segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Portugalmente (13)

(...)
O viajante já sabe, por experiência pessoal, que filhos e cadilhos são uma e a mesma coisa, embora nuns casos mais que noutros. Começa a pensar que não lhe bastaria conhecer aqui a senha deste milagre, indispensável e urgente era que fosse um santo milagreiro, dono das senhas todas. Como nem uma conhece, desvia a conversa para o rumo que mais lhe interessa.
- Vai votar, no domingo?
O senhor Albino tem votado sempre, desde que há eleições. E sempre no mesmo partido. Mas agora está perturbado e hesitante, porque não vê recompensada na vida a sua fidelidade na urna dos votos. No princípio, quando tudo era duvidoso nas coisas da política, salvo o medo dos comunistas que vinham aí para roubar as terras a quem as tinha, ele escolheu o seu partido com a ajuda do padre, e o conselho de uns senhores da vila que fazem o favor de ser seus amigos, à porta de quem vai quando tem dificuldades, como naquele caso dos filhos. Mas só tem visto a vida a andar para trás. O leite das vacas levam-no hoje ao mesmo preço de há vinte anos, o centeio não paga as despesas da colheita, apanha-se como palha para o gado, e a batata só dá qualquer coisa em anos de milagre. Não há ninguém disposto a trabalhar no campo, vem tudo lá de fora, e os subsídios da Europa ninguém sabe que caminho levam. Cada vez mais as terras ficam ao abandono, os matos tomam conta de tudo e nem os pinheirais escapam nos montes, que vêm os incêndios no verão e ninguém os pode parar. O que era preciso é que o governo fixasse à partida um preço para as produções, assim já sabia cada um com que podia contar.
Arriscando uma apressada opinião, o viajante suspeita que o senhor Albino não faz a mínima ideia do mundo em que está metido. Bem serve ele a sua obrigação, que é cultivar as terras, esperando que outros venham a cumprir a sua. Mas não sabe que os mandantes que levaram Portugal à Europa trocaram metade do país pelo rio de fundos que de lá vem. Nunca ninguém lho explicou, e também não era coisa que ele se pusesse a imaginar. Por isso é que se mata a trabalhar todos os dias e já não sabe o que fazer à vida, não sabe o que fazer às despesas, não sabe o que fazer às terras, e tem hoje muita pena de não ter emigrado no tempo certo.
- E esses fundos, para onde vão?
O senhor Albino nunca foi ler a história de Portugal, e dela só lhe ensinaram o pouco que está escrito numa placa de mármore, ali atrás, cravada na parede. Já ouviu falar de marinheiros antigos e afamados, mas não faz ideia do que se passou com a pimenta das Índias, nem com o ouro dos Brasis, nem dos caminhos que uma e outro levaram, no seu tempo. E por tão pouco saber dessas antigas práticas, não pode agora adivinhar o caminho que os fundos levam.
- Para onde sempre foi tudo, em Portugal! Para aí é que vão os fundos europeus!
O senhor Albino quedou silencioso e mais que ele o viajante, repeso já de quanto disse, talvez venham a sobrar da Europa umas migalhas para o seu amigo. Um dia leu num livro esta grande verdade, que é ser a agricultura a jardinagem da natureza. Sem ela é tudo confusão e selva escura e fogo, tudo o contrário da vida organizada. Por isso pensa que o país, e a Europa, deviam pagar ao senhor Albino só para ele existir. Apaguem as fronteiras do mapa e façam das alfândegas o que quiserem. Mas ninguém lhe exija, a ele e às courelas da Ribeirinha, o que nem um nem as outras poderão fazer. Paguem-lhe o justo preço das suas produções, para poder manter-se vivo. E depois condecorem-no por lavrar as suas terras miúdas, por cuidar das matas que ainda há na encosta, por ser um jardineiro da natureza e manter habitável este mundo. Pois quando vierem a morrer os Albinos todos que há nele, é o coração de Portugal que morreu. E Portugal não tem outro.
(...)