segunda-feira, 18 de março de 2024

As Aves 2-14

As conversas são como as cerejas, é isto um facto por demais sabido e redito, mais ainda se de imaginações e lembranças se trata, vento que não cansa, rio que não pára de passar. Vejamos o caso de Gaspar, que temos acompanhado, se exemplo nos faltar para a demonstração. Vai esta sossegada barca assim Castela adiante, no mar calmo da noite, tão apertados os viajantes por força do escasso habitáculo que mal podem mexer-se, mais parece que tomámos lugar na arca de Noé. Esta mulher dorme, acaso tem o espírito mais leve, ou consegue apenas aconchegar melhor o pequeno corpo no minúsculo assento, o luar não chega para animar esta paisagem que de seu natural é monótona e repetitiva, e no caminho apenas o condutor reparou numa patrulha de carabineiros, brutamontes altos que ali estavam. Tal é o visível sossego, que poucas palavras temos ouvido, mas o frenesim das lembranças e o cavalgar dos pensamentos tem sido o que se viu, e vai agora a missa apenas em metade.

Quem não precisa de assistir à metade restante somos nós, baste-nos o que já vimos para tirar conclusões. Estes dois são clandestinos que o desenrolar da revolução empurrou a buscar outros ares, por certo sob pena de males maiores, é bem verdade queimar-se quem com fogos brinca, se não é mais concreto dizer que nenhuma revolução poupa os filhos. Não inventámos nada desde os velhos gregos, já entre eles havia quem não soubesse furtar-se ao implacável destino, acaso será a vida de cada homem vera revolução, desde que o mundo começou.

Gaspar não desencostou a cabeça da pequena vidraça, um rosto fechado assim apoiado na mão esquerda, mas na sua ideia vai ainda a entrar no autocarro já falado, avança, lenta, a bicha dos passageiros, compra e não compra bilhete, que este motorista não gosta de fazer tudo por atacado, guiar o mastodonte e cozinhar os trocos, se lhe perguntássemos diria que enquanto se capa não se assobia, é esta discutível ciência o mais eficaz modo de propongar a vida. E só a palavra de João, que assim se chama este condutor são cristóvão, logrou interromper-lhe o devaneio, e trazê-lo de novo ao momento. Salamanca está aí, não tarda chegamos aos arrabaldes, o melhor é comer alguma coisa e dar uma folga às pernas, ainda há muito que andar, a dormida é só em Palência. Alvíssaras capitão, alívio geral neste convés, lá está o clarão nocturno da cidade, são dez da noite, uma aguada vem mesmo a calhar. (cont.)

domingo, 17 de março de 2024

As Aves 13

É talvez por estar distraído das lições da nossa história que este gasolineiro nãosai da sua pacatez, nem desliza sorrateiro para o telefone ao receber os talões militares, senhor general dos comandos, sei como tem vocelência no coração uma alma de patriota, tenho acompanhado nos últimos dias tudo quanto tem feito para nos livrar do perigo comunista, pois olhe que passou agora aqui um desses traidores à pátria, num carro que também é vermelho, o melhor é deitarem-lhe a mão. Este gasolineiro não quer saber, acaso estará também farto desta pátria, limita-se a olhar mais atentamente o cliente paisano ao receber os talões militares, e, se perguntou aos próprios botões de que lado estará este na batalha que aqui se trava, não exteriorizou a pergunta e Gaspar não tem que responder, moita carrasco. Pelo sim pelo não arranca intranquilo, e mesmo sem razão avança mais depressa, à medida que se mistura no trânsito citadino.

Esta cidade está hoje mais sossegada do que é seu costume, dizemos nós quando deveríamos precisar que parece desconfiada e temerosa, os olhares comuns parecem outra vez os antigos, olha este homem o céu no temor de que ele traga chuva, quando ontem estava bem seguro do sol que todos os dias o sol manda. Olhares outros mais triunfantes haverá também por aí, não é difícil imaginá-lo, mas desses não encontrou Gaspar nenhum sinal na rua. E não é por distracção. Esqueceu-se de que, sendo a rua o natural lugar das emoções do povo, outros lhe preferem os salões. Deixa o carro no Campo Pequeno, a mulher o irá buscar. E é mais descontraído e confiante, por se ver assim dissolvido entre os passantes, que sai de novo para o subúrbio, na camioneta do Barraqueiro.(cont.)

quinta-feira, 14 de março de 2024

As Aves 12

E Gaspar lá fica, enquanto a situaçãose vai desmoronando. A rádio traz notícias da queda de quartéis, notícias do estado de sítio na cidade, notícias das prisões e do medo. Os telefones já não funcionam e Gaspar vai-se embora, são oito da manhã e ele não pode voltar a casa. Leva no bolso uma velha pistola de guerra, por que será que uma lembra a outra, da revolução e da guerra falamos, sempre tão próximas ambas, quem quiser a revolução tem que aceitar a guerra, parecia  que tornar o mundo um lugar habitável havia de ser desejo natural de todos os homens, sonho a construir em cada dia, pacificamente. Porém, muito seengana quem cuida, e muito mais Gaspar, que só mais tarde aprenderá não haver salvação para os homens, porque nem todos dela precisam, dirão sempre alguns que já estão salvos, e muito bem, assim.

