quinta-feira, 30 de abril de 2009

Compostura

O Licas é o amigo mais composto que já fiz no autocarro. Logo que chego à paragem lá vem ele oferecer-me o pato de borracha, a melhor prenda que tem.
Traz sempre o mesmo casaco, mas não cheira a mofo antigo nem a tabaco frio. Nunca empata o corredor, nem abusa do espaço do parceiro com a vastidão das cadeiras. Não se diverte a estoirar balõezinhos, nem fica a ruminar a chicla de boquinha aberta. Não se enfeita com pregos nas orelhas, a ver se inventa uma personalidade. Não clama contra os políticos, que são todos uns ladrões. Não pára em segunda fila, nem avança no semáforo o seu Porsche Cayenne, obrigando o autocarro a uma travagem brusca. Nem se põe a publicar, em alta voz, as histórias da cunhada, que é uma cabra.
A dona do Licas apareceu esta manhã por trás da sebe, a apertar a cintura do roupão. Vinha dizer-me que o bicho tem seis anos e não se chama assim. Mas nem ela sabe do que fala, nem é para aqui chamada.

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Abril, antes que Abril acabe

A missão do rico é curvar-se sobre o pobre que sofre e aliviá-lo.
[Boletim da Mocidade Portuguesa Feminina, Março 1941]

Há 35 anos, havia em Portugal um gesto que faltava. Era o gesto necessário, fulcral, indispensável, para que o pobre tivesse um país, e o rico pudesse viver sem se curvar.
Orgulho-me de pertencer à geração que praticou o gesto inadiável, que a nossa vida há muito reclamava. Para que todos tivessem um país.
O pior é o sarro da história, que nos confunde as ideias.
O pior são as elites que não temos, porque só nascem da consciência colectiva.
O pior é a economia que nunca edificámos, distraídos com palmeiras e miragens.
O pior são os milhões a vegetar na pobreza, ao lado da clique de gestores mais bem paga do mundo.
O pior é voltar a ser doutrina o que dizia a Mocidade.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

da capo - 28

IDEIAS FIXAS
Ainda ontem era governante e já hoje pagaria para o não ser. Que desabou a máquina do mundo e a coisa é de arrecear. O presidente em sítio num quartel, o ministro descomposto, a secretária apavorada ao telefone. Há blindados a galopar nas ruas, multidões em alarido, comunicados na rádio que ninguém autorizou...
O homem deixou de entender o mundo mas é secretário de estado. E o presidente reclama, na emergência, que alguém lhe desencante um interlocutor. Algum general de peso, não caia o poder na rua, tão frágil que é, o poder.
Arrisca até à praça sublevada, forceja entre a multidão, chega à fala com um soldado que dispara um ultimato ao megafone.
– Sou secretário de estado, trago um mandato do presidente do conselho!
– Apresente-se no PC e exponha as suas razões!
O outro respondeu à continência e aguentou o abanão, mas esgazeia o olhar.
– Sempre são eles quem manda?!
O soldado abre um sorriso, dá ordens ao condutor, embarca o homem num jipe.
– Leva sua excelência ao posto de comando. Põe-me os olhos no caminho, que há gente de ideias fixas!
E esticou o prazo ao ultimato.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Se Maomé não se mexe...

... que há-de fazer a montanha?!

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Portugalmente (37)

(...)
Já segue rua fora o viajante, ali em frente está o adro da igreja. E estas casas modernas, mais enfunadas do que a barca de Noé, nascidas onde havia construções antigas não ficarão na história. Afora esta, à direita, mesmo à face a rua. Se fosse distraído o viajante, e confiasse em projectistas, por certo ficava sem cabeça. Porque esta casa ostenta um varandim de sacada, a entrar pela rua dentro, à altura dum pescoço. O desconchavo não podia ser maior. O que há-de valer aqui é não haver hoje em dia a tonteira dos bêbados a cambalear na rua, como antigamente. E terem-se acabado os burros, que hão-de ser agora todos projectistas, ou vereadores do urbanismo.
O adro da igreja é vasto e arejado, e este largo bem podia ser o centro do mundo, decerto já o foi para muita gente. Rodeia uma igreja setecentista, de ampla fábrica e altivo campanário, uma alentada torre de quatro ventanas e um relógio de pesos, fabricado em Almada. A fugir ao calor que começa a apertar, o viajante empurra as portas de almofada, de bom castanho antigo. Passado o guarda-vento, acha-se num refrigério de penumbra. Logo ao lado encontra o baptistério, com uma pia de granito onde qualquer neófito cabe de corpo inteiro. Mas está cerrada a porta gradeada, coberta de ferrugem, talvez do nenhum uso.
Ao fundo, no altar-mor, avulta o esplendor dum S. Martinho orago, de báculo e mitra. Cobre-o por inteiro um caprichado manto, decerto vindo do céu, assim tão novo. Mal havia de parecer o santo a presidir com singela meia-capa, no meio das talhas reluzentes, depois de repartir com o pobre o agasalho que tinha. Nos altares laterais anda atarefada uma devota, entre limpezas e enfeites. É ela que se encarrega dos ofícios de leigos, que ao velho padre já falece o coração, e outro novo não vem, que os não há. Mas não sabe decifrar ao viajante a inscrição que ali está numa pedra, onde a custo se confirma a era de 1712.
Encostado à parede, sobre umas andas de madeira, está um Senhor da Paixão em tamanho natural, a arrastar uma cruz. A cor soturna do manto e o vulto maltratado da figura destoam na placidez da nave. Mas não parecem assustar a devota, a explicar ao viajante que se trata de aquisição moderna, encomendada em Braga há meia dúzia de anos, pela vaidade de dois mordomos que assim quiseram apresentar serviço. O viajante pensa com os seus botões que mais valera terem ficado quietos, os mordomos. Porém, vaidades fora, tudo hão-de ser formas de vida, fazer santos e usá-los. E após uma mirada ao amplo coro, por cima da entrada, sai o viajante por uma porta lateral.
Cá fora, em volta da praça, a desmesura tosca das construções modernas corrompeu o antigo conjunto. Mas o pior foi feito no sagrado, a envolver a igreja, onde já foi em tempos o cemitério antigo. Cobriram-no a paralelos. E quando chega o verão e vêm os emigrantes, põem-lhe automóveis em cima, à sombra do campanário. Isto explica a devota, que já está de partida e põe um ar furibundo, como quem ameaça uma cruzada. Tem ela muita razão, concilia o viajante, embora com diversos argumentos.
O adro empedrado e deserto faz lembrar um tabuleiro de xadrez a estorricar ao sol, com as suas linhas às cores. E a este viajante, que não vinha a contar com maravilhas inefáveis, já lhe bastava encontrar algum respeito pela ordem simples do mundo, a natural harmonia do sol, das águas e da terra: duas plantas a crescer, um triângulo com flores, um regador na mão de horas em quando. Mas isso desapareceu.
(...)

terça-feira, 21 de abril de 2009

Vanguardas

Está bem! O arquitecto visionou agora um Titanic!
Porém, muito antes dele, já alguém arquitectara a barca bíblica. Um moleiro que eu conheço tirou-a da cabeça, e deu-lhe forma ali, à beira do rio Tua!

