domingo, 31 de dezembro de 2017

Cónegos e bandidos

 
O cónego Melo está no céu há muito tempo, levado por bombistas, marginais e outros que tais. Mas inda mexe, o cabrão!
Quem deixou de mexer foi o padre Max de Vila Real e a cachopa que ele caluniou.
Mas o céu é assim e não passa disto.

sábado, 30 de dezembro de 2017

Palavras mais, para quê?!

"Um padre missionário transportado por um batel perdido e a quem o escorbuto e a malária emagreceram como um abissínio sem poiso casara-os 53 anos antes , já na Guiné que se limitava então a um amontoado de casas no estuário do rio, muitas delas de madeira e de capim, com meninos e jacarés brincando com as mesmas rocas nos mesmos berços de bordão, em torno do palácio do governo e de uma ermida sem majestade.
As jiboias engordavam na humidade dos lagos, e a senhora de luto que lhes alugara o quarto levava o dia com um pé calçado e outro descalço, de botina de verniz no ar, achatando melgas nas paredes. Aos domingos, quando os corpos se procuravam e tocavam nos lençóis musgosos de calor, o caminhar desigual da dama no andar de baixo, entre centenas de pêndulos desencontrados, e os estalos vingativos da sola nos muros de tijolo, acabavam por lhes desanimar a vontade e os fazer sair para a rua, cegos de luz, a sentarem-se nos bancos duma praceta de mangueiras anãs, cujos troncos definhavam na névoa do cacimbo. Ou vinham até ao cais, empurrados pela curiosidade tatuada dos indígenas, assistir ao atracar sempre idêntico dos navios de emigrantes, gente escura de Trás-os-Montes ou da Beira. (...)
O piso inferior foi primeiro ocupado por um vedor da fazenda que negociava à socapa das polícias do reyno em irmãos siameses e miudezas de estanho, a seguir por um poeta de cabeleira empoada e sapatos de presilha e tacão alto que se gabava de ter sido amigo do glorioso defunto Manoel Maria Barbosa du Bocage, eu que vi nascer dos botequins do Rossio os mais belos improvisos do meu tempo, e depois, já na época da guerra, por oficiais roídos de febre intestinal que de dois em dois anos mudavam de cara e de galões e regressavam da mata com um fungo de pelos nas bochechas, porque todos emagrecíamos na Guiné nessa época. A violência das explosões dos morteiros, das bazucas e dos canhões sem recuo estremecia as lagunas de Bissau, sobrepondo-se aos relâmpagos de Março.(...)
Uma noite escutaram por acaso na telefonia, num vendaval de assobios, a revolução de Lixboa, notícias, comunicados, marchas militares, a prisão do governo, canções desconhecidas, e no dia imediato a tropa parecia menos crispada, os bombardeamentos rarearam, pretos de óculos flamejantes e camisas de feriado instalaram-se nas esplanadas e nos largos no lugar dos brancos. "
(O Lobo Antunes devia ser poeta)

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

O século XX, a revolução de Outubro e as suas contradições, a Alemanha e a nossa vida

O filme é um encantamento sublime. Uma história contada pelo Pasternak, filmada por David Lean, acompanhada pela música de M. Jarre, só podia dar nisto: ganhar um óscar e encantar gerações.
Mas isso era no tempo em que havia cinema e se podia perder tempo com ele.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

O Lavrador

"(...) Mais interessam ainda as relações do rei com Eduardo I de Inglaterra com quem trocou muitas cartas, principalmente sobre assuntos comerciais e com quem fez um tratado de comércio em 1294. Correspondeu-se também muito com Eduardo II, cujas opiniões partilhava em 1310 acerca do procedimento dos cavaleiros Templários.
D. Dinis tomou um caminho que demonstra a sua sabedoria política. Lembrou-se dos grandes serviços que as ordens militares tinham anteriormente prestado a Portugal, recordou-se da sua influência e poder, e por este motivo fundou a Ordem de Cristo de acordo com o papa João XXII, em 1319, dotando-a com todos os bens dos Templários, e por esta forma ao mesmo tempo obedeceu ao papa e evitou sérios conflitos no país.
Estas poucas linhas prendem-se com todos os acontecimentos importantes relativamente aos negócios externos, mas não dão ideia do progresso de Portugal durante este período aproximadamente de 50 anos. A agricultura foi largamente favorecida pelo monarca, que fundou escolas agrícolas e hospícios para os órfãos de lavradores, e estabeleceu granjas modelo. Muito fez para honrar todas as empresas agrícolas e levantá-las na consideração da sua nobreza e intentou destruir no seu povo a noção de que a guerra era a única ocupação própria de homens livres. Deu especial atenção ao cultivo das vinhas e plantou o grande pinhal de Leiria, com o qual esperava opôr uma barreira à invasão das areias nessa região. (...).
Mas o predicado mais alto de D. Dinis era o seu amor às letras e o estímulo que deu ao ensino. Foi D. Dinis que fundou a primeira universidade portuguesa em Lisboa. Depois de diferentes transferências, a universidade estabeleceu-se em Coimbra, tornando-se o centro da influência literária em Portugal. O rei era também um poeta de apurado gosto, e no número, beleza e variedade das suas composições provou ser o maior poeta da sua corte.(...)".

