sábado, 24 de janeiro de 2009

Portugalmente (17)

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Agora que matou sedes e curiosidades, vai o viajante por essas ruas, que são largas e desanuviadas. E do núcleo antigo da aldeia já pouca coisa encontra, no outeiro do Cabeço. Duas ruínas de boa cantaria, construções avulsas de cimento, e casas antigas restauradas, algumas com critério. Ali numa ruela esquecida entre fragas, uns velhos tugúrios vão lembrando que nem tudo foram as rosas que agora se vêem. Se o fossem, teria a dona Ermelinda onde viver, quando se casou com o seu homem. E não tinha sido forçada a emigrar para o Brasil, em cinquenta e tal, uns anos antes de ter começado a invasão da França. Ali, na ruela hoje esquecida, ficaram guardados os tempos de 1970, em que o soviete do Reboleiro reclamava melhores habitações, além de luz eléctrica, e água, e uma estrada, pela ordem das urgências.
Subindo com persistência esta rua do Calvário, por força havemos de chegar a um gólgota qualquer, vai pensando o viajante, que logo avista ao cimo três cruzes de pedra, dentro dum jardinzito. Dupla maravilha era encontrar agora aqui a Pietá, e poder admirar essa mãe de pedra, muito mais nova que o filho que tem nos braços. Mas isto são fantasias do viajante, que tudo quanto vê são três desmesuradas cruzes, de quatro metros de altura, a ocupar o céu. São pedras recentes e polidas, saíram duma fábrica há meia dúzia de anos, talvez de Braga. Falta-lhes a doçura e o grão do cinzel, o afago das mãos dum canteiro. Ao centro refulge um Cristo de metal, desamparado nas vastidões da pedra, vê-se bem quanto lhe falta uma pietá. Os dois ladrões estão ausentes. Ficou-lhes o nome na base das colunas, à direita é o Dimas, o Gestas à esquerda.
É destas alturas que o viajante melhor pode observar o que era o Reboleiro, e no que se tornou. Que os emigrantes, depois de comerem lá fora o pão que o diabo amassou, chegaram um dia aí e compraram as terras, ergueram nelas as casas que inundam esta paisagem, e multiplicaram a aldeia por três ou por quatro. Nasceu mesmo um bairro novo além, para lá da cortina verde que assinala a ribeira, à margem esquerda dela. E, porque espaço havia, fizeram-se estas ruas amplas e airosas, por onde o viajante agora vai no seu vagar, cada vez mais surpreendido com a variedade de gostos que há no mundo.
O viajante guarda muito respeito ao que vê, mas este respeito não é cumplicidade. Muito gostaria ele de saber quem inventou estas arquitecturas delirantes, com telhadinhos recortados em águas múltiplas, e trapeiras e mansardas e escadórios e balaustradas e colunatas e arquinhos rebatidos e fachadas de azulejo e gaiolas de periquito. Não vê a harmonia disto, nem o sentido da proporção, nem a adequação ao meio, nem o sempre útil casamento das formas com as funções. O viajante pensa que a cultura e o saber dum povo se manifestam em tudo quanto faz, e as casas que fabrica, e em que vive, são disso eloquente manifesto. Mas aqui não vê sinais de passado, nem marcas que fiquem para o futuro. Ora um povo que não guarda um passado, nem constrói um futuro, o mais certo é não existir. Aqui entre nós, muito suspeita o viajante que um tal gosto arquitectónico, se não chegou numa barca doutro planeta, saiu da fantasia dum qualquer vendedor de bicicletas, com banca montada de arquitecto informal, que faz uns riscos para entregar na câmara. A qual assina de cruz, depois do correspondente emolumento. O resultado geral é um desastre.
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