Amália

O rapaz chama-se Nuno Gonçalves e tem feito algum furor na música descartável. Porém ultimamente retrocedeu às fontes, voltou ao leite materno do fado. Decidiu revisitar a Amália, para mostrar o lado pop da fadista.
Escolheu uma dúzia de cantigas, fez uns arranjos de instrumental avulso, pôs a mexer uma orquestra de Londres. E misturou-lhe uma voz feminina, melosa quanto baste, que também tem feito algum furor. E ala que se faz tarde!

Se um português marinheiro
Dos sete mares andarilho
Fosse, quem sabe, o primeiro
Haahããããã...
(vigoroso staccato épico das cordas!)

Põem a coitada de pernas para o ar, alheios ao facto de que uma boa fadista tem os seus pudores. Andam aí pelo éter, um dia chegam ao top. Os radialistas da costela pop não querem outra coisa, na sua play-list.

Prémio Jovens Artistas EDP

[clicando vê-se melhor]
O artista é uma das novas presenças que mais se têm feito notar no circuito (curto-circuito?) da arte contemporânea nacional.
Dele se diz que utiliza uma linguagem feita de impulsos divergentes, em que elementos iconográficos e problemáticas da cultura popular contemporânea coexistem de forma deliberadamente suja e aparentemente caótica com energias e símbolos de fundo quase primevo.
Uma angústia existencial magmática subterrânea vem-me perturbando as noites. Andarei a sonhar com instalações?

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Aos autoficcionistas, crípticos militantes, e outros onanistas

ARADO
de A. M. Pires Cabral, Cotovia, 2009.

I

A mecânica do arado é rudimentar,
clarividente e sóbria. Nada tem
em demasia: o que a função requer
e nada mais.

No perfil eficiente do arado
há qualquer coisa de navalha, qualquer coisa
de falo em riste, em transe de fecundar.

De facto, noutros tempos,
era o arado que rasgava a terra,
fazia dela um ventre aconchegado -
cenário certo para o deflagrar da vida
que vai dentro das sementes.

Isto foi no tempo em que havia agricultura
nos gestos quotidianos dos homens
e das mulheres.

da capo - 27

Rangel está despido de qualquer ligação ao passado, o que é importante neste momento, para o bem e para o mal.
Capucho

Há um ano atrás houve eleições no PPD. E a impudente argumentação coeva, sustentando o candidato Coelho, deu origem à catilinária a que então se chamou Contrição ou Desvergonha.
Amanhã há eleições de novo, e o impudor permanece, ipsis verbis. Assim se justifica a mesma catilinária, porque afinal só havia desvergonha.

Já era funda a suspeita, agora feita certeza. De que as governações da mão do PPD fazem corar de vergonha o próprio PSD. Dito assim, ou vice-versa.
O partido pegou de estaca há-de haver trinta e tal anos, num composto de antigas ruralidades, gerido por diletantes, pilotado por caciques, encomendado por padres. E foi servindo de palco a figuritas cinzentas, fiéis assíduas das missas da ditadura, sem a mais leve noção do que pudesse ser um país diferente e novo. Nelas só a incompetência era maior que a sofreguidão. E o poder foi-lhes apenas trampolim.
Agora andam à deriva, e vão fazer eleições. E têm um candidato melhor que todos os outros, é uma figura importante quem o diz. O candidato é novato, mas porém nisso reside a sua maior vantagem. Em estar isento de qualquer responsabilidade, nas governações passadas.
O PSD é actor primeiro no palco da tragédia nacional, que não ocupa sozinho. É ele o melhor espelho da sociedade que somos, no que ela tem de pior. Assim, ao candidato e ao partido, valerá a desmemória do país. Ao país é que nem partido nem candidato.

Ecos da Sonora XVI

(Aos ceguetas, aos simples, aos ingénuos, aos confusos, e aos desmemoriados, que são muitos.
E também a uns quantos pulhas, e a outros tantos canalhas.)

A Criação do Mundo, de Miguel Torga, regressando da Europa em 1940:

Foi nessa pátria (...) que me dispus a continuar, com redobrada aplicação, o exercício de curar e o suplício de escrever, sem ilusões de qualquer ordem quanto às dificuldades da empresa. O ambiente político, que se tornara asfixiante, estrangulava todas as independências e desiludia as mais firmes determinações. A ditadura catedrático-castrense, encarnada numa só vontade, (...) transformara a nação num espaço de terror, onde o silêncio tomava corpo no carimbo da censura, e os inconformados arquejavam sob o pesadelo latente da polícia secreta. Fomentada demagogicamente e coberta por um cínico manto de impunidade, a corrupção invadira as próprias profissões ajuramentadas à moral. Ninguém queria ouvir falar de civismo, dever, honradez e liberdade. Uma covardia funda, medular, entranhada na alma, reduzira a camada alfabeta do país a uma massa amorfa, protoplásmica, egoísta, surda a todos os apelos fraternos e cega a todos os acenos da razão, sorna, abúlica, pronta apenas em cada momento a emitir pseudópodes tácticos de avidez nutritiva. A orquestração da verdade oficial (...) acabara por destruir nas mentes o sentido crítico, a apetência da análise e do julgamento. (...) Taxados de palermas, intratáveis ou líricos, consoante o grau eufemístico do catalogador, os raros resistentes, que teimosamente mantinham aceso o facho da insubmissão, viam-se e desejavam-se para sobreviver.

Campanha eleitoral

Escolher entre o bem e o mal é um luxo fácil, de ricos. Os pobres só podem escolher o menor de muitos males.
Já é alguma coisa. Já é muito. Oxalá não seja demasiado.

domingo, 19 de abril de 2009

Banda desenhada

O Almoço do Ferragosto é um belíssimo filme italiano. Sendo uma história com gente idosa, sai-se dele de alma remoçada.
Um filho paciente lê à velha mãe histórias do D'Artagnan e os Mosqueteiros. Porém ao legendeiro, ou legendista, ou ao legendador, que dá no mesmo, interessa pouco que o Dumas tenha existido, e as escrevesse. Ele só conhece o D'Artacão, dos bonecos da TV, e é assim mesmo que lhe traduz o nome.
Talvez tenha razão o legendista, já que o mundo mais parece banda desenhada.

