terça-feira, 7 de abril de 2009

Portugalmente (34)

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O viajante vê a tarde a correr e ainda tem muito que andar. Não pode ficar aqui o dia todo, mas detém-se nos jazigos, quando vai a sair. O mais antigo imita o neo-gótico, o do meio tem uns ares neo-clássicos, e o mais recente, na brancura luzente da pedra mármore com vidraça espelhada, não segue modelo nenhum. O seu conceito é o mesmo das artes funerárias modernas, faz lembrar um caixote para embalar mercearias. E todos celebram no frontão o nome dum fundador, se para o eternizar foram criados.
Este, que aqui dorme, consta que nasceu na terra quente, numa aldeia qualquer. Vendia pregaduras nos mercados, não faltava a nenhum, das Freixedas à Meda. Um dia conheceu em Valflor a Candidinha do Zé André, que era viúva e dona de bens. E sempre que a rota lhe calhava, passou a acomodar a mula no quinteiro. Lá acabaram casados, mas ela morreu cedo. E aconchegado na herança que por inteiro lhe coube, conquistou ele a Marquinhas, filha do Zé Ribeiro, um homem grado aqui na terra, no comércio de retalho. Assim se juntou alguma fome com outra tanta vontade de comer, pois o negócio da pregaria era um dos fortes do estabelecimento.
Tudo chegava do Porto, duns grandes armazéns. E quando um dia lá foi, a pagamentos, bem alertaram as vozes das sibilas:
- Ai, dona Marquinhas, que anda lá tão ruim a pneumónica!
- Eu dou-lhe com a carteira!
Dona Marquinhas teria a mão lampeira e a carteira recheada, mas a pneumónica foi mais despachada. E quando ela não voltou, o bom viúvo agarrou-se às pregarias. Terá sido por obra e vencimento delas que tão bem ganhou as graças da menina Filomena, morgada que aí vivia, com umas tias que a trouxeram do Azevo. Mas isso ninguém pode garantir. De ciência segura apenas é sabido que o dote da morgada trouxe ao viúvo um paraíso onde viver. Era a mais mimosa vivenda da aldeia, como ainda hoje se verá, com bons quintais e águas vivas, e árvores de boa sombra e melhor fruto. Depois disso só lhe faltava a última morada, é esta que aqui está.
Quem conta tudo isto ao viajante é o senhor Primo, lá por palavras dele. Mora ali ao lado, onde era a forja antiga do ferrador, que se foi aos Brasis há um ror de anos, farto de malhar em ferraduras alheias. Ao ver o estranho a passear entre as campas, veio logo tirar a coisa a limpo. Hoje tem o senhor Primo uma vida sossegada, e já era merecida. Foi dos primeiros a arrancar para França, logo ao princípio dos anos sessenta. Por lá andou um ror de anos, sempre a assentar tijolos, mas ganhava bom dinheiro. Até que um dia acertou na tabuada do loto e foi uma alegria. Comprou um carro novo e regressou à terra, onde havia para acabar as obras na forja antiga, que já tinha comprado. E fez dali uma casa de estalo.
- E isso da perna?
O senhor Primo manqueja o seu pouco, e usa uma bota ortopédica.
- Quando era garoto estive de paquete na quinta do Forcas, ali às portas da vila. Mais pela bucha e a tarimba, que o trabalho era de fedelho. Um belo dia venho eu estrada abaixo, em cima do cavalo, a tocar umas vacas lá da casa, que vinham dum lanteiro. Senti atrás de mim a camioneta na descida, e bem puxei o cabresto ao animal, a encostá-lo à berma. E não é que se espantou, o alma do diabo! Lá foram dar comigo ao fundo da ribanceira, aninhado numas giestas, com a perna estracinhada. Pior foi ao animal, que não sobreviveu, tiveram que lhe dar um tiro. A mim levaram-me aos médicos e foi o que me valeu, mas a perna ficou curta. Andei anos assim, de costados torcidos, e bem que me custava, lá em França. Mas lá houve um médico que me indicou uma cinta, e me mandou fazer uma bota mais alta. As dores baixaram um migalho, e agora o trabalho já é pouco. Mas o relógio sempre cá ficou.
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