualquer, assim do pé para a mão. Mormente sem a presença dum mastrado do conselho superior, capaz de validar a diligência: a ver se os oficiais dão o bom-dia, ou se pedem licença para revistar a alcova, ou desencravar à senhora mastrada alguma gaveta renitente.
Ora sucedeu não estar presente o tal mastrado, pois que o desembargador mandante se esqueceu de avisar o conselho superior, das intenções da busca. E assim foi anulada a diligência. Não por quaisquer razões substantivas, que se guardam em segredo de justiça. Mas por este claro e insuportável vício da falta de memória dum desembargador. Até os códigos ficavam a sangrar, se alguma coisa transitasse em julgado!
Agora, quando eu for grande, já sei o que quero ser. Não vou abdicar de ser mastrado e ter um sindicato. Mais hei-de aconselhar os meus vizinhos a esfolharem os códigos e a fazerem-se juízes. Ou até desembargadores, a ver se desembargam isto tudo.

Crise providencial

Já antes da questão do sub-prime, esse bolo de estricnina que a América fez engolir ao mundo inteiro, Portugal estava atolado numa crise sem saída. A incompetência atávica, ou a cupidez infrene, de quantos ocuparam o poder depois que a esperança de Abril se evaporou na neblina, já tinham condenado o povo à miséria e o país à irrelevância.
Desta maneira, abençoada seja a crise universal! Apanha com as culpas todas, e garante a Portugal mais meio século de história!

O bombo das comédias

Consta para aí que há dois novos heróis, na história mais recente de Portugal: um estadista, cuja sagacidade nos conduziu à Europa, e um governante, cuja sabedoria logrou tornar-nos modernos. Não há treta mais falaciosa, nem lábia mais despudorada!
O país integrou-se na Europa pela mais natural ordem das coisas, que é bater um faminto àquela porta em que lhe cheirar a pão. E esse tal governante, que transformou Portugal numa nação de sucessos, mais não fez do que pintar-nos num papel já velho. Copiou uma história muito antiga, em que foi sempre o mesmo o bombo das comédias.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Portugalmente (11)

(...)
Antes de os emigrantes terem construído as suas vivendas vistosas ao longo da estrada, toda a aldeia vivia em roda deste largo minúsculo, plantada num esporão que afunila o vale. E tanto é discreto o povoado e o seu largo, quanto é imponente e majestosa a montanha erguida ali em frente. Em tempos idos, quando apenas bicharada brava aqui vivia na floresta, era Vale das Corças que o sítio se chamava. Por aqui andou o rei povoador exercitando galgos e falcões de altanaria, nos intervalos de mais pesadas lides de fixar as gentes, organizar concelhos e defesas, distribuir direitos a colonos, refrear ambições de nobres godos e de clérigos. Era assim que as nações se faziam, e assim Portugal se começou a fazer.
Mais tarde foi este lugar Quintã das Corças, e depois Vilar de Corças, à medida que se foi povoando. E de todas estas terras fez o rei doação à Ribeirinha atrás falada, que já era senhora do Lanhoso, e muito bafejada de predicados naturais. Ao viajante, que apenas se funda nos argumentos da sua fantasia, muito agrada imaginar que por aqui, neste vale da Ribeirinha, andou folgando el-rei nos braços da sua dona, senhora branca e vermelha, e feiticeira de famas que chegaram aos ouvidos do papa de Roma.
Assim se despovoaram as corças, de que há muito nem lembrança resta, e se foi povoando este lugar, que delas tomou o nome. Tanto se povoou que teve a pobre gente de subir àquelas vertigens do Galgueiro, e construir nelas os socalcos que por lá se vêem, para segurar as terras e lavrá-las. Eram sáfaras e frias, porém outras melhores não havia, que todas tinham dono.
Embora o calor do final da manhã já comece a apertar, o viajante não precisa de se fatigar muito para dar uma volta pela aldeia. Entre ruínas de pedra que parecem ao abandono, encontra umas casitas restauradas, na traça e nas dimensões originais, e outra vez fica encantado com o empedrado limpo das ruas antigas. É isso que manifesta aos três conversadores que ali estão, abrigados na sombra dum alpendre, enquanto uma velhota mata a sede às sardinheiras e a umas latas de manjericos, que se puseram assim vistosos para o S. João.
- Belas ruas, assim de pedra!
- É o que não falta, por aí!
É seca esta resposta, e vem dum homem que ainda tem ao ombro uns apetrechos de trabalho, com ar de quem chegou da horta. Mas o viajante não sabe se ele fala das ruas, que achará muitas, ou se das pedras, que inundam a paisagem e são ainda mais. Resolve jogar nos dois tabuleiros.
- E sendo muitas as pedras, por que tardaram tanto as ruas empedradas?
O viajante não quer ser impertinente. Lembra-se das aldeias que havia há trinta anos, conheceu-lhes a insalubridade primitiva, e ainda não esqueceu o relatório dos sovietes vermelhos do concelho, que foi ler a um livro. Deixou cair a provocação, a ver se alguém lhe diz o que é que aconteceu, e que razões vieram finalmente modificar as coisas. Agradava-lhe agora ouvir falar de direitos e de cidadanias, de poderes municipais antigos como o rei Sancho, de fundos que da Europa vieram, e de coisas assim. Queria tirar a temperatura à consciência. Mas a febre, se alguma aqui passou, ficou-se por um encolher confuso de ombros.
Confuso fica também o viajante, e perturbado, enquanto vai decifrando o texto que lhe aparece inscrito nesta placa de mármore, cravada numa parede:

Vilar de Corças, Primeiro de Novembro de 1961
Homenagem aos mortos desta povoação rezemos por eles
um Pai-Nosso. Rezemos outro Pai-Nosso pelos nossos
queridos militares que perderam a vida no norte de Angola
não esquecendo o piloto do Santa Maria Nascimento Costa e que
a Imaculada Conceição rainha do Céu Universal salve Portugal.

Ao viajante apeteceu-lhe benzer-se, tanto se teme de bruxas, mas não chegou a fazê-lo. De salvações não percebe nada, olha à sua volta e vê ainda menos. Mas descobriu, afinal, por que razão, sendo tantas as pedras por aqui, tardaram tanto as ruas empedradas. É a sua vez de encolher os ombros e deixar-se levar por uma rua sem saída, pois que saída não é a canada irregular, estreitíssima e sombria, que se despenha além, encosta abaixo. É tão a pique, que a este lugar chamaram Vale do Inferno.
O viajante fica parado, a olhar a majestade do vale e o silêncio das casas que o cercam, ali sentado à porta duma delas está Libório, que tem um semblante emaciado pela solidão. Aqui desconfia o viajante que usufruir todos os dias deste panorama, ao abrir da janela, será uma coisa boa mas não é tudo na vida. Porque Libório tem uma casa plantada mesmo à beira do penhasco, porém é a imagem do desamparo e da tristeza. O viajante dá-lhe a salvação e recebe em troca um sussurro quase doce, Libório não tem voz na fala. Andou nas minas, quando era mais novo. E um dia teve que deixar de lá ir, porque a silicose lhe derrancou o peito. Mais tarde aventurou-se a ir para a França, como toda a gente, mas esteve lá poucos anos, que não lhe tinha o corpo acção nenhuma. Os filhos ajudaram-no a fazer esta casa, onde agora vive, e alguns anos depois de vir de França começou a receber uma pensão das minas. É coisa pouca, nem dá para viver, quem o sustenta são os filhos que estão lá fora. A ele e à mulher, que é mais velha e está dentro de casa, e já não faz grandes lidas domésticas, a avaliar pelo silêncio.
O viajante, que é um homem saudável, tem momentos em que muito gostava de transformar o mundo, ou partes dele, embora já muitas vezes tenha concluído que não pode. É o que o seu olhar diz a Libório. Este devolve-lhe um sussurro, ambos fizeram o que podia aqui ser feito.
(...)