O Sempre-em-Pé

Reconhecida e comprovadamente um partido de barões, saloios espertiços e traidores, que usaram o tutano da Nação para governar a vidinha nos últimos trinta anos, o PSD especializou-se há muito em tirar coelhos da cartola. O último que saiu foi uma espécie de boneco sempre-em-pé, cabeça de lista às eleições do Parlamento Europeu.
Quando se imaginava que o tema primeiro da campanha iria ser a ingente discussão sobre a Europa, de que ninguém sabe muito bem o que fazer, pronunciou o candidato que o seu campo são as questões nacionais. E propôs, nem mais nem menos, que um debate público entre o primeiro-ministro, e o candidato do partido do governo.
Quando o primeiro-ministro fez saber que não recusa a discussão dos problemas internos, o sempre-em-pé concluiu que o seu mais directo adversário já perde por um a zero.
A seu tempo ver-se-á como reage a lucidez do eleitorado, a estes números de jongleur de feira, engolidor de fogo. A história não promete nada bom.

sábado, 18 de abril de 2009

Portugalmente (36)

(...)
5
Se for verdade o que o viajante leu num livro antigo, o povoamento do Terrenho vem desde o rei D. Dinis. Era o rei bom lavrador, sobre ser melhor poeta, e não há outras maneiras de construir o mundo. Cumprissem os moradores a sua obrigação, melhor patrono não se podia exigir. O vale da Teja estava aqui, aberto e ancho desde os princípios do mundo. Não lhe faltavam águas nem glebas, aconchegadas à encosta e abertas ao favor do sol nascente. Bastou disputar o chão aos matagais, de carvalhos, de castanheiros, de olmos, não havia lugar mais bafejado. Nem foram precisas imagens de estilo para lhe encontrar um nome, como em casos já vistos. Estava escrito na terra.
Cumpriram, os do Terrenho, a sua obrigação, e fizeram do povoado uma terra importante. Houve nela, em tempos idos, avulsas manufacturas e várias moendas de água, que ainda encontramos de pé. Nela moraram fidalgos que deixaram património. E até mesmo um jesuíta, nado e criado na terra, se partiu daqui um dia a missionar a China. Juntemos nós as castanhas que lembrou mestre Fernando e eram as melhores do mundo, e depressa conviremos que não era qualquer um. O mais dos povos em volta não chegavam a este aos calcanhares.
Começava aqui a rua principal, uma calçada do tempo dos afonsinos. Por ela seguia a estrada que já ligava, há mil anos, o castelo de Moreira à fortaleza de Penela. Andavam as outras terras a chapinhar lamaçais, e já se pisava aqui calcetamento antigo, feito com seixos e gogas do rio. A seu tempo cá chegaram o saneamento e a electricidade, muito antes de noutros lados se saber o que isso era.
Mas isso são histórias já passadas, que a decadência de hoje respira-se no ar. O viajante já deu a volta à aldeia, já viu ruas e casas e não fica por aqui. Precisa de olhar outra vez tudo, e de encontrar alguém que lhe saiba explicar o que aqui se passou.
Qualquer viela estreita, o mais esconso recanto, tudo são empedrados modernos, como em outros lugares se tem visto. Fruto dos fundos da Europa, que tão tarde cá chegaram, se terão vindo por bem. Mas a esta rua principal, que sempre foi uma calçada antiga, cobriram-na de alcatrão. Há-de isto parecer embirração do viajante, uma niquice, mas não é tanto assim, se formos a ver bem. Que a espinha principal, numa terra com memórias para guardar, por força requer nobreza aos materiais. Além disso as máquinas passaram aqui às cegas, entre as casas, altearam pavimentos, entupiram sumidouros e valetas, arrasaram hidráulicas antigas por onde passavam as levadas da serra, feitas por mão de artista. Derrotar custa pouco, já o lembrou Felisberto. E agora, quando chove, as enxurradas passam desenfreadas, fica a rua coberta de charcos e areais.
O viajante passa ao chafariz. E neste pino do verão, num clamor de estiagem, duas bicas lá estão infatigáveis, de goela escancarada. Já encheram cântaros que à fonte vieram até ficar sem asa, já os gados aqui mataram sedes infinitas, sabe Deus que segredos contariam, se um dia se pusessem a falar. Talvez nos pudessem deslindar a morte do Abel, além na rua de baixo, uma noite no tempo do volfrâmio. Ainda hoje se conta que morreu às mãos da mãe, lá no pequeno largo, dum golpe de roçadoira jogado no escuro. Mas ao certo ninguém sabe. Verdade foi que Abel matou Acácio, por disputas dum filão no Vale Ferreiro. Que o alarido atraiu Joaquim, a vingar a queda do irmão. Que ambos se engalfinharam, que a noite estava escura. Que esta mãe dolorosa acorreu, de roçadoira erguida, a proteger o filho. E que Abel no final apareceu morto, dum golpe na cabeça.
Mas esta mãe ficará inocentada. E se um dia estas bicas falarem, não estejamos cá para as ouvir. Deixá-las lá correr, que há hortas a espreitar por trás desta parede, à espera duma rega.
(...)

O seu a seu dono!

Algures aí atrás, fez-se uso deste boneco para ilustração de um texto. E, por ligeireza tonta, omitiu-se-lhe a paternidade.
Convenhamos que é difícil, na idade em que o mundo vai, distinguir tanta vez o que é de César, do que só a Deus pertence.
Porém este boneco tem um dono, e é isso que se deixa esclarecido. É a fotografia descuidada dum trabalho do escultor Manuel Barroco, transmontano dos quatro costados. Que assim recriou duas figuras dos caretos, da tradição popular do Nordeste.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Campo de minas - 1