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Rubicão

"Se o rio corre e murmura, folga e passa. Se ele troar, treme e fica."
[publicado em Ladrar à Lua]

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

As Naus

Dás um trabalhão ao leitor, sabes António? Agora tás na quinta da infância, logo após tás em Luanda à espera da ponte aérea, a seguir já tás em Ninda, na baixa do Cassange, ou num baixo suburbano de Lisboa, ou nas tias da Barata Salgueiro, ou a guardar o Camões fechado num caixão ...Ao menos o pai natal tratou-te bem?

"De maneira que ficaram à espera no vestíbulo diante do alarido do tojo e dos ralos de agosto: a mulata e o garoto completamente mudos, arqueados e quietos na escuridão que crescia, medindo tudo, verificando tudo, espiolhando tudo, as centopeias sem rumo, os escaravelhos mortos, as lagartixas átonas nos relevos do tecto, a noite e a via láctea dos candeeiros do Martim Moniz que nenhum dedo desfia, e eu, branco de Coruche sem instintos nem mistério, demasiado afastado dos castanheiros da infância, a cismar no dinheiro do indiano e na forma de roubá-lo, ouvindo passos e cicios e arrastar de baús, lembrando-me do meu avô a tactear o sol das três da tarde com a bengala até que a voz do senhor Francisco Xavier proclamou, à medida que as sandálias bolorentas se avizinhavam de novo, Arranjei-lhes um quarto com mais oito famíulias de Angola, reparem na vossa sorte, caneco, tudo conterrânea, tudo solidário, tudo compincha, tudo no paleio, que é dos cinco contitos, ó sócio? (...)"

domingo, 24 de dezembro de 2017

Pregarias

Nesse tempo as forjas dos ferreiros temperavam o ferro, e desenhavam com ele as formas que eram precisas. Mas não o fabricavam. Isso era feito em fábricas de longe.
O Victorino era da terra quente, e levava pregarias aos mercados. Das Freixedas à Meda não faltava a nenhum. E nessas andanças arrumava o macho no quinteiro da Cândida do Zé André. Foi o primeiro passo para o casamento.
Mas um dia a Cândidinha morreu, diz-se que ele lhe deu um chá, já se tem visto. Como não havia herdeiros, ao viúvo coube o património.
Aqui na aldeia, com casa estabelecida, o Zé Ribeiro vendia pregarias que recebia do Porto. E com ele se entendeu o Victorino, juntando a fome com a vontade de comer. Foi o primeiro passo para o segundo casamento, desta vez com a Carmina, que acabou por ser a mãe dos Crespos todos. 
Um dia vai ela ao Porto, pagar aos armazéns. E bem a avisaram as sibilas: ai dona Carmina, que anda lá tão ruim a pneumónica! - Eu dou-lhe com a carteira!
E terá dado, mas a pneumónica foi mais despachada. Ela é que já não voltou.
Para bem do Victorino, chegou aqui mais tarde a morgada do Azevo, trazida por umas tias, para uma casa que era um paraíso. E nela se instalou o Victorino, onde lhe nasceu mais uma filha que foi viver para Viseu.
Depois disso achou ele que era altura de erguer um jazigo da família. Mas não sei se está lá dentro.

sábado, 23 de dezembro de 2017

Ó António, porra!

Contigo não há tempos, não há lugares, não há lógicas. Escreves como um condenado, o que não é um destino aceitável.
Já foste uma peça fundamental na literatura indígena. Já foste um cronista como nenhum outro. Agora...
A gente compreende... O que havemos nós de fazer da vida?

"Deste apartamento até à aldeia uma hora e um quarto, uma hora e vinte de automóvel se não houver maçadas pelo caminho, acidentes, obras, um camião avariado, polícias de boné branco e colete amarelo a mandarem-nos estacionar na berma para os documentos e o teste do álcool
- Assopre
inclinados sobre a minha janela espiando de relance, que o serviço também tem compensações, nem tudo é triste neste mundo, as coxas de Sua Excelência que a saia curta melhorava e eu com vontade de exibir-lhes a minha esposa de manhã no seu roupão desbotado, às três pancadas, e ainda sem lentes de contacto, embatendo na mesa, embatendo no fogão (...) eu para os polícias
- Regalem-se
e os polícias regalo nenhum, somente
- Pode seguir amigo (...)
e nisto os gritos dos tropas à minha roda lá fora e cheiro de gasóleo no quimbo
- Queima queima
ao mesmo tempo que Sua Excelência para mim
- Até escavacares isto tudo não sossegas pois não?
galinhas a pularem, um dos cabíris que ladrava, vozes, estalos, passos, um motor ignoro onde que começava e falhava e começava de novo
- Ninguém foge queima ninguém foge
sombras, fumo, uma cabra que tombara de joelhos a levantar-se, um farol de súbito iluminando Sua Excelência só com um pano do Congo à cintura, descalça, os pés pretos como os meus, outra mulher a tossir, rodei a chave do apartamento e ela (...)"