Peripécia com cadela e bispo

Nesse tempo o largo João de Almeida era para nós um sítio onde paravam táxis. Só muito mais tarde havíamos de saber que, por trás do topónimo, se escondia um herói de bigodes, um guerreiro do império que passara o melhor da vida a espingardear bacongos nas matas dos Dembos, e a enxotar cuamatos das savanas da Huíla.
Ninguém levava as glórias nacionais mais a sério que nós, que resistíamos com tenacidade às provas de fogo das aulas de história. Apenas se sentava, o velho mestre surdo logo chamava em seu auxílio um lente:
–Tu! Traz o livro!
E lá ficava a ler páginas e páginas do compêndio do Mattoso. Às vezes morria um rei, achava-se no mar uma ilha deserta, casava-se uma princesa, havia um terramoto. Um dia alguém matou o Miguel de Vasconcelos, amigo da duquesa. E logo a voz do mestre, com aquela autoridade que nasce do saber:
–Sublinhai!
E era na perturbação desses momentos que eu esticava o olho à carta de marear do adversário, e lhe dava o tiro de misericórdia no último submarino.
De forma que, um dia, passando nós no largo João de Almeida a caminho do Monteneve, demos com um taxista a ouvir as notícias no rádio da viatura. Falavam dum sputnik russo, que andava aos assobios pelo ar, a dar voltas à terra, com uma cadela lá dentro. E havia um astrofísico, um eminente professor lusitano, a afirmar que tudo aquilo era uma irrealidade, mera propaganda de Moscovo que nunca poderia acontecer. Na ausência de gravidade, por exemplo, e com tal diferença de pressões, a cadela havia de parir imediatamente, mesmo que o embaraço lhe fosse psicológico.
Foram estas peripécias no espaço que nos trouxeram a ideia de escrever um panfleto de agit-prop. O qual tanto podia chegar à cidade pela mão dum agente infiltrado, como podia muito bem ser lançado lá de cima, já se viram cadelas amestradas a fazer bem pior. O texto falava de paízes que vivem mergulhados no nevueiro à séculos, e de governos que fecham os olhos às luzes do progreço, e de micionários que pregam mentiras aos negros, a dizer que deus é branco. O discurso era assim, marcado por erros estrangeirados, para se tornar convincente e plausível. E acabava a anunciar uma aurora nova, que havia de raiar no mundo, e outros sonhos que nós na altura sabíamos sonhar. E, cá por coisas, tinha que ser escrito numa máquina que ninguém pudesse identificar.
Ora o Black tinha um tio que andara emigrado na América. Homem novo e desempoeirado, depressa lhe chamaram um figo e mandaram-no para a guerra da Coreia. O homem, que não se temia facilmente dum par de olhos, mesmo vesgos, por lá sobreviveu. Voltou à América e tornou-se um verdadeiro calafona. Quando veio acabar a velhice na cidade trazia no bolso uma bela pensão em dolas, e na bagagem um dactilógrafo descomunal, que já servira na General Motors para escrever o mapa de salários do pessoal. Ele não fazia a mais pequena ideia, mas tinha trazido a solução do nosso problema técnico.
Com a conivência do Black, lá levámos o colosso para o Paço do Biu. O lugar era uma fortaleza entalhada na muralha, tinha vista directa sobre a rua do Carvalho, e o frio entrava por ele como quem se passeia no castelo do rei Artur. De modo que a castelã, uma velhota rude que o nosso ingrato coração já olvidou, passava as tardes aninhada à braseira, a metade inferior do corpo escondida debaixo duma camilha ruça.
Três de nós carregavam o mostrengo, os outros iam ajeitando um lençol que o cobria, em certas coisas o segredo não é meio caminho andado, é um caminho inteiro. E logo a velha, ao ver-nos atravessar a sala:
–Ca dianho! É algum marrano morto?!
E não era, dessa vez.
Agora o panfleto estava feito, era indispensável dar-lhe seguimento. Ele havia um colega a quem chamávamos Aristóteles, que fugia a certos cânones, mas tinha relações interessantes. Dava-se muito bem com o padre Vítor, supomos que tinha acesso ao paço episcopal. Passámos uma tarde com ele a analisar os perigos e armadilhas do mundo, interessados em ouvir o que sabia ele dos avanços da astronáutica vermelha, e o que pensava o padre, e o que temia o bispo. No fim mostrámos-lhe à socapa o documento, e deixámos o rapaz arrasado. Pediu-nos para o levar.
Passados dias quem estava interessado em conversar connosco era o padre, mas queria terreno neutro. E nós aceitámos o encontro num salão do secretariado diocesano da catequese, ali no seminário velho, rodeados de cartazes eucarísticos, pagelas de santinhos e calendários das missões. O padre levava a coisa muito a sério, embora lhe pegasse com as pontas dos dedos. O que ele queria era saber a origem daquilo, nós porém não podíamos dizer-lho. Apenas nos constou ter alguém encontrado uma coisa parecida, entalada à porta de casa, numa rua do Bonfim. Mas um papel, papel, ninguém nos tinha mostrado. E o exemplar que estava ali encontrámo-lo nós no Monteneve, no tampo duma cadeira, quando íamos jogar umas partidas de xadrez. O padre acabou a recomendar-nos precaução, não deixou nesse dia um veredicto definitivo.
Quinze dias depois segredava-nos o Aristóteles que o senhor bispo fazia toda a questão em nos ouvir, no paço. E nós lá fomos, no dia combinado. Como não tínhamos nada a esconder, levámos, de caminho, um exemplar do Avante, daqueles de papel bíblia, que nos aparecera na caixa do correio. Desabituados do cerimonial, fomos o mais possível direitos ao assunto. Que nos sentíamos marcados por forças misteriosas, que não podíamos entender nem controlar, que já víamos em perigo a nossa integridade. O bispo serenou-nos, verdade seja dita. Lá nos garantiu que tudo havia de ser esclarecido, e estendeu na nossa direcção a mão sapuda do anel. Desafeitos do protocolo, retirámo-nos com uma ligeira vénia.
Tempos depois vinha radiante o Aristóteles, quando nos informou de que tudo estava claro. O jornalinho era uma criação da polícia política, só para ver em que paravam as modas, como ele dizia nos seus eufemismos. E o panfleto fora redigido num dactilógrafo americano, há muitos anos fora do mercado, daquilo já não havia em Portugal. O senhor bispo mandara investigar.

Imortalidades

Diz este que está vivo aos 100 anos, porque jamais tocou em álcool.
Aquele avisa que chegou aos 120, graças a um cálice de porto quotidiano.
A única verdade é que há um tempo para viver, e outro tempo para morrer. Tudo o resto são aleivosias, desesperadas e caras.

Lembrete

A arte, ou deleita, ou edifica. Em casos assinalados, vão ambas ao mesmo tempo.
Porém, sem uma nem outra, tudo é apenas poeira nos olhos do zé pagode.