Com o tempo habituei-me a entrar na livraria como quem atravessa um campo de minas. Ou pisa o leitor terrenos conhecidos, já dados como clássicos, ou tudo lhe pode acontecer, no campo das leituras. E foi assim que lá passei, há dias.
Mas há dois temas que, em princípio, não recuso. É um deles a guerra das colónias, e, no geral, as coisas do Ultramar. Interessa-me saber o que os patrícios pensam sobre a nossa vida colectiva. Será uma questão espúria, bem o sei. Mas nada nos pesa tanto no presente, como o nosso passado imperial. Queiramos nós ou não.
Outro tema são os relatos de viagem, de estrangeiros que nos visitaram, antigos ou modernos. Tenho para mim que é uma boa maneira de nos vermos a nós próprios, a partir de olhos estranhos. O que em nós observaram, o que os enterneceu e horrorizou, há-de ser um aceitável contributo para a descrição do que somos.
Nem de propósito, deram-me os olhos n' A Balada do Ultramar, de Manuel Acácio, com 4 mil exemplares na 1ª edição da Oficina do Livro. E se é certo que a maioria das obras que têm aparecido são de autores na condição de militares, neste caso o autor é futrica. A perspectiva que apresenta é a da vida civil angolana, alheia a peripécias militares. Logo depois tropecei em Duas Inglesas em Portugal - Uma Viagem pelo País nos Anos 40, da QuidNovi. Julguei ter o dia ganho, e trouxe para casa os calhamaços.
A Balada do Ultramar é um título ambíguo, duma obra que se dá como romance. Porém de romance não tem nada, nem estrutura, nem orgânica, nem linguagem. O autor é um dos retornados à metrópole, em 1975. E o título acaba por bater certo, já que A Balada é mesmo uma balada. É uma sucessão de quadros duma memória dorida, marcados por insistente sensação de perda, por um saudosismo irreparável, dum paraíso que se perdeu.
Em vão se buscará nela a análise sociológica, a lúcida visão da história, o urgente esmiuçar de causas e razões de tamanho naufrágio. Bem ao contrário, se audazes foram os que partiram, e Velhos do Restelo os timoratos que ficaram. Mas é apenas desespero o que se exprime, ao afirmar-se: Bem aventurados os que perderam a memória, porque deles será o reino dos vivos! Convenhamos que não é grande saída, para quem tem que continuar a viver.
Registe-se a formulação notável para uma definição de saudade: A saudade deve ser isto: termos o coração num lugar e num tempo diferente daquele onde se encontra o nosso corpo. É subtileza que fica à atenção dos encartados.
Uma coisa se deixa sublinhada: ninguém mais do que este escriba compreende os traumas, e comunga das amarguras múltiplas, que uma história peregrina sempre deixou em herança ao comum dos portugueses. Mas o efeito sem causa não existe, e só há uma forma de os exorcizar. É desnudar-lhes os motivos e as razões.
Manuel Acácio acaba por apontar na direcção correcta, lá para o final da obra: Não foi fácil libertar-me da canga do passado, mas os anos já me deram a distância e a sabedoria necessárias para reconhecer que também cometemos muitos erros. Depois do adeus forçado ao ultramar, andámos perdidos, sem saber qual era o nosso lugar no mundo. Foi preciso dar ordem ao caos, e a raiva foi o único fio condutor que encontrámos. Apressámo-nos a apontar o dedo a dois ou três governantes que foram o rosto de uma política que, em boa parte, lhes escapou, mas esperámos demasiado tempo até acusarmos Salazar e o séquito que medrou à sua sombra e se aproveitou do estado das coisas para recolher grandes benesses. Só agora conseguimos perceber que fomos sacrificados no altar do realismo político e estamos entre as principais vítimas de um regime que nos utilizou, para depois nos arrastar na sua queda.
Uma tal asserção, mesmo tardia e assim desajeitada, resgata a obra da escombreira habitual.

Pior vai às Duas Inglesas, que não têm salvação nem préstimo. A edição original é de 1949, e dela couberam exemplares, com dedicatória, ao presidente Carmona, a Salazar, que agradeceu pessoalmente, ao ministro Caeiro da Matta, à família Palmela, a António Ferro, a João Couto...
São os mitos e lendas oficiais, mais mitológicos e mais impudentes do que os do próprio SNI. Deixemos As Inglesas falar!

D. Manuel colheu o que os seus antecessores tinham semeado; a partir das novas colónias chegavam inúmeras riquezas (ouro, especiarias, marfim, pedras preciosas), até que o pequeno Estado situado no extremo da faixa costeira ocidental da Europa ficou de tal modo rico que na verdade já nem sabia o que fazer com tanta riqueza, e a própria nação, nomeadamente os seus escultores e arquitectos, ficou obcecada, quase inebriada, com as misteriosas maravilhas e esplendores de outros mundos e com o romantismo e aventura das grandes viagens oceânicas.

No que diz respeito à agricultura, Portugal tem ainda, de facto, uma economia quase bíblica: a colheita, a respiga, a debulha do grão e a irrigação são feitas do mesmo modo que surgem descritas no Antigo e no Novo Testamento. Apesar disso, a agricultura portuguesa é extremamente saudável e altamente produtiva.

Um dos encantos das zonas rurais em Portugal é o facto de se poder ver a vida tal como era vivida em Inglaterra, quando a Inglaterra ainda era agradável, nomeadamente no séc. XVII ou no início do séc. XVIII. As condições são calmas, uma vez que o país ainda não se organizou industrialmente, e se os aldeões são normalmente analfabetos, o seu padrão de alegria comunitária é excepcionalmente elevado. Não só o próprio trabalho está transformado numa ocasião de festa e divertimento, como os divertimentos puros e simples acontecem livremente. Nos meses de Verão, particularmente nas províncias do Norte, existe uma infindável sucessão de feiras e peregrinações, normalmente chamadas romarias.

Que encantadora e feliz amizade demonstram as pessoas. Caso alguém passe por um destes grupos familiares, reunido para comer à sombra, será certamente convidado a sentar-se com eles e a partilhar da sua refeição. Só os alimentos já são uma tentação: frangos ou perus assados, presuntos, leitões recheados, carapaus salgados fritos, montes de alfaces, enormes pães, queijos artesanais e garrafões de vinho de sete litros, e revestidos com verga! Faz crescer água na boca (...)

Lisboa é uma das cidades mais limpas do mundo. Há camiões que esvaziam diariamente os caixotes do lixo, até mesmo nos bairros mais pobres; e esta questão de secar a roupa lavada ao sol e ao ar fresco a qualquer altura é sintomática da sabedoria inata de uma nação que adora a limpeza.

O resto são mansões, palácios, igrejas, imagens pias, catedrais, conventos, talhas doiradas... Palavras para quê?! O melhor é precaver-se o leitor com o tal detector de minas, quando vai à livraria!

Águas mil

Em Abril, dizem que águas mil!
Mas este ainda vai a meio, e já lá vão mil e cem!

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Ecos da Sonora XV

De A Criação do Mundo, de Miguel Torga, viajando por Paris, antes da guerra, entre exilados.
(...)
Mas de nada valia protestar contra aquela estupidez. O mal vinha de longe. Os proscritos, em vez de admiração e carinho, recebiam dos que ficavam, dos que se acomodavam, sarcasmos e desprezo. Quando lera a descrição dos sofrimentos suportados nos barracões de Plymouth pelos homens do liberalismo, mal queria acreditar. Como podia um povo deixar num tal abandono alguns dos seus, que lutavam para que o sol da liberdade lhe sorrisse também um dia? A monstruosidade, contudo, acontecera, e continuava a acontecer, mesmo depois dos benefícios colhidos. E o pior da tragédia é que a maioria dos exilados vivia dentro da própria nação. Todo aquele que erguia nela a voz discordante, pertencia à seita maldita. Acoimado de herege, de pedreiro livre, de subversivo, de inimigo, consoante a época, ardia real ou simbolicamente na praça pública. O que significava a violência agressiva das polémicas em Portugal, senão essa incapacidade de dialogar, de ouvir, de tolerar e compreender o adversário? Senão esse ódio recôndito à opinião alheia, à necessidade de a calar de qualquer maneira?

À manhã, que se mostrou descomposta...

