O Franklin morava na rua de cima, numa casa de balcãozito sobre o largo. Tinha uma costela de trafulha e outra de aventureiro, e fazia negócios de madeiras. Nesse tempo parecia inesgotável a reserva de castanheiros que alguém plantara há séculos, e cobriam por então a encosta toda. Não faltava trabalho ao Franklin, que levava para longe, ninguém sabe para onde, os velhos troncos que cheiravam a terra, empilhados numa camioneta a queixar-se das molas.
A estrada nova era ainda recente, coisa de poucos anos. Muitas mulheres trabalharam nela, se não mesmo garotos, que então não havia máquinas nem leis. Sentados ali no chão a tarde inteira, partiam à martelada os pedregulhos, que desfaziam em brita para o maquedame. E lá ao fundo, no largo, rompia da estrada velha, vinha em recta por ali fora entre barreiras, rasgava as terras do conde e lá seguia para norte, para a Senhora da Cabeça, para as serranias da Lapa.
Uma tarde o Franklin apresentou-se no largo com um automóvel vermelho, que largava petardos pelo ar e cheirava a gasolina. Tinha um focinho comprido, e na ponta do focinho uma dentuça a luzir, era mesmo um bicho a rir-se.
- Isto é um Chifrolé vermelho, nunca vistens?!
E o adjunto, que nunca vira de perto uma coisa parecida, ficou-se a observar o animal, roído de admiração, enquanto o Franklin forcejava passagem para a taberna.
Um migalho depois regressou ao Chifrolé, ajeitou-se-lhe ao volante e dirigiu-se ao largo. Apontou à estrada nova e toda a santa tarde se passou num badanal, recta acima, recta abaixo. Quando se aproximavam as curvas do conde era uma chiadeira de travões, até inverter a marcha no campo da aldeia nova. A poeirada espessa já tapetava as eiras, afogava num sufoco as cerejeiras da berma. E o trovejar do motor deixava numa fona a canzoada, e enchia o vale inteiro de estampidos.
Quando parou outra vez em frente da taberna, o nariz do Chifrolé já vinha a deitar fumo. Alguém foi buscar um balde de água, mas logo o Franklin se pôs a rogar pragas.
- Só uma besta quadrada é que não sabe que estes fogos não se apagam assim!
E abriu a boca do bicho, enquanto berrava que trouxessem umas pazadas de saibro. Foi ali um sobressalto. E o fumo só amainou quando o Franklin se foi a correr a casa, trouxe um cobertor de papa e abafou nele o motor que resfolegava.
O Chifrolé nunca mais ninguém o viu. E uns anos depois foi dito que o Franklin tinha morrido em África. Debaixo dum tractor que um preto fez empinar, e cambulhou.