Esta manhã é chuvosa e enfermiça, longos nevoeiros cobrem o rio, como poderia a mesma natureza ficar alheia à consumição que em tantos peitos lavra, e Gaspar lembra-se de esconder a pistola num dos bancos do carro. Atravessou a vilória encolhido atrás da roda do volante, desejando que ninguém dê por ele, e agora vai deixando para trás a charneca em direcção ao Porto Alto, se haverá barragens na estrada, e, havendo, como reagir-lhes, pergunta que deixa sem resposta enquanto passa, temeroso, a entrada do campo de tiro de Alcochete e se lembra das experimentações que andou por estes ares a fazer, do velho material de artilharia que era preciso adaptar aos aviões, já não havia material para o cansaço africano, já ninguém nos vendia material para a teimosia africana, o império aguentava-se preso por arames, e Gaspar lembra-se de quem aqui ficou pulverizado por má selecção duma espoleta, para que o império se aguentasse mais um pouco. A morte não énada do outro mundo, pensa Gaspar, salvo quando se morre ao serviço duma mentira colossal, caso esse em que tudo se resume a perda vã e total desperdício.

Os sobreiros da paisagem dormem ainda na humidade cinzenta da manhã, não é nada com eles, o trânsito é escasso na carreteira estreita, e vendo nós a sossegada marcha desta viatura não adivinhamos a agitação que vai lá dentro, o galope sem freio deste peito, o sobressalto de cada curva, se consegues chegar a Vila Franca tens as estradas saloias à mão, cala e confia, coração.

Numa esquecida bomba de gasolina tratou de encher o depósito, de nada servirão, no futuro, a este viajante, os talões de combustível que traz no bolso, não demora muito passará na televisão a sua cara de menino com apelos de delação e de captura, juntamente com outros igualmente perigosos traidores, tem esta pátria reincidente experiência denunciante e acusa-cristos, é um corropio de séculos, verdade que Gaspar não é judeu, nem bruxo, nem cristão-novo dado a marranices, não é estrangeirado, nem liberal, nem pedreiro-livre, nem comunista se lhe pode chamar, a bem dizer, é apenas um traidor aos objectivos da revolução, quem puder que entenda. (Cont.)

sábado, 9 de março de 2024

As Aves 11

As coisas políticas assustavam a sua ignorância, e a violência desordenada das consignas dos partidos fazia tremer a sua timidez insegura, qualquer che guevara de bairro impressionava o seu incerto pensamento ideológico, não podemos perder esta oportunidade histórica de implantar o socialismo, é preciso aproveitar a momentânea desorientação dos inimigos do povo e assestar-lhes golpes demolidores, e uma táctica assim é que tinha dado jeito na terra dos macondes, no planalto de Mueda.

Mas o povo não era um animal homogéneo, de contornos concretos e incapaz de incoerências, e isso ainda Gaspar o não sabia. Porém, foi-se dando conta de que o mais pequeno gesto íntimo, o simples modo de olhar o mundo e os outros homens tinha sempre uma significação política. Julgou mesmo descobrir que a revolução lhe trouxera resposta para enigmas do mundo nunca decifrados, e lhe desatara mesmo os nós da compreensão da sua própria vida pessoal. Sentiu que a revolução vinha resgatá-lo também a ele, e Gaspar escolheu o seu campo, sem avaliação de riscos. Andou por herdades na apanha da azeitona, assistiu a comícios, gritou em manifestações, acorreu a assembleias, sentiu raiva e temor em cada atentado bombista, em cada assalto, em cada assassinato, descobriu que não há limites para o impudor dos poderosos assustados, ainda não tinha então concluído que os ricos têm sempre razão, já que, quando a não têm, vem a fraqueza dos pobres oferecer-lha.

Gaspar hesita,mas já tinha escolhido o seu campo, e por isso estendeu as pernas para fora da cama e deslizou dos lençóis, cuidadoso, não valia a pena acordar a mulher. Os filhos dormiam, doces, nas camitas, e o comboio que passava perto, silvando vapores na ravina, lembrou-lhe a premência daquela voz que viera acordá-lo. Andavam cavalos à solta nos verdes prados da revolução e Gaspar não sabia de nada, ninguém lhe comunicara intenções nem planos, nem isso era importante, a sua mão não era indispensável, mas onde está a revolução que dispensa mãos, e que mãos dispensam a revolução depois de ela tomar assim o freio nos dentes.

