E lá fica um tipo desarmado, imóvel e descrente, face a uma realidade que mais parece fruto da ficção. É a política míope, é a economia frágil, é a corrupção das elites, é a crise mundial, é a falência do mercado, é o desemprego a subir, é o futuro posto em jogo, é a miséria envergonhada, é o desespero à solta... Então as artes literárias, salvo milagrosas excepções, mais parecem exercícios de onanismo. Bem pode o mundo inteiro desabar, que isso não as arranca do sonambulismo.
Talvez por isso seja tão salutar o reencontro com estes textos de há uns anos. Honra se faça a esta ironia e a esta frontalidade.
De Não É Fácil Dizer Bem, de João Pedro George, Edições Tinta-da-China, transcreve-se:
Pedro Rolo Duarte: A volúpia do aborrecimento
Ofereceram-me Sozinho em casa. Não o filme, mas o livro de Pedro Rolo Duarte (Oficina do Livro). Todas as sextas-feiras, do alto das suas crónicas no Dna, com aquela trunfa de profundos pensamentos, Rolo Duarte consegue dar à palavra aborrecimento uma significação mais vasta. Ontem, domingo, antes de ir dar milho aos pombos, decidi-me finalmente a folhear o livro. «Um diário da solidão» sobre «aquilo de que é feita a vida de todos nós», é-nos explicado no início da obra. Mordido de curiosidade, fui ver como era a vida do director do Dna. Seria realmente como a de todos nós?
Vejamos, na primeira pessoa, como PRD ocupa o seu tempo. Eu bebo gin tónico com duas ou três gotas de sumo de limão (antes de sair de casa certifico-me sempre se o gin não esgotou e se os citrinos estão no frigorífico). Eu vou comer pizzas à Piazza di Mare e ao Casanova. Sei fazer uma boa feijoada e até já gosto de ovos escalfados. «Tenho para comigo» que a piscina do Estoril Sol é a melhor de todas, que as camas do Méridien do Porto são insuperáveis e quanto ao Altis falem-me do bife tártaro. «Tenho para comigo» que os melhores restaurantes de Lisboa são o Travessa, o Pap'Açorda, o XL, o Bica do Sapato. Mas «tenho para mim», ou melhor, «para mim tenho» que peixinho com sal é no «Petit» de Algés. Bebo whisky irlandês com o Miguel Esteves Cardoso e às vezes tenho depressões, nada que um Jameson, seco, em copo alto, não resolva. Vou à Fnac comprar livros, revistas e CD's. Gosto de ir ao Pão de Açúcar das Amoreiras. «Tenho para mim» que a Costa Alentejana já foi melhor. A minha casa em Odemira é o máximo. Eu era um bocado piroso quando era pequeno mas continuo a gostar de Suzannne Vega, do Rui Veloso, do Vergílio Ferreira e blá blá blá, vinte vezes blá blá blá.
Ler Sozinho em Casa é ficar a saber até à exaustão do que Rolo Duarte gosta e não gosta, as horas a que acorda, os jornais que compra, os discos que ouve, a comida que come, etc., com algumas opiniões pomposas e uns quantos espirros poéticos pelo meio. O jornalista já tem 40 anos e ainda está a viver a crise dos 30. Como dizia a minha avó, é como o ovo, não tem ponta por onde se lhe pegue. Em suma: mais um livro para cair no eterno esquecimento.
Algures no séc.XVII, com o mundo a desabar doutra maneira, também os literatos faziam sonetos Ao Menino Jesus em metáfora de doce. E anda o padeiro, há séculos, a levantar-se às quatro da manhã, para cozer o pão a estas bestas!