De A Criação do Mundo, de Miguel Torga, viajando por Paris, antes da guerra, entre exilados.
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Mas de nada valia protestar contra aquela estupidez. O mal vinha de longe. Os proscritos, em vez de admiração e carinho, recebiam dos que ficavam, dos que se acomodavam, sarcasmos e desprezo. Quando lera a descrição dos sofrimentos suportados nos barracões de Plymouth pelos homens do liberalismo, mal queria acreditar. Como podia um povo deixar num tal abandono alguns dos seus, que lutavam para que o sol da liberdade lhe sorrisse também um dia? A monstruosidade, contudo, acontecera, e continuava a acontecer, mesmo depois dos benefícios colhidos. E o pior da tragédia é que a maioria dos exilados vivia dentro da própria nação. Todo aquele que erguia nela a voz discordante, pertencia à seita maldita. Acoimado de herege, de pedreiro livre, de subversivo, de inimigo, consoante a época, ardia real ou simbolicamente na praça pública. O que significava a violência agressiva das polémicas em Portugal, senão essa incapacidade de dialogar, de ouvir, de tolerar e compreender o adversário? Senão esse ódio recôndito à opinião alheia, à necessidade de a calar de qualquer maneira?