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Memorial

"(...) Milhares de léguas andou Blimunda, quase sempre descalça. A sola dos seus pés tornou-se espessa, fendida como uma cortiça. Portugal inteiro esteve debaixo destes passos, algumas vezes atravessou a raia de Espanha porque não via no chão qualquer risco a separar a terra de lá da terra de cá, só ouvia falar outra língua e voltava para trás. (...) Encontrou-o. Seis vezes passara por Lisboa, esta era a sétima. Vinha do Sul,dos lados de Pegões. Atravessou o rio, quase noite, na última barca que aproveitava a maré. Não comia há quase 24 horas. Trazia algum alimento no alforge, mas, de cada vez que ia levá-lo à boca, parecia que sobre a sua mão outra mão se pousava, e uma voz lhe dizia, Não comas, que o tempo é chegado. (...)
Meteu-se pela Rua Nova dos Ferros, virou para a direita na Rua de Nossa Senhora da Oliveira, em direcção ao Rossio, repetia um itinerário de há 28 anos. (...) Havia multidão em São Domingos, archotes, fumo negro, fogueiras. Abriu caminho, chegou-se às filas da frente, Quem são, perguntou a uma mulher que levava uma criança ao colo, De três sei eu, aquele além e aquela são pai e filha que vieram por culpas de judaísmo, e o outro, o da ponta, é um que fazia comédias de bonifrates e se chamava António José da Silva, dos mais não ouvi falar.
São onze os supliciados. A queima já vai adiantada, os rostos mal se distinguem. Naquele extremo arde um homem a quem falta a mão esquerda. Talvez por ter a barba enegrecida, prodígio cosmético da fuligem, parece mais novo. E uma nuvem fechada está no centro do seu corpo. Então Blimunda disse, Vem.
Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda."

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Voltar a Álvaro de Campos e à noite Antiquíssima e Idêntica!

"Vem, Noite antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio. Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido Franjado de Infinito.

Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas.
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faz da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo,
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe.
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora,
Na distância subitamente impossível de percorrer.

Nossa Senhora
Das coisas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter connosco ao crepúsculo, à janela,
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto,
E que doem por sabermos que nunca os realizaremos...
Vem e embala-nos,
Vem e afaga-nos,
Beija-nos silenciosamente na fronte,
Tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam
Senão por uma diferença na alma
E um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiquíssimo de nós
Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha
Cujos frutos são ao sonhos que afagamos e amamos
Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida.
(...)

Vem, dolorosa,
Mater dolorosa das Angústias dos Tímidos,
Turris ebúrnea das Tristezas dos Desprezados,
Mão fresca sobre a testa em febre dos humildes,
Sabor de Água sobre os lábios secos dos Cansados (...)

Vem cuidadosa,
Vem maternal,
Pé ante pé enfermeira antiquíssima, que te sentaste
À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,
E que viste nascer Jeová e Júpiter,
E sorriste porque tudo te é falso e inútil. (...)
Todos os sons soam de outra maneira
Quando tu vens.
Quando tu entras baixam todas as vozes.
Ninguém te vê entrar.
Ninguém sabe quando entraste,
Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,
Que tudo perde as arestas e as cores,
E que no alto céu ainda claramente azul
Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem,

A lua começa a ser real.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Cailles au sarcophage

Um filme excelente. Moralizador, edificante, construtivo. Virada para os outros, Babette transforma uma comunidade religiosa, dilacerada pela condição humana.
Disto já se não fabrica.
[Melhor filme estrangeiro 87]

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

A loucura do rei Donald*

" O facto de Trump parecer sofrer de algum distúrbio mental ou de vários criou um dilema para psiquiatras, políticos e jornalistas. A Associação Americana de Psiquiatria tem uma regra de que os seus membros não podem emitir diagnósticos sobre pessoas que não examinaram. Mas muitos quebraram a regra e falaram ou escreveram publicamente sobre as suas avaliações profissionais do estado mental de Trump. (...)
Esta definição reflete muito bem os traços que Trump exibe regularmente. Outra opinião de vários profissionais médicos é que o presidente sofre de um princípio de demência. (...) Os sintomas da demência incluem agitação, agressão, delírios, alucinações, apatia e desinibição. (...)". [in DN]

Tá bonita a festa, pá!!!

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Colectânea


A música e a literatura (particularmente o texto poético) são primos carnais. Ambos são trabalhos com o som, o dos fonemas ou o dos acordes. Por realizar ficará sempre o objectivo de fazer dum texto uma partitura de Lizt.
Claro que nada disto interessa ao mercado, nem o mercado me diz nada a mim. Disso estão as livrarias cheias, com romances de 700 páginas. Convirá ao leitor saber que o papel dele agora é fundamental, depois que o autor saiu de cena. Há na colectânea textos que me comovem, na sua aparente insignificância.