... a luz divina de Sorolla!

terça-feira, 14 de abril de 2009

Portugalmente (35)

(...)
Põe-se o viajante a ruminar no que eram estas vidas, lá tem os seus motivos. Mas o senhor Primo já lá vai adiante, todo a querer explicar o que sabe dos jazigos. Este ainda está vazio, que foi feito para nobrezas recentes. O dono criou-se aí, há uns anos atrás, era filho dum tendeiro que levava na carroça uma tenda aos mercados. Uns panos, uns alguidares plásticos que eram novidade, uns espelhos, uns quadros de santinhas, hoje ninguém imagina o que isso era.
Quando se achou espigadote, e a fugir à miséria, o rapaz foi-se à França. Mas não se consumiu muito por lá, correu-lhe bem a vida, ninguém sabe os comos e os porquês. Sabe-se apenas que um dia voltou e foi estabelecer-se numa terra qualquer, à beira-mar. Ainda vieram aí uns franceses, uns antigos patrões à procura de inculcas, boquejou-se que andavam à cata dele. Por muito ir à missa não seria, diz o Primo, a sorrir.
Ora o viajante já ouviu muita coisa, da emigração em França. Havia menino que fazia negócio dos patrícios, encalhados às dúzias ali em Champigny, na maior das misérias. Sem tecto, sem dinheiro, sem conhecer a língua, dispunham-se a esportular o que não tinham, só para arranjarem trabalho. Outros vinham a Portugal e faziam-se correios, traziam dinheiro em mão para as famílias dos colegas. Quase sempre eram roubados no caminho, o dinheiro raramente aparecia.
Fosse ele como fosse o rapaz era esperto, e passados uns anos tudo eram riquezas. Ele era a construção, era um estendal de máquinas num negócio de areias, eram técnicos a montar estufas de pepinos, a tratar dos cavalos para o volteio dos turistas. Foi então que começou a comprar terras cá na aldeia. E boas casas, de antiga gente, que aparecessem à venda. Montou aqui o jazigo, que tudo isto são placas já feitas, e criou um lar de São Sebastião, desses dos velhos. Nunca ninguém o viu, nem sabe aonde fica, mas serve para certos jogos da contabilidade. Isto é o que se vai ouvindo, que ao certo ninguém o sabe, arrisca o senhor Primo.
Com tamanho andamento, o povo acreditou que estava ali um benfeitor. Um dia montou no jardim uma tenda de feira, e ofereceu um festim, a festejar os anos. Veio aí ao beija-mão o presidente da câmara, e a vereação inteira, e os chefes das freguesias que mandou convidar, nunca mais acabavam os discursos. Depois houve à tarde corridas de cavalos daqui até à vila, pareciam voltados os tempos da fidalguia, os funcionários da câmara andaram numa fona uma semana inteira, a marcar o circuito pelos montes, com fitinhas às cores. Na vila andava ao dispor uma charrete, tocada por cavalos. Corredoura acima, corredoura abaixo, era só fazer sinal ao postilhão e embarcar, aquilo é que eram tempos...
Sabia-se que havia ali negócio, e mau não seria ele, que assim dava para tanto. Mas a certa altura parece que viraram os ventos. Foi dito que a polícia andava alerta e o homem desapareceu por uns tempos. Um dia amanheceu incendiada a casa dos Casais. E quando o tribunal mandou arrestar tudo, por causa duns calotes, foram dinamitadas as paredes. E tais são as pedras de armas que aqui se hão-de abrigar, quando chegar o destino.
Lá em baixo, num cabeço à margem da represa, reconhece o viajante um cramoiço de pedras. Já foram casa onde gente morou, já prometeram ser um lar de velhos, agora são as ruínas deste sucesso moderno, perdidas na paisagem. O viajante fica a olhar o jazigo vazio, e o azul do horizonte no espelho das portadas. Razão tinha quem disse que esta vida é uma feira, cada um vende nela o que tem para vender.
E tanta foi a conversa que o viajante não passará daqui, a noite está a chegar. O sol lá foi descendo para as costas da Cabeça do Lagar, e as sombras do monte já vão à ribeira. O senhor Primo conhece os caminhos todos que se avistam daqui a descer a encosta, e lembra-os ao viajante. É o Caminho-mau e o do Rosmaninho, o dos Vales e o da Ponte Velha e o da Tapada Grande. Antigamente andavam num badanal nesta altura do ano, a caminho das tapadas. Hoje não levam a sítio nenhum, antes parece que vão a afogar-se todos, quando entram na água. O senhor Primo lembra as vidas antigas, as labutas dos campos, as figuras da gente que as movia. Vê-se que tem saudades de quando o vale inteiro era uma azáfama, e o ar andava cheio do cantar de guizos e chocalhos, em lugar deste silêncio. Descontando, claro, a fome que passou. E o viajante, que já não tem pressa, fica sentado a ouvi-lo. Ao menos uma vez voltaram à vida estes caminhos todos.
(...)

sexta-feira, 10 de abril de 2009

O mal e o remédio

Uma mulher dormia, em Aquila, quando veio o terramoto. Na Itália, dizem que nos Abruzzos, eu não sei.
Quando as paredes começaram a estalar e o tecto a cair no chão, correu ao quarto da mãe. Arrastou-a pelos destroços até chegar à janela, saltaram para o jardim, puseram-se a correr. Mas a mãe já tinha oitenta anos e um corpo farto de andar, as pernas não respondiam. Foi um milagre que as levou ao descampado, onde estão agora, debaixo duma tenda.
O milagre salvou-as a ambas, sãs e salvas, e acaba com as quezílias da dúvida sobre Deus. Só a mão d'Ele nos pode salvar, do mal que nos chega da mão d'Ele. Pois a grandes males só maiores remédios, quem poderá duvidar.
Deus queira que não chova, nas tendas dos Abruzzos, como agora cai no meu telhado a chuva que Deus manda!

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Enigma

Seivas da natureza? Fluidos cósmicos? Eflúvios de equinócio?
Facto é que alguma coisa anda a mudar!
Ou será já o fim da crise?!