Havia tropas amigas na rua, nos últimos dias era duma evidência transparente que ficaria sem cabeça quem a expusesse, e por isso Gaspar não compreende, sabe só que as tropas nunca se movimentam sem ordens, não sabe ainda que nunca saberá donde tais ordens vieram. Mas vai, porque já não pode recuar. Vai para uma base militar onde encontra confinada num salão toda a oficialidade, pastoreada pela tropa alevantada enquanto joga às damas, enquanto dá umas tacadas no bilhar, enquanto a meia voz comenta o insólito, quem sabe se inesperado, súbito lance. Gaspar ensaia uma explicação do que está a acontecer, tenta mostrar os limites da sublevação, procura legitimar-lhe os objectivos. Ainda não sabe que a razão não desempenha aqui qualquer papel, outros são os motivos que levam os homens a ver, não o que está, mas o que querem ver, numa revolução. E ele próprio é quem vê, pela primeira vez, o ódio nos olhos dos camaradas de ontem, o ódio nos olhos dos companheiros de África de ontem, que lhe chamam traidor e não entendem, alguns cospem-lhe aos pés e não entendem que se possa desejar outra coisa, que se pretenda substituir a definitiva rigidez de cadáver dos códigos deontológicos pelo calor suado e desprezível do povo, não entendem que se possa trocar esta vazia, mas certa, segurança, pela duvidosa aventura de indefinidas utopias, por sonhos incertos de transformar o mundo, assim é a tropa, a fingir-nos a vida para nos interditar o ofício de a criarmos, e eles sem entenderem que chegou o momento do resgate, e que não o aproveitar será deixar toda a história a meio. (cont.)

sábado, 2 de março de 2024

As Aves 10

Dizia isto a pátria, enquanto empilhava nos anexos do hospital militar os destroços dos mutilados, Gaspar tinha-os visto passar de relance em cadeiras de rodas, amamentados por enfermeiros discretos, o olhar vazio confinado a corredores sombrios que apenas pesadelos habitavam, dizia isto a pátria ao mesmo tempo que escondia atrás de muros altos, para que ninguém os visse, os restos da guerra que o furor de marés longínquas vinha arrojar ali, como troféus perversos. Nessa tarde, ao descer a João XXI a caminho do Campo Pequeno, Gaspar ouviu claramente o que a pátria dizia, olhou para si próprio e sentiu-se um cordeiro imolado.

Mais tarde voltou à África, ao aroma azedo dos bairros negros e aos lamaçais do Corubal, às evacuações de soldados estropiados das pistas de terra do mato, leve-me depressa, meu alferes, não me deixe morrer, meu alferes, ambulância à chegada com médico e sangue, médico e sangue, mádico e sangue, voltou aos alertas dia e noite em aviões de museu, despejavam-se bombas em catadupa sobre as bolanhas silenciosas, sobre a paisagem de rios indiferentes, sobre a África inteira, e do chão subiam cogumelos de fumo espesso que eram a raiva das acácias violentadas, que eram a fúria dos embondeiros a desmoronar-se, e ondas de choque faziam ranger as velhas carcaças dos aviões que se retiravam à pressa. Voltou aos alertas dia e noite, para aliviar os quartéis flagelados a toda a hora pela artilharia do inimigo, pelos morteiros do inimigo, pelos foguetões do inimigo, abria-se um buraco na barriga dos velhos dakotas e semeavam-se bombas à mão pela noite africana, lá em baixo acendiam-se fiadas de pequenos fogachos brilhantes, fogos-fátuos de fim do mundo, espécie de rosários sacrílegos, berravam os capitães da tropa ao rádioo seu desespero indefeso, enquanto desencravavam a espingarda automática em subterrâneos lúgubres, cobertos de sacos de areia e troncos de palmeira apodrecidos.

Um dia voltou a Lisboa, já a revolução tinha tomado o freio nos dentes. Percorria a cidade uma euforia que só acontece um vez na vida, porque não há energia que a viva duas vezes, e inundava praças e avenidas uma grande catarse colectiva, que floria em risos e rosas vermelhas. Ele há males que vêm por bem, vale a pena todo o sofrimento do mundo para ver um grumete de marinha silenciar um general já com lugar cativo na história, é da voz e da vida de homens que aqui se trata, meu general, daquilo que eles nunca tiveram, e essa táctica não vem nos seus livros, meu general, não são deste céu as suas estrelas cadentes. Há males que vêm por bem, mas também já se tem visto o contrário, muitas casacas tornaram-se subitamente incómodas e virá-las é uma urgência, de repente a longa noite de cinquenta anos fora apenas uma fatalidade indesejada, pomos um cravo ao peito enquanto as pratas passam a fronteira, e os quadros do Botelho, e as jóias de família, quero que a menina se ponha a salvo em Madrid com as crianças, sabe lá o que estes comunistas são capazes de fazer. Os reorganizadores do proletariado pintavam nas paredes grandes bandeiras vermelhas e operários imponentes, cada mural era um decreto-lei, e uma tarde no Rossio viu-se Gaspar misturado na multidão que gritava nem mais um soldado para as colónias. E lá foi,da Baixa a Sâo Bento, parecia aquilo um rio Jordão onde Gaspar tomou baptismo, ele que vinha de férias já não voltou à Guiné. (cont.)