O DO RABO LONGO
O abelharuco, que tem o rabo longo, passa o tempo a estudar o relvado, saltitando entre a faia e a figueira. Não são, a bem dizer, os figos que o motivam, mas os grilos. Quando algum se arrisca no carreiro mergulha em cima dele. Crucifica-o no bico, vai sentar-se num galho e come-o. Passou a manhã nisto.
Afora isso abriga-se na sombra e alarga as penas à brisa, a refrescar-se. Só volta ao chão se um grilo se aventura.
Mas mal a gralha, que tem a fala dura, espanejou as asas e desce do carvalho, logo o abelharuco desampara o relvado. Esquece grilo e tudo.

domingo, 17 de dezembro de 2017

Kaposi

Ninguém sabia o que era o sarcoma de Kaposi, nem donde vinha. Fiturava-se apenas que não era coisa boa, dado o aspecto que tinha.
Na dúvida ela protegia-se. E ele acusava-a de distanciamento e desinteresse. Resistiu ela, porque ela era uma bênção. Só os canalhas não entendem isso.

sábado, 16 de dezembro de 2017

O Pavelca

Imagino que terá sido em 1956, na altura em que na Hungria houve um sobressalto estalinista. O Vaticano e a América puseram-se a salivar, e o Pavelca veio parar à aldeia, a casa do padre.
O rapaz era ruivo, falava uma língua estranha. Mas passado pouco tempo já nos entendíamos e ele tomava parte nas nossas brincadeiras. Esteve cá o seu anito. Depois partiu sem aviso, terá ido parar à América que sempre foi uma terra de oportunidades. Quem contaria isso bem era o Grande Chefe Touro-Sentado, se cá estivesse e falasse. Assim, só podemos fiturar que o palhaço loiro do Trump  é bisneto do Pavelca.
Nesse tempo a Caritas da América alimentava o mundo em ruínas. E o padre distribuía ao povo o leite em pó, a farinha, o queijo de plástico das fábricas da América, e até os rolos de mata-ratos que vinham do Kentucky e os velhotes fumavam pelos caminhos.
Um dia metemo-nos num palhal e fumámos um rolo inteiro deles, que o sobrinho do padre surripiou lá em casa. Deu-nos  p´ra tossir durante uma semana, mas foi um  belo começo.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Mensário

"O Bartolomeu não sabe explicar por que tomou a decisão de subir ao chiado, naquele dia à tarde. Certo está apenas de já não guardar esperanças no peito, à medida que ia subindo a rua nova do almada. Dormia há três meses nas arcadas do ministério das finanças, que os pombos ainda respeitavam. Esmolava no sul e sueste, quotidianamente posto em risco pelas avalanches de pernas que desaguavam de cacilhas, e aventurava-se a um almoço na económica dos anjos quando as forças lhe deixavam subir a avenida, o que era raro. Nesse dia trepou ao chiado como quem vai de férias.
Olhai as aves do céu, que não semeiam nem colhem! Soletrou o cartaz pendurado ao cimo das escadas da igreja dos mártires, que no íntimo sentiu como sua, porém sem cogitar o milagre que ali estava à espera. Atravessou o guarda-vento, tacteou ao longo da parede e lançou ao dedos à pia de água benta, num gesto que desenterrou duma memória antiga. E foi quando a mão direita lhe transitava, canhestra, entre o pai e o espírito santo, que os olhos se afizeram à obscuridade e decifraram o peixe picotado no lioz da coluna, mesmo por cima do tanque.
Pouco dado a leituras cabalísticas, o bartolomeu ficou surpreendido. Mas logo saltou da surpresa para o espanto, quando viu o peixe desprender-se da  pedra e mergulhar na água benta, num encarpado perfeito.
Arqueou as sobrancelhas, roçou um punho nos olhos, não queria acreditar. Procurou assento num dos bancos corridos, e ali ficou, de queixo nas mãos, enquanto a fresca atmosfera da nave central lhe assentava lentamente na cumeada dos ombros. À saída foi espreitar a concha da água benta. O pequeno dorso do peixe evolucionava lá dentro, a lavrar, cuidadoso, as lodagens do fundo.
Oito dias depois regressou à igreja, e lá encontrou o vulto escuro a remexer as águas. Mas o que via agora eram dois palmos de lombada sólida e carnuda, de barbatana inchada, abrindo as guelras ávidas ao maná da água benta. Logo ali capturou o robalo a mãos ambas, fê-lo desaparecer no bolso e foi tratar do jantar.
No dia seguinte foi à igreja de são roque e saiu-lhe uma carpa enorme. Na sé teve direito a salmão. Nos jerónimos ia-se empanturrando de besugos, de linguados, de azevias. O bartolomeu tem o futuro assegurado. Levará muitos anos a percorrer as pias de água benta de lisboa. Depois há-devir o porto, santarém, a idolátrica braga... E o bartolomeu olhará sem cobiça os pássaros do céu, enquanto for correndo as capelas do minho, à espera duma lampreia.
[O MENSÁRIO DO CORVO, Jorge Carvalheira, 2002]