O Erro de Malthus

Com vénia ao dr. Luís Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO-Portugal

No início do século XIX, ainda antes da revolução industrial, o clérigo inglês Thomas Malthus apresentou uma teoria que predizia um cenário catastrófico para a Humanidade, caso o crescimento populacional se mantivesse a uma taxa constante. Isto porque, dizia ele, os recursos alimentares iriam crescer mais lentamente, e não seriam suficientes para alimentar essa população.
Felizmente esse cenário não se verificou. Embora a população tivesse crescido de forma continuada, os recursos disponíveis foram suficientes para a alimentar. E, no entanto, sob o ponto de vista matemático, o argumento de Malthus era inatacável. De facto, uma progressão aritmética (os recursos) e uma progressão geométrica (a população) ligadas ente si (a ligação entre as duas seria o consumo per capita dos recursos) acabam por divergir de forma incontornável.
Na base da teoria de Malthus está o crescimento exponencial da população, algo que ainda hoje atrai a nossa atenção. No dizer do Prof. Albert Barthlet, da Universidade do Colorado, um neo-malthusiano assumido, “o maior defeito do pensamento humano é não entender as consequências do crescimento exponencial”. E acrescenta como exemplo: se a população do planeta crescesse nos próximos 700 anos, com a mesma taxa que cresceu nos 700 anos anteriores, haveria um habitante por m2 à superfície da parte emersa do planeta, incluindo desertos, montanhas e florestas.
As teorias de Malthus tiveram uma grande influência no pensamento económico dos anos seguintes, e ainda hoje muitas das suas ideias são revisitadas. Sobretudo em épocas de crise, quando o crescimento económico se apresenta menos resoluto.
Afinal o erro de Malthus foi o de não ter previsto que os recursos à disposição da Humanidade iriam crescer também de maneira exponencial, nos 180 anos que se seguiram. Mas isso nunca ele poderia ter previsto, porque esses recursos ainda não eram conhecidos. Tratava-se das imensas reservas de energia fóssil (carvão, petróleo e gás natural) que a natureza acumulou durante milhões de anos. Essas reservas (mais do que a tecnologia!) têm permitido assegurar o crescimento exponencial dos recursos, exigido pelo crescimento da população, também ele exponencial.
Curiosamente, em 1972, aparece um outro estudo, encomendado pelo Clube de Roma. Trata-se do famoso “Limites do Crescimento”, da autoria de uma equipa de cientistas que usaram um modelo desenvolvido pelo professor Jay Forrester, do MIT. O estudo retoma as ideias do crescimento exponencial do consumo dos recursos, e do seu conjecturável esgotamento. E volta a falar da eminência de uma catástrofe.
Quase quarenta anos passados sobre essa publicação, de novo parece não se terem confirmado tais previsões. Porém alguns autores, mais pessimistas ou mais prudentes, aconselham a não tirar conclusões precipitadas. E o estudo continua a ocupar muitas páginas e a gerar muita discussão.
São muito complexos os pressupostos destes estudos. E previsões a longo prazo adequam-se mal ao entendimento da mente humana, para quem “ as maiores preocupações cabem na milha quadrada que nos rodeia, e nas duas semanas que sucedem ao dia de hoje”. Além disso as previsões têm, de um modo geral, subavaliado o engenho e a capacidade do ser humano para ultrapassar as dificuldades.
No actual momento de crise, volta a falar-se insistentemente na necessidade de gerir uma economia de crescimento zero, e nas implicações que isso poderá ter para a manutenção do sistema de mercado e de consumo. E nas nefastas consequências para o agravamento das assimetrias mundiais entre ricos e pobres.
Na voracidade de uma crise em que os activos financeiros parecem desaparecer sem deixar rasto, uma das lições que vamos aprendendo é que afinal, ao contrário do que pensávamos, o dinheiro não é necessariamente um recurso. Ou melhor, só o será numa economia em crescimento contínuo, geradora de expectativas que permitam viabilizar e remunerar o crédito bancário.
Hoje, de uma forma mais refinada, fala-se de novo da finitude do Planeta, dos limites do crescimento, das alterações climáticas, da escassez dos recursos hídricos, do pico da energia fóssil. E o fantasma de Malthus persiste em nos acompanhar. Temos de o exorcizar de uma vez por todas.

terça-feira, 7 de abril de 2009

Portugalmente (34)

(...)
O viajante vê a tarde a correr e ainda tem muito que andar. Não pode ficar aqui o dia todo, mas detém-se nos jazigos, quando vai a sair. O mais antigo imita o neo-gótico, o do meio tem uns ares neo-clássicos, e o mais recente, na brancura luzente da pedra mármore com vidraça espelhada, não segue modelo nenhum. O seu conceito é o mesmo das artes funerárias modernas, faz lembrar um caixote para embalar mercearias. E todos celebram no frontão o nome dum fundador, se para o eternizar foram criados.
Este, que aqui dorme, consta que nasceu na terra quente, numa aldeia qualquer. Vendia pregaduras nos mercados, não faltava a nenhum, das Freixedas à Meda. Um dia conheceu em Valflor a Candidinha do Zé André, que era viúva e dona de bens. E sempre que a rota lhe calhava, passou a acomodar a mula no quinteiro. Lá acabaram casados, mas ela morreu cedo. E aconchegado na herança que por inteiro lhe coube, conquistou ele a Marquinhas, filha do Zé Ribeiro, um homem grado aqui na terra, no comércio de retalho. Assim se juntou alguma fome com outra tanta vontade de comer, pois o negócio da pregaria era um dos fortes do estabelecimento.
Tudo chegava do Porto, duns grandes armazéns. E quando um dia lá foi, a pagamentos, bem alertaram as vozes das sibilas:
- Ai, dona Marquinhas, que anda lá tão ruim a pneumónica!
- Eu dou-lhe com a carteira!
Dona Marquinhas teria a mão lampeira e a carteira recheada, mas a pneumónica foi mais despachada. E quando ela não voltou, o bom viúvo agarrou-se às pregarias. Terá sido por obra e vencimento delas que tão bem ganhou as graças da menina Filomena, morgada que aí vivia, com umas tias que a trouxeram do Azevo. Mas isso ninguém pode garantir. De ciência segura apenas é sabido que o dote da morgada trouxe ao viúvo um paraíso onde viver. Era a mais mimosa vivenda da aldeia, como ainda hoje se verá, com bons quintais e águas vivas, e árvores de boa sombra e melhor fruto. Depois disso só lhe faltava a última morada, é esta que aqui está.
Quem conta tudo isto ao viajante é o senhor Primo, lá por palavras dele. Mora ali ao lado, onde era a forja antiga do ferrador, que se foi aos Brasis há um ror de anos, farto de malhar em ferraduras alheias. Ao ver o estranho a passear entre as campas, veio logo tirar a coisa a limpo. Hoje tem o senhor Primo uma vida sossegada, e já era merecida. Foi dos primeiros a arrancar para França, logo ao princípio dos anos sessenta. Por lá andou um ror de anos, sempre a assentar tijolos, mas ganhava bom dinheiro. Até que um dia acertou na tabuada do loto e foi uma alegria. Comprou um carro novo e regressou à terra, onde havia para acabar as obras na forja antiga, que já tinha comprado. E fez dali uma casa de estalo.
- E isso da perna?
O senhor Primo manqueja o seu pouco, e usa uma bota ortopédica.
- Quando era garoto estive de paquete na quinta do Forcas, ali às portas da vila. Mais pela bucha e a tarimba, que o trabalho era de fedelho. Um belo dia venho eu estrada abaixo, em cima do cavalo, a tocar umas vacas lá da casa, que vinham dum lanteiro. Senti atrás de mim a camioneta na descida, e bem puxei o cabresto ao animal, a encostá-lo à berma. E não é que se espantou, o alma do diabo! Lá foram dar comigo ao fundo da ribanceira, aninhado numas giestas, com a perna estracinhada. Pior foi ao animal, que não sobreviveu, tiveram que lhe dar um tiro. A mim levaram-me aos médicos e foi o que me valeu, mas a perna ficou curta. Andei anos assim, de costados torcidos, e bem que me custava, lá em França. Mas lá houve um médico que me indicou uma cinta, e me mandou fazer uma bota mais alta. As dores baixaram um migalho, e agora o trabalho já é pouco. Mas o relógio sempre cá ficou.
(...)

