De Miguel Torga, A Criação do Mundo:
(...) Um Portugal velho e rotineiro, de senhores e servos, estava ali vivo e presente. De mão vazia, ninguém pedisse justiça, conforto divino, instrução ou saúde. Parasitas do povo, o padre, o médico, o professor e o juiz, em nome de Deus, do saber, da lei ou de Esculápio, exigiam-lhe todas as formas de preitesia, a começar pela mais concreta: o óbolo dos frutos da terra. Cada ungido que vinha oficiar à sua igreja, antes da primeira oração, olhava o altar das oferendas. Crédulo e submisso como há mil anos, o camponês gemia, mas esvaziava a salgadeira, a tulha e o curral. Cair no desagrado de tais divindades, seria a perdição total neste mundo ou no outro. O Diário do Governo e o Boletim Diocesano não nomeavam funcionários públicos e pastores de almas. Proclamavam omnipotências. E ai daquele que se recusasse a reconhecer-lhes a soberania! Do pé para a mão, acordava, como eu iria acordar em breve, com um círculo de maldição à volta. (...)
Há quarenta anos atrás, e desde há séculos, Portugal era assim. Hoje dizem que mudou. Mas, da mudança, apenas a aparência é verdadeira. Como é que duma coisa assim se fabrica um país?