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Epílogo

"(...) O entulho resultante do projecto de demolição acabou como material de construção para a graciosa avenida beira-mar, ao longo das praias do Flamengo e Botafogo. Aí os burgueses cariocas passavam as tardes passeando ao longo do paredão restaurado, que um dia abrigara os pobres da terra.
As investidas do desenvolvimento do séc. XX enterraram esta momentânea elegância sob blocos e blocos de apartamentos e escritórios de construção desordenada. Registaram-se reviravoltas, escravos lançados na miséria depois da abolição das colinas sobranceiras ao Rio. O cenário outrora aprazível de mansões e solares tão apreciada por Da. Carlota, tornou-se refúgio dos que nada tèm: os pobres expulsos do centro. aglomerados de barracas cresceram pelos morros, numa manta de retalhos de casebres  e ruas lamacentas. Eram as favelas , as sentinelas do novo Rio. Cercarão progressivamente os subúrbios mais ricos, ameaçando a elite que se criou. (...)
No meio dos arranha-céus e as frágeis casas de tijolo das favelas, permaneceram  vestígios desse período. (...) 
Talvez a mais viva lembrança da longa estada da corte nos trópicos seja a que encontramos nas prateleiras da Biblioteca Nacional, a reencarnação moderna da Biblioteca Real embarcada em Lisboa durante as Guerras Peninsulares . (...) Ao abrir uma caixa infestada pela formiga branca, Marrocos decreveu o seu conteúdo reduzido a vastos tapetes de pó. (...) Continua a ser uma soberba colecção de livros que inclui uma raríssima  Bíblia de Mogúncia em dois volumes datada de 1462, editada em Mainz. (...)
A palma mater de D. João, plantada com grande cerimonial, quando a corte ainda procurava ambientar-se em solo brasileiro, resistiu como um memorial da sua estada no Rio. Ficou de pé, mas secou e morreu.(...)".

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Fábulas

O mais certo é ter-lhe tomado medo. Mas fosse ele por ter chegado a velho, ou porque se cansou dos ruídos do mundo, o homem deitou-lhe as rédeas por cima e afastou-se. Comprou uma horta distante e fez nela uma mansarda debaixo do carvalho. Depois levantou a cerca à sombra da latada e soltou nela as galinhas. E assim viveram um tempo. O homem comia os ovos, e as galinhas catavam as minhocas e o milho que a horta dava.
A certa altura a raposa saltou a vedação. Avançou pelo terreiro, espaventou as galinhas, esganou logo a mais gorda e comeu-a. O homem assistiu àquilo tudo sentado no alpendre e não mexeu uma palha. As galinhas amontoaram-se ao canto, pasmadas pelo terror. E a raposa, aprisionada na cerca, ficou a fazer a digestão. Quando a fome lhe voltava, esgorjava outra galinha. E o homem assistia àquilo tudo sentado no alpendre.
Depois chegou a cegonha, deu duas voltas no ar e fez ninho na copa do carvalho. E em breve engordava os filhos com os sapos-conchos que havia nas redondezas, e eram muitos. Engordavam os filhos da cegonha, benza-os Deus, mas a barriga da raposa dava horas. Um dia começaram a pintar as uvas da parreira. E quanto mais ela pulava, a abocanhá-las, mais a barriga minguava.
Certa tarde passou lá por cima um corvo, trazia um queijo no bico, roubado à janela duma velha que o tinha a secar ao sol. Viu a raposa magrita, deu-lhe duas de conversa e foi-se embora. A raposa desfez-se ali em queixumes, mas o homem assistiu àquilo tudo sentado no alpendre e não mexeu uma palha.
Quando os filhos levantaram voo, foi a cegonha que ouviu os lamentos dela e deixou-se condoer. Fez umas papas do milho que a horta dava, meteu-as numa cabaça e baixou a partilhá-las com a raposa.  Logo ela as estendeu em cima duma laja, onde em tempos as galinhas debicavam o milho. E foi assim que a raposa se desforrou de misérias e a cegonha ficou a ver navios.
Foi então que o homem se levantou e veio abrir a porta do cerrado. Fatigara-se do mundo, quisera afastar-se dele, viera encontrá-lo em casa. E deste modo se dispôs a relatar as muitas fábulas dele.
[Ladrar à lua, a publicar]

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Clássicos e modernos

Com o modernismo a poética clássica soltou-se de fórmulas. É génio estreme. Entre um e a outra, venha o diabo e escolha!
 
Olá guardador de rebanhos
Aí à beira da estrada
Que te diz o vento que passa?
 
"Que é vento, e que passa,
E que já passou antes
E que passará depois.
E a ti o que te diz?
 
Muita coisa mais do que isso.
Fala-me de muitas outras coisas.
De memórias e de saudades
E de coisas que nunca foram.
 
Nunca ouviste passar o vento.
O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira
E a mentira está em ti."

domingo, 10 de dezembro de 2017

O tempo e o uso dele

A produtividade deste nosso país é um espanto. Abrem-se os olhos ao horizonte e o que é que se vê? Se houver coisas a resolver, um homem está lixado. De reduzidos que estão, os dias úteis da semana não chegam para nada.
Dia 1 de Dezembro foi feriado e era sexta-feira; dia 8 sexta-feira era; a semana do pai natal é para desembrulhar as prendas; depois vem o ano novo, que calha à segunda-feira.
Quer dizer, se esperas correio urgente, se queres fazer uma operação já atrasada, se estás à espera dum serviço, podes esperar sentado.
Foda-se! - digo eu.

Charneca

Sabes o que é um forte, um fosso, um revelim, uma estacada? Se não fazes ideia, é sempre tempo de aprender.
Nesse tempo ir à Malpartida era um exercício físico e mental. Significava ir a pé. Passava-se por hortas e poços com noras mouras e hortelães activos.
Agora vai-se de carro, ligeirinho, não se vê nada lá fora. Também... não ficou lá nada!

sábado, 9 de dezembro de 2017

Império?!

(...) Beresford (que antes tinha sido feito conde Trancoso!) decidiu acompanhar os batalhões ao Rio de Janeiro e falar com D. João pessoalmente acerca do agravamento da situação em Portugal.
Em cartas privadas falava da sua apreensão acerca do futuro de Portugal. "O estado das coisas é realmente muito crítico", escreveu na véspera da partida para o Rio, e ninguém vê isso melhor do que eu. Não há perspectiva de qualquer tentativa para rectificar os abusos, que estão a afundar o próprio estado, e que deverão no final acabar por destruí-lo. E esse fim não está assim tão longe. Prevejo sérios riscos de agitação provocada pelo descontentamento popular."
[Império à deriva, Patrick Wilcken]

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Classicismo e rigor

Um soneto clássico obedece a uma fórmula. Só lhe falta o génio e a aplicação.

Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
Lhe fora assi negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida;

Começa de servir outros sete anos,
Dizendo: – Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida!

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

A vaca sagrada

Num triângulo de jardim, debaixo dumas faias, está um perfil do pensador. É uma criação feliz do Leonel Moura, e reflecte sobre os tempos de S. Pedro.
A condição de filósofo e a ligação à Gulbenkian transformaram-no em membro do conselho de estado. E um paisano chamou-lhe vaca sagrada, num momento de grande inspiração.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Não sei quem é que este Marquês me lembra

Sem ele, nada hoje em Portugal seria o mesmo, por muito mau que seja. Particularmente a baixa pombalina de Lisboa nunca teria deixado de ser um labirinto de ruelas medievais, sem o Terreiro do Paço e outras pérolas.
Espírito estrangeirado criado na Europa, aproveitou o débil mental do pe. Malagrida para dar uma catanada no bando jesuíta. E, sabendo muito bem que nada em Portugal poderia mudar sem escavacar os ossos à aristocracia todo-poderosa, mandou montar em Belém um cadafalso onde não deixou um osso inteiro aos Távoras e aos duques de Aveiro.
Criou fama de déspota sanguinário e não se livrará dela. E acabou homiziado em Pombal, abrindo caminho à loucura da rainha Da. Maria.
Porque em Portugal não se faz o que deve ser feito, faz-se sempre o que convém.

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Grafonolas

O miserável Catroga ainda existe e fala, quando lhe dão corda à vitrola. Em coro com o esquerdalho Louçã, que há anos afirmou na televisão: "recusar o PEC4 será já começar a sair da crise".
Viu-se!

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Piolhosos

Nos primeiros anos do séc. XIX, a fuga da corte portuguesa de D. João VI para o Brasil, perante os maltrapilhos de Junot entrados por Almeida, foi uma débacle de misérias e sofrimento. Mas é preciso ir buscar a informação a autores estrangeiros.
O excesso de carga e passageiros foi fatal. Riquezas documentais incomensuráveis foram abandonadas na lama do porto de Lisboa. Os barcos  usados na viagem não pareciam apropriados. Metiam água copiosamente, o cordame era velho e os mastros e vergas estavam meio podres. O mastro principal do Medusa rachou e partiu-se. O mastro da mezena abateu, deixando o navio à deriva. O D. João de Castro perdeu o mastro. Perante uma praga de piolhos e a falta de água e higiene durante a viagem, as damas tiveram que ver as cabeleiras rapadas, para fugir à praga. Os cavalheiros deitavam ao mar as cabeleiras infestadas, e as senhoras, de Da. Carlota para baixo, faziam fila para rapar a cabeça. As damas de honor carecas reuniam-se no castelo da proa depois da sua provação. O couro cabeludo era então lavado e tratado com pós para eliminar os piolhos sobreviventes.
Isso marcou a iconografia histórica da imagem dos portugueses no Brasil. Todas as figuras femininas usavam turbante, para esconder as misérias.

domingo, 3 de dezembro de 2017

Efeméride

Há muito tempo a manhã apareceu álgida, como a que hoje aí está. Mas alguma coisa tinha acontecido. Havia um rebento novo e era um pichas.
O meu pai foi a casa do Zé Barbeiro comprar marrã, para festejar. E não é que se festejou?
Demorei anos largos a provar a marrã.

Bem contada, a nossa vida já deu um célebre romance...

"A uns 50 quilómetros a Norte de Lisboa, para lá da Serra de Sintra, fica a vila de Mafra. As suas casas parecem miniaturas, diante duma enorme estrutura setecentista, um convento barroco construído durante o reinado de D. João V (1706- 1750) cujas colunas e abóbadas gigantescas são visíveis de quilómetros em redor. A imponente fachada, flanqueada por duas torres sineiras, domina a área, mas esconde a verdadeira dimensão do complexo, que se estende para trás, através de 40 mil m2 de celas de monges, capelas, aposentos e salões de banquete.
No entanto, o projecto começou de forma muito modesta, quando o rei ordenou a construção de um convento singelo, em acção de graças pelo nascimento dum herdeiro. Originalmente destinava-se a abrigar apenas treze frades franciscanos, e em 1717 só algumas centenas de pedreiros iniciaram a construção do edifício.
Sete anos mais tarde, doze mil camponeses acampavam numa área que em breve se tornou o maior estaleiro de obras da Europa. Em 1730 a força de trabalho aproximava-se dos 50 mil homens, o equivalente à população duma grande vila do séc. XVIII. Os custos cresceram, mas o tesouro real pagava tudo, encomendando mármores italianos em rosa, branco, azul, amarelo e negro. Os fabricantes de sinos de Liège e Antuérpia ficaram tão surpreendidos com o tamanho da encomenda recebida de Portugal que puseram em dúvida a quantidade. Mas a seu tempo mais duma centena de sinos seria forjada e transportada através da Europa até Portugal.
Percorrendo milhares de quilómetros através do Oceano Atlântico, até ao Brasil, e depois mais uns 500 Kms para o interior até à região hoje conhecida por Minas Gerais, encontrava-se a maior fonte de receitas para a extravagância de Mafra. Aí, nos primórdios do sistema colonial, homens, os seus escravos e ajudantes índios raspavam o solo, cavavam minas rudimentares e peneiravam as correntes, na primeira corrida ao ouro da era moderna. Nos primeiros anos as condições de vida eram horríveis - os campo auríferos situavam-se em território não desbravado, e as provisões eram insuficientes para as sucessivas vagas de prospectores. Mas, à medida que as obras de Mafra avançavam, o ouro em pó atravessava o oceano. Em breve diamantes e pedras preciosas eram desenterrados e embarcados para a Europa, indo as taxas alfandegárias referentes à sua venda encher os cofres da coroa.
Com entradas de dinheiro cada vez maiores, provenientes das colónias..."
[Patrick Wilcken, Ed.Civilizaçao, 2005]

sábado, 2 de dezembro de 2017

Rodada geral

FÁBULA
Entraram à noitinha na taberna, mandaram encher dois copos. Vinham de longe, quiseram impressionar.
- E aquela ribeira que passámos, onde havia um moinho no bico dum choupo?! -isto disse o moço ao almocreve.
- Não vá, senhor, sem resposta! Nesse lugar vi um dia dois machos eguariços, carregados de fanegas, a trepar choupo acima! - foi o que retorquiu um aldeão.
- Pois ontem mesmo topámos nós um ganapo de sete braços! Está aqui o moço que me não deixa em mentira!
- Minta mais a modo, meu amo! Que o rapaz de sete braços não chegámos a topá-lo! Vimos-lhe foi a camisa de sete mangas pendurada no estendal!
Veio rodada geral.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Conto

O conto é um sub-género do universo narrativo com características próprias, definidas pela estilística. É curto, e a história desenvolve-se sobre poucas personagens que evoluem e sofrem transformações pessoais. Hoje ninguém sabe o que é um conto canónico. Contam-se histórias, assinam-se e é tudo.

A NINFA
Eram os olhos a maior perdição dela. Tão grandes que nele cabia o mundo, tão escuros e fundos que lembravam o mar. Depois vinha a estampa límpida do rosto, debaixo da gaforina asa de corvo: o lábio húmido, a carnação macia, a flor da face cheia de mistério, a prometer abrir-se num sorriso que não chegava a abrir. O resto era o colo generoso, o ventre inquieto, as colunas das ancas a prometer abismos.
Ninguém sabe explicar como apareceu ali, criada na aldeia, aquela ninfa antiga. Olhava-se para ela e vinham à lembranças deusas primitivas da fertilidade. O mesmo nome, Pristila, era um sinal pagão.
Dava escola para os lados de Aveiro e vinha a casa sempre que podia. Chegava na carreira ao fim da tarde, porque o pai, atento à vida, a reclamava. A bem dizer, era a aldeia inteira que a reclamava.
Na vila sabia toda a gente que o Tunante não era boa rês. Era um vilão bastardo, que fazia deste mundo uma coutada de caça. E todos lhe guardavam respeitinho, mais por instinto primário de defesa do que por atributos que não tinha. A ninfa confundiu nele a brutidade grosseira com predicados de macho dominante. E quando vinha à vila, a passear, nem lhe escusava as momices atrevidas nem os avanços de bruto galaroz. E acabou, já mansa e confundida, a enlear-se no assédio do bargante.
No dia em que as férias começaram chegou a ninfa à vila, desceu da carreira ao fim da tarde. Um outra que vinha do comboio havia de pô-la em casa. Mas o Tunante estava à espera dela. Cercou-a de rapapés e cortesias, havia de lhe mostrar a loja nova, logo à entrada das muralhas.
A ninfa deixou-se conduzir. E quando veio a hora da carreira, à beirinha da noite, prometeu-lhe o Tunante que um amigo a levaria a casa, de carrinho, à moda das princesas. E ela logo se rendeu, enleada em semelhante gentileza. Tinha mesa posta e banquete preparado, bom presunto, melhor queijo, de vinho bastava-lhe um dedal, não estava habituada.
A princípio o Tunante foi cordato, coroou-a de rapapés, quis levá-la com bons modos. Penteou-lhe a gaforina, passeou-lhe as mãos no flanco, encheu-lhe o copo de vinho. E abriu-lhe um botão do peito, só para ter uma visão.
A ninfa aos poucos cedeu, o coração num galope. Dum lado o corpo inteiro a amotinar-se, o sangue a romper as veias, o ventre incendiado a extravasar. Doutro lado um grande medo, a cara dele a perder as feições, e um gesto tão poderoso que a assustava.
Quando quis despir-lhe a blusa, a ninfa ainda resistiu. Mordeu o lábio para evitar um grito, cruzou os braços no peito sublevado, refugiou-se no medo. E o Tunante deteve-se um momento, pareceu abandonar o campo de batalha. Foi ajeitar, ao canto, as mantas que lá tinha. Depois apagou a luz, ergueu numa braçada a ninfa amedrontada e foi estendê-la no chão.
Lá fora passaram socas a tropear na calçada. Porém a ninfa hesitou, reteve outra vez um grito. E já dois braços poderosos lhe sujeitavam o corpo, e as pernas brutas lhe apartavam as colunas, e rudes mãos lhe devassavam o peito. As socas na calçada voltaram a tropear, mas a ninfa retraiu-se. Conteve a respiração, não fosse ouvir-se lá fora o gragal que estilhaçava. Por três vezes entrou nela um vendaval, três vezes a desfolhou. Depois caiu uma escuridão desamparada, e um lago que arrefecia.
Por fim bateram à porta, era o outro que chegava. Aconchegou a ninfa no banco de trás do seu Volvo marreco e arrancou. Antes de a deixar em casa foi parar na carreteira dos moinhos do Alcaide, ninguém ali passava àquela hora.
O Tunante recolheu as mantas, fechou a porta da loja. Uma ninfa desfolhada dava casamento certo, era raspar-se um homem para o Brasil ou sujeitar-se aos códigos. Porém, em sendo o festim a meias, era ela assumida marafona e os códigos sossegavam. Cumprisse o amigo a sua parte e ficava o problema resolvido.
Quando o Outono chegou, depois das primeiras chuvas, o Tunante subiu para a camioneta e foi recolher à aldeia uns contratos de centeio. Bem o avisaram as sibilas, que desfizesse o negócio, que por lá tinha a morte prometida. Mas ela guardou a sovaqueira no casaco e lá subiu a encosta, a governar a vida. Um homem não saiu para outra coisa das mãos do criador.
O pai da ninfa já estava à espera dela, sentado no balcão. E quando o viu saltar da camioneta, de machado nas unhas foi-se a ele. O outro ficou surpreendido, não podia acreditar. Estendeu a mão à sovaqueira e pôs-se a ladear, queria ver se era verdade. Mas o homem trazia no carão a fúria dum deus irado, como quem chega duma tragédia antiga, o melhor era levar a coisa a sério. E desatou a correr.
As mulheres espreitavam à janela, havia gente que parava pelas hortas, a olhar, silenciosa. A própria tarde parou, a ver um homem cavalgar estrada abaixo, atrás doutro que fugia. Quando o sentia mais perto, virava o braço para trás e disparava. Disparou à passagem do ribeiro, e à horta da Teresa Côta, e à subida do negrilho, e à curva da fraga grande.
Agora chegámos nós à fundeira da encosta, e já cruzámos a estrada, e temos à nossa frente o açude da ribeira. Não nos sobra mais que um tiro, e já nos queima o pescoço o bafo dum deus irado. O Tunante apontou-lhe ao coração e disparou. E o machado, que lá vinha como um raio, enterrou-se-lhe no ombro.
Mas vem dalém um pastor, a correr em altos berros, vem salvar esta desgraça. O primeiro já está morto, nada podemos fazer. Para que no serve o segundo, um vagabundo. E num golpe de machado abriu-lhe a cabeça ao meio.