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Negas

Oiço dizer que o dr. Catroga tem dado umas negas à dra. Campos Ferreira. Por força há-de ser verdade, já que é dela a rudeza das palavras.
Eu olho primeiro a um lado, depois reparo no outro. E não fico nada surpreendido.

Oito anos

O Código Penal de Timor-Leste reservou oito anos de prisão para a prática do aborto.
O Vaticano demarcou o seu território, num mar que é infinito. E o rebanho dos cordeiros de Deus, na ilha do crocodilo, levou mais uma arrochada.

Ecos da Sonora XIV

De Miguel Torga, A Criação do Mundo:

(...) Um Portugal velho e rotineiro, de senhores e servos, estava ali vivo e presente. De mão vazia, ninguém pedisse justiça, conforto divino, instrução ou saúde. Parasitas do povo, o padre, o médico, o professor e o juiz, em nome de Deus, do saber, da lei ou de Esculápio, exigiam-lhe todas as formas de preitesia, a começar pela mais concreta: o óbolo dos frutos da terra. Cada ungido que vinha oficiar à sua igreja, antes da primeira oração, olhava o altar das oferendas. Crédulo e submisso como há mil anos, o camponês gemia, mas esvaziava a salgadeira, a tulha e o curral. Cair no desagrado de tais divindades, seria a perdição total neste mundo ou no outro. O Diário do Governo e o Boletim Diocesano não nomeavam funcionários públicos e pastores de almas. Proclamavam omnipotências. E ai daquele que se recusasse a reconhecer-lhes a soberania! Do pé para a mão, acordava, como eu iria acordar em breve, com um círculo de maldição à volta. (...)

Há quarenta anos atrás, e desde há séculos, Portugal era assim. Hoje dizem que mudou. Mas, da mudança, apenas a aparência é verdadeira. Como é que duma coisa assim se fabrica um país?

À manhã, que acordou estremunhada...

... a luz divina de Sorolla!

Dia de Ramos

Foi quando o Filho do Homem entrou na cidade em cima dum jumento, exaltado com palmas e ramagens festivas.
À tarde, nas moitas que ainda cercam Vila Maior, ouviu-se o cantar do cuco e o suspirar da poupa.
À noite, a Orquestra do Norte e o Ensemble Vocal Pro Musica, pela batuta do maestro Lobo, executaram o Requiem Alemão.
E a nave da igreja de São Gonçalo, em Amarante, era uma barcarola de fantasia, a vogar pelo céu dum planeta encantado.
Não há dúvida de que o inverno passou.

domingo, 5 de abril de 2009

Ecos da Sonora XIII

E lá fica um tipo desarmado, imóvel e descrente, face a uma realidade que mais parece fruto da ficção. É a política míope, é a economia frágil, é a corrupção das elites, é a crise mundial, é a falência do mercado, é o desemprego a subir, é o futuro posto em jogo, é a miséria envergonhada, é o desespero à solta... Então as artes literárias, salvo milagrosas excepções, mais parecem exercícios de onanismo. Bem pode o mundo inteiro desabar, que isso não as arranca do sonambulismo.
Talvez por isso seja tão salutar o reencontro com estes textos de há uns anos. Honra se faça a esta ironia e a esta frontalidade.
De Não É Fácil Dizer Bem, de João Pedro George, Edições Tinta-da-China, transcreve-se:

Pedro Rolo Duarte: A volúpia do aborrecimento
Ofereceram-me Sozinho em casa. Não o filme, mas o livro de Pedro Rolo Duarte (Oficina do Livro). Todas as sextas-feiras, do alto das suas crónicas no Dna, com aquela trunfa de profundos pensamentos, Rolo Duarte consegue dar à palavra aborrecimento uma significação mais vasta. Ontem, domingo, antes de ir dar milho aos pombos, decidi-me finalmente a folhear o livro. «Um diário da solidão» sobre «aquilo de que é feita a vida de todos nós», é-nos explicado no início da obra. Mordido de curiosidade, fui ver como era a vida do director do Dna. Seria realmente como a de todos nós?
Vejamos, na primeira pessoa, como PRD ocupa o seu tempo. Eu bebo gin tónico com duas ou três gotas de sumo de limão (antes de sair de casa certifico-me sempre se o gin não esgotou e se os citrinos estão no frigorífico). Eu vou comer pizzas à Piazza di Mare e ao Casanova. Sei fazer uma boa feijoada e até já gosto de ovos escalfados. «Tenho para comigo» que a piscina do Estoril Sol é a melhor de todas, que as camas do Méridien do Porto são insuperáveis e quanto ao Altis falem-me do bife tártaro. «Tenho para comigo» que os melhores restaurantes de Lisboa são o Travessa, o Pap'Açorda, o XL, o Bica do Sapato. Mas «tenho para mim», ou melhor, «para mim tenho» que peixinho com sal é no «Petit» de Algés. Bebo whisky irlandês com o Miguel Esteves Cardoso e às vezes tenho depressões, nada que um Jameson, seco, em copo alto, não resolva. Vou à Fnac comprar livros, revistas e CD's. Gosto de ir ao Pão de Açúcar das Amoreiras. «Tenho para mim» que a Costa Alentejana já foi melhor. A minha casa em Odemira é o máximo. Eu era um bocado piroso quando era pequeno mas continuo a gostar de Suzannne Vega, do Rui Veloso, do Vergílio Ferreira e blá blá blá, vinte vezes blá blá blá.
Ler Sozinho em Casa é ficar a saber até à exaustão do que Rolo Duarte gosta e não gosta, as horas a que acorda, os jornais que compra, os discos que ouve, a comida que come, etc., com algumas opiniões pomposas e uns quantos espirros poéticos pelo meio. O jornalista já tem 40 anos e ainda está a viver a crise dos 30. Como dizia a minha avó, é como o ovo, não tem ponta por onde se lhe pegue. Em suma: mais um livro para cair no eterno esquecimento.

Algures no séc.XVII, com o mundo a desabar doutra maneira, também os literatos faziam sonetos Ao Menino Jesus em metáfora de doce. E anda o padeiro, há séculos, a levantar-se às quatro da manhã, para cozer o pão a estas bestas!

sábado, 4 de abril de 2009

Portugalmente (33)

(...)
Mas tem as suas obrigações, o viajante, e já se despede de Felisberto, para ir à procura da aldeia. É então que este lhe lança o desafio, enquanto o mestre tira as tosses à lambreta.
- Venha comigo, vou-lhe mostrar um crime!
O viajante fica em alvoroço, não imagina o que o espera, nem Felisberto abre mão do mistério. Seguem os dois ao longo do ramal, antigamente afogado em castanheiros, e hoje cercado de construções de cimento sem graça nenhuma. Mal se notam, à curva, umas alminhas de pedra, com um gólgota ingénuo pintado na madeira, já delido pelo tempo. Dantes havia sempre aqui uns ex-votos de artista, nesta copa de pedra que encima a construção. Um braço tosco de pau, um pé torcido, uma perna que se partiu. Agora, ao passar, ninguém olha para isto. E até o santo Amaro, que sempre branquejou além no cimo da colina, dorme agora escondido atrás do casario.
O viajante vem picado pelo bicho da intriga, mas não é um bom pesquisador. Se não fosse Felisberto a abrir-lhe os olhos, passava pelo crime sem ver crime nenhum. Aqui na Varela havia há mil anos as eiras da aldeia. Eram um maciço arrogante de lajes de granito, a desdobrar-se em camadas pela encosta abaixo, até lá ao fundo, à estrada real. Tinham ilhargas ásperas de musgo e alvas lombadas macias, afagadas por antigas malhadas e pelas colheitas que ali tomavam o último sol. Lá pelo meio tinham recôncavos de berço, onde as mães atarefadas punham os filhos ao aconchego. As eiras eram património demarcado, uma beleza, uma bênção da natureza, conforme diz Felisberto. Mas tudo isso foi desbaratado, quando lhe construíram em cima os disformes pombais que agora estão à vista.
- Maior que a brutidade a destruir, só a ignorância e a cegueira das pessoas! – confessa Felisberto, furibundo.
O viajante vai deambulando por ruelas recentes, entre hortas improvisadas e paredões e aterros, onde se juntam lixos. Das fragas de pedra não vê nem um sinal, mas leva muito à letra a indignação de Felisberto. Felizmente não há ninguém na rua, a quem declarar guerra.
O viajante concorda que o mundo não tem sentido, sem a gente que o habita. Mas quem assim alegremente se desfaz do passado, apaga a cultura e as raízes e as tradições que tem. Com elas vai o presente e vai tudo. Mais lhe valera, ao mundo, estar deserto.
Felisberto já desvendou o seu crime, vai saber da lambreta e já se despediu do viajante. Este fica sozinho, pensativo, e não encontra a ponta deste novelo, por mais que se interrogue. Por sua própria experiência, sabe ser a ignorância a mais escura das noites. Mas fica sempre pasmado, diante da escuridão. Sobretudo se já não há milagre que lhe possa valer.
Deixa os pombais para trás e já lá vai, ao longo do paredão do cemitério, e decide fazer-lhe uma visita. A um lado porque também um cemitério é um espelho do mundo, pelas boas e as más razões. E a outro porque vai à procura de sinais dum homem corajoso, de quem já ouviu falar. O cemitério é obra asseada, tem aspecto cuidado e dimensão apropriada. Logo nele avultam uns jazigos a chamar a atenção, mas antes quer o viajante descobrir a campa do padre Júlio de Moreira, que aqui foi sepultado. Vai andando devagar, entre lápides de gosto duvidoso, e neste particular conclui que já tem visto pior. Porém, como noutros lugares, quanto mais recentes são as sepulturas, mais estapafúrdios são os arrebiques e mais surpreendente o bricabraque. Por razões que só eles saberão, decidiram os vivos obrigar os defuntos a tomar parte nestes festins de mau gosto modernista.
Mas já o viajante encontra o que procura. Encostados a uma campa recente, que lhe tomou o lugar, lá estão os restos da lápide funerária do padre Júlio, uma cruz celta e um livro de pedra que ali deixaram aberto e nunca mais se fechou. Antigamente havia símbolos na morte, havia um pensamento ritual, uma coluna quebrada, um anjo de asa caída. Agora há só alindamentos, enfeites de arraial, um dia em breve serão formas vazias, entulho cultural.
O homem era de Almendra. E logo que se fez padre veio parar a esta freguesia, estava a chegar aí o século XX. O padre Júlio jurara, de boa fé, o celibato dos cânones. Mas quando aqui encontrou a Carmina, teve mais força a vida que as papeladas dela. A voz comum acabou por estranhar tão chegada mancebia. E bem fez o padre orelha mouca, mas o bispo exilou-o para Moreira de Rei, por trás daqueles montes. Foi então a vez de Carmina pôr os pés ao caminho. Era inverno, a chegar a primavera, e lá vai ela encosta abaixo, passa a ponte velha sobre a Teja, faz uma vénia contrita ao santo que além está na capela, um São Sebastião debaixo duns negrilhos, sobe os cerros do Montrangão, atravessa a charneca das Terras Grandes, e senta-se a descansar no alto de Moreira, abrigada à capela do mesmo S. Sebastião que outra vez ali a está esperando, à entrada do povo. Carmina dá tempo que chegue o fim da tarde, para dar menos nas vistas.
Outra vez investe o bispo contra a mundanidade, e outra vez resistem Carmina e padre Júlio, ninguém saberá dizer qual deles com mais vigor. O bispo suspende o pastor, tira-lhe o priorado, agita uma interdição. Carmina responde mudando-se para Moreira, e se este bispo conhecesse o jardim do paraíso, saberia muito bem que nada tem mais força que uma boa paixão. No fim acabou por recuar. E Moreira, que já tinha tido um rei vencido, ganhou agora dois vitoriosos, e uma família nova.
A bem dizer o viajante não se agrada de fariseus fraldisqueiros, mas o padre Júlio era um homem justo. Percebeu a grandíssima distância que vai de Cristo à igreja que dele dizem. E, tendo que escolher, não hesitou. Entregava as pistolas ao sacristão antes de entrar para a missa. Mas cá fora era republicano, apoiava Afonso Costa, e defendia, ó deuses, as leis de separação entre a igreja e o estado, contra o cego furor da clerezia. Num dia de invernia entrou, para se aquecer, numa cozinha do povo. A dona da casa bem que lhe dava uma chouriça assada, era o melhor que tinha. Mas era dia de abstinência e ela não pagara as bulas. O padre tirou uma bula do bolso, embrulhou nela a chouriça, assou-a no borralho e todos a comeram, com grande satisfação e muito maior proveito.
- Adeus, ó pai dos pobres! - chorava o povo de Moreira, quando o padre morreu. O viajante pensa que não se pode levar prenda melhor, depois de